‘Influencers’ mirins: a vida de uma geração presa ao celular
“Meu primeiro celular foi bem tarde, com 9 ou 10 anos, mas nunca usei muito. Passo só de 5 a 6 horas por dia com ele”, diz Julia Pereira, uma catarinense de 12 anos. Ela é uma das mais de 24 milhões de crianças e adolescentes brasileiros (o equivalente a 82% da população de jovens do país, de acordo com a pesquisa TIC Kids Online Brasil) que vivem conectados. Mas Julia tem algo a mais: conhecida na Internet como Julia Jubz, ela faz parte do seleto, mas crescente grupo de influenciadores digitais mirins, que mantêm canais no YouTube e perfis no Facebook e no Instagram, atraindo a atenção de milhares de seguidores —e de empresas com “mimos” para merchandising—.
Apesar de garantir que não é “muito ligada” no mundo online e que poderia passar três dias sem bateria no smartphone, Julia, que tem 354.000 seguidores em seu canal no YouTube, grava os vídeos com o celular na mão. Ela também administra o perfil no Instagram, com quase 80.000 followers. “Antes de postar o primeiro vídeo, há um ano, meu canal já tinha 200 seguidores. Aí percebi que poderia ser uma influencer“, conta. “Eu que faço o conteúdo, mas sempre consulto meus pais e meus irmãos”, acrescenta. Nas suas redes, ela dá dicas de maquiagem, posta brincadeiras e desafios com os irmãos e mostra sua rotina.
Algo parecido aconteceu com o goiano Ernani Coelho, de 11 anos. Como parte do processo para se recuperar de uma depressão —que surgiu depois que quebrou o braço, aos 9 anos, e que passou por quatro cirurgias— ele começou a posar para a irmã fotógrafa. Quando postou a primeira foto no Instagram, em 2016, dormiu com 10 seguidores e acordou com 10.000. Hoje, são 38.000. O sucesso instantâneo rendeu-lhe o prêmio de Maior Influenciador Mirim naquele ano, além de trabalhos como modelo e contratos de marketing com grandes marcas de moda. “Eu sempre gostei de tirar fotos e sempre acompanhei muitos youtubers, então tinha vontade de fazer algo assim”, conta para o EL PAÍS em uma entrevista por Skype, em um tablet, mas sem tirar as mãos e os olhos do celular.
Ernani ganhou o primeiro aparelho aos 9 anos e, segundo sua mãe, Luciana Moreira, passava quase 24 horas com ele na mão. “Às vezes, nem queria almoçar para passar mais tempo conectado”, conta ela. Quando o filho virou influencer, a rotina mudou. “Sou eu que controlo as contas nas redes sociais, até mesmo para bloquear usuários inapropriados, principalmente homens, e moderar os comentários. O celular de Ernani é bloqueado. Só tem acesso a jogos e um WhatsApp familiar”, diz.
Já Amanda Carvalho, paulistana de 13 anos, é a responsável por administrar o próprio canal no YouTube, Vida de Amy, e seu perfil no Instagram, somando mais de meio milhão de seguidores. Para ela, que nasceu com deficiência auditiva, mas é uma surda oralizada, o primeiro celular, aos 7 anos, foi uma forma de refugiar-se do bullying que sofria no playground do condomínio. Com ele, descobriu o YouTube e veio a vontade de criar o próprio canal, que se concretizou aos 9 anos, depois de muitas negativas por parte da mãe. “A vida dela era estudar, passear comigo e ficar no celular. No final, ela insistiu tanto para ter o canal, que acabei deixando”, conta Scheilla Carvalho em videoconferência desde Orlando, na Califórnia, para onde se mudaram há seis meses.
Amanda criou o canal em 2014 para mostrar os presentes e brinquedos que ganhava —típicos de uma criança de classe média alta— e logo passou a gravar vídeos sobre seus passeios em parques de diversão, viagens ao exterior e outros aspectos de sua rotina. Não demorou para que a youtubertransformasse o conteúdo em um livro, Vida de Amy – a diversão e a imaginação não têm limites, esgotado em algumas das maiores livrarias do país. “Minha filha já chegou a ganhar mais do que eu, que tenho duas faculdades e um mestrado”, comenta Scheilla.
Mas Amanda conta que nem sempre quer gravar vídeos mais. Prefere alimentar o perfil do Instagram com fotos e stories. “Fico muito no celular, mas nem posto tanto nas redes, só faço mais stories básicos. Uso muito para falar com os amigos, para fazer Snapchat com eles. Depende do meu mood(humor, em inglês). Mas eu realmente uso [o smartphone] o dia inteiro. Quando acaba a bateria, já dá aquele desespero”, confessa. Ela se preocupa, no entanto, em separar sua vida online da vida real. “Entendo que são coisas totalmente diferentes. Na escola, por exemplo, prefiro que meus colegas não saibam que sou uma influencer digital”.
Os riscos da cultura de likes
Scheilla Carvalho conta que quando a filha tinha 11 anos conversou com ela sobre o poder e os riscos da internet. “Falo muito sobre a responsabilidade de ser uma influenciadora, principalmente para um público jovem. Não quero que ela se exponha de uma maneira hipersexualizada, como fazem outras meninas dessa idade. Ela não é uma escrava em busca de likes. Eu me preocupo com isso mais do que ela”, diz.
Luciana Moreira também se preocupa em respeitar os limites do filho influencer mirim. Ela critica os responsáveis e agências que trabalham com essas crianças Não tenho medo de gerar frustração, ele está fazendo o que ele gosta. E eu trabalho no tempo dele. “Algumas dessas crianças têm agendas muito pesadas, fazem sessões de fotos em que têm que ficar sem comer nem beber água para a barriga não ficar inchada. Outros fazem 100 abdominais antes das fotos. Eu nunca quis fazer isso com meu filho”. Ela diz que não teme a possibilidade de que Ernani se frustre com a busca de seguidores e atenção nas redes. “Acho que isso não vai acontecer, ele está simplesmente fazendo o que gosta”.
Especialistas em psicologia infantil e redes sociais alertam, no entanto, que mesmo a supervisão parental não isenta os jovens de sofrer as consequências da cultura de likes. “O celular e a internet nos viciaram em recompensas rápidas, e o like é uma delas. Ele representa a satisfação da expectativa de reconhecimento alheio para que o indivíduo se sinta importante, pertencente a um grupo. As crianças passam a não se valorizarem por si mesmas, o que gera frustração e pode levar até a uma depressão”, explica a psicóloga da infância Ana Flávia Fernandes, autora do blog Terapia de Criança.
Outros risco são os problemas de compreensão cognitiva e de desenvolvimento da identidade. “É como se a tela do celular fosse como um espelho para eles”, acrescenta Evelyn Eisenstein, pediatra especialista no consumo de novas tecnologias. As especialistas explicam que, enquanto os adolescentes se questionam se o “eu” representado nas redes sociais é verdadeiro, as crianças expostas a esse mundo digital sequem chegar a formar a própria identidade.
É consenso entre as sociedades internacionais de Psicologia que o tempo recomendável de exposição a telas (celulares, tablets, televisão, videogames etc) para crianças é de no máximo uma hora até os 6 anos de idade; duas horas até os 12 anos e, depois, no máximo quatro horas por dia. “Mas a dependência não se caracteriza só pela quantidade de horas que se passa online e, sim, pela qualidade de convívio. O problema é que há uma dissociação cognitivo-afetiva: elas perdem a capacidade de expressar suas emoções para além do uso dos emojis”, matiza Eisenstein.
Embora concordem que tirar o celular das crianças é um tema “delicado”, ambas propõem uma abordagem que pode ser considerada ainda mais “radical”: não dar os aparelhos a elas, já que não são necessários. Demoramos 50 anos para provar que a nicotina provoca câncer. Com a internet, já estamos vendo claramente seus riscos. A vida se tornou quantos likes você tem”, lamenta a pediatra.
Amanda Carvalho —ou Amy— se diz pronta para parar de contá-los. “Acho que vou deixar de ser influencer em algum momento, quero fazer outras coisas”, afirma. “Mas jamais abandonaria o celular. Não posso viver sem ele”, afirma, aos risos.