A sobrevivência do Mais Médicos em risco
Com a retirada de Cuba, o Mais Médicos corre o risco de não conseguir atender a população que dele necessita, sobretudo as famílias mais vulneráveis, avaliam especialistas, profissionais envolvidos no projeto e o ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha, um de seus idealizadores.
Atualmente, 8,3 mil dos 18,3 mil médicos do programa são cubanos, 45% do total. Eles estão presentes em todos os estados e no Distrito Federal, e ocupam vagas que não puderam ser preenchidas por brasileiros.
Criado em 2013, na presidência de Dilma Rousseff, o programa envia médicos brasileiros e estrangeiros a regiões mais pobres e com baixa cobertura de assistência médica, e leva atendimento a mais de 60 milhões de pessoas, segundo o governo.
“Nunca conseguimos que, só com médicos brasileiros, fosse possível completar as vagas”, afirma Padilha. “Bolsonaro coloca em risco a saúde de milhões de brasileiros, que dependem do programa.”
A decisão de Cuba foi tomada após o presidente eleito, Jair Bolsonaro, impor novas condições para a parceria. Para a Havana, os termos colocados pelo futuro governo não só são inaceitáveis, como ferem a dignidade dos profissionais cubanos.
Preocupados com o fim da parceria com Cuba, prefeitos querem que o novo governo recue nas exigências e atitudes que resultaram no rompimento dos cubanos com o Mais Médicos.
Em cinco anos de programa, nenhum edital de contratação de médicos brasileiros conseguiu contratar quantidade suficiente de profissionais para as vagas abertas. O maior edital resultou na contratação de 3 mil brasileiros.
Segundo as regras atuais, os profissionais do país caribenho não precisam validar o diploma para atuar no Brasil, mas recebem uma autorização restrita: podem exercer a medicina somente na cidade ou área remota para onde são destinados.
“Essas mais de 8 mil vagas não vão ser preenchidas rapidamente. Até que se formem novas turmas de médicos, não há, no Brasil, esse número de médicos que queiram ir para essas regiões. Vai haver, de fato, um colapso. Os grandes demandantes do programa eram os prefeitos, que não conseguiam atrair médicos para regiões distantes dos centros urbanos”, afirma Leonor Pacheco, pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB) que participou de projeto para analisar os resultados do Mais Médicos.
Dos 5.570 municípios do país, 3.228 só têm médicos do programa, e 90% dos atendimentos da população indígena são feitos por profissionais de Cuba, de acordo com o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems). “A rescisão repentina desses contratos aponta para um cenário desastroso”, opina a entidade.
Tratamento a quem nunca teve acesso
O Ministério da Saúde afirmou que tomará medidas para garantir a assistência médica nas regiões onde atuam cubanos. E prometeu abrir nos próximos dias uma convocação para médicos que queiram ocupar vagas deixadas por cubanos, priorizando profissionais brasileiros, o que já é feito atualmente.
“O Programa Mais Médicos não sobrevive, no curto prazo, sem a presença dos médicos cubanos por estarem alocados de forma maciça em regiões onde a presença de médicos brasileiros é escassa”, afirma a pesquisadora Maria Helena Machado, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz e que também já coordenou um levantamento para avaliação do programa.
Pesquisas concluíram que a avaliação do desempenho dos médicos cubanos era bastante positiva por parte das famílias e também dos gestores públicos. “Até porque parte significativa da população que hoje é atendida por esses profissionais nunca teve acesso a assistência médica”, ressalta Machado.
Gerson Costa, supervisor do Mais Médicos na região do Carajás, sudeste do Pará, afirma que ele e os profissionais que supervisiona foram pegos de surpresa com o anúncio da saída de Cuba do programa, “embora já houvesse essa expectativa no ar desde o resultado das eleições”.
“Dos meus supervisionados, todos têm muitas críticas ao cenário de práticas que encontraram, pela precariedade mesmo, tanto material quanto humana dos profissionais brasileiros”, conta. “Mas também têm muitas impressões positivas, tanto do trabalho que puderam desenvolver quanto das pessoas que conheceram e das relações que estabeleceram.”
Costa afirma que antes do Mais Médicos, a assistência médica nas cidades que supervisona era muito mais esporádica, pontual e centrada em atendimentos de emergência. “Com a saída dos cubanos, tende a voltar a ser assim.”
Após o anúncio da retirada de Cuba, Bolsonaro afirmou que “infelizmente” o país caribenho não aceitou as condições impostas para a continuidade do Mais Médicos.
“Condicionamos a continuidade do programa Mais Médicos à aplicação de teste de capacidade, salário integral aos profissionais cubanos, hoje maior parte destinado à ditadura, e à liberdade para trazerem suas famílias. Infelizmente, Cuba não aceitou”, escreveu o presidente eleito no Twitter.
“Além de explorar seus cidadãos ao não pagar integralmente os salários dos profissionais, a ditadura cubana demonstra grande irresponsabilidade ao desconsiderar os impactos negativos na vida e na saúde dos brasileiros e na integridade dos cubanos”, disse.
Bolsonaro afirmou à imprensa que vai substituir os cerca de 8,3 mil profissionais cubanos por brasileiros ou estrangeiros e prometeu asilo aos médicos de Cuba que desejarem permanecer no Brasil.
Por que cubanos?
O processo de seleção dos médicos, que recebem cerca de R$ 11,5 mil, para o programa prioriza profissionais brasileiros que se formaram no país ou aqueles que, apesar de terem cursado Medicina fora do Brasil, revalidaram os diplomas. Se nem todos os postos forem preenchidos, o governo dá a vez para médicos brasileiros que estudaram no exterior, mas que não fizeram o exame Revalida. Se, ainda assim, sobrarem vagas, serão convocados profissionais estrangeiros e sem revalidação do diploma.
Médicos cubanos, portanto, participavam do programa quando brasileiros não se interessavam pelas regiões a serem atendidas, principalmente em comunidades quilombolas, indígenas ou mesmo periferia de grandes cidades. As áreas mais beneficiadas são, portanto, estados do Norte e Nordeste, além do interior de todo o país.
O acordo com Cuba funciona por meio da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), ligada à Organização das Nações Unidas (ONU). Segundo o Ministério da Saúde, a quantidade de profissionais cubanos recuava desde 2016, quando eram 11,4 mil.
O governo de Cuba, onde a proporção de médicos por mil habitantes é de 7,5, contra 2,1 do Brasil, fica com cerca de 70% do salário dos profissionais que estão no programa brasileiros. Esse é um dos pontos mais criticados por Bolsonaro.
O presidente eleito alega ainda que aproximadamente 20 mil médicos se formam no Brasil por ano. No entanto, o programa, que funciona desde 2013, não tem conseguido atrair os grupos prioritários – brasileiros e estrangeiros com diploma revalidado – para as áreas mais remotas do país.
O Conselho Federal de Medicina (CFM) argumenta que há médicos suficientes no Brasil, mas faltam políticas e incentivos para que eles atuem nas regiões mais distantes. Dados do CFM apontam que, no fim de 2015, havia 400 mil profissionais no país. No começo de 2018, eram 452,8 mil – bastante concentrados nos grandes centros e nas capitais brasileiras.