A quem interessa a morte do Ministério do Trabalho?
Ouvi e li, atônito, as declarações do futuro ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni (DEM-RS), anunciando a condenação do Ministério do Trabalho à morte e esquartejamento. Ignoraram suas virtudes. Apontaram seu crime: “[…] a imprensa já registrou problemas e casos de corrupção”. A lógica do raciocínio conduziria à extinção da Petrobras, do Congresso Nacional, da Presidência da República, enfim, em última e despropositada análise, do Brasil (?).
Criado em 26 de novembro de 1930, no início do governo de Getúlio Vargas, o Ministério do Trabalho tem 88 anos de história na defesa intransigente dos direitos dos trabalhadores. Sua pena — de morte! —, contrariando o princípio constitucional-penal da intranscendência ou da pessoalidade, terá seus efeitos espraiados para muito além do condenado. Atingirá, diretamente, os trabalhadores brasileiros e a fiscalização dos seus mais comezinhos direitos.
Pior: o próprio condenado é inocente!
O Ministério do Trabalho não merece pena tão severa. Não se condena órgãos ou instituições pelo que fazem em seu nome. Imputam-lhe falsamente responsabilidade que é só daqueles que, ocupando transitória e politicamente (na má acepção da palavra) parcela de poder, desvirtuaram-lhe a finalidade.
Como se dará o retalhamento das funções do Ministério do Trabalho? Parte será atribuída ao Ministério da Justiça, outra ao Ministério da Economia e, o que restar, ao Ministério da Cidadania, anunciam seus algozes.
Em comparação metafórica excessivamente exagerada, com o único propósito de realçar a importância e conscientizar sobre a gravidade da medida, lembra ela a passagem bíblica da crucificação, quando, logo após imolarem Jesus, os soldados dividiram suas vestes e lançaram sorte sobre sua túnica.
Cumprindo-se a profecia do governo eleito, tal qual na imolação do Cordeiro de Deus, serão fatiadas as atribuições do Ministério do Trabalho e a sorte estará igualmente lançada para o trabalhador brasileiro.
Valendo-me de outra metáfora, lançarão também sal grosso sobre os direitos sociais fulminados, para que não mais germinem, a exemplo do que outrora fizeram com o mártir e inconfidente mineiro alferes Joaquim José da Silva Xavier, que após o esquartejamento teve o produto espalhado pelo chão da casa em que morava para “purificação” do terreno?
Lembrem-se todos: o alferes é hoje nosso herói brasileiro, Tiradentes. Além de ter seu nome inscrito no Livro dos Heróis da Pátria, é patrono cívico do Brasil (Lei 4.897/65) e das polícias civis e militares dos Estados.
A sentença condenatória de Joaquim José da Silva Xavier, expressa o artigo 3º da citada lei, “[…] não é labéu que lhe infame a memória, pois é reconhecida e proclamada oficialmente pelos seus concidadãos, como o mais alto título de glorificação do nosso maior compatriota de todos os tempos”.
Também assim, direitos conquistados a duras penas pelos trabalhadores, à custa mesmo de sangue, suor e lágrimas, não podem, mesmo em terreno hostil como o de tempos recentes e presente, soçobrar impunemente, sem que, no futuro, tenham seu valor reconhecido e desabrochem, ainda mais vigorosos, relegando-se ao oblívio seus carrascos.
Estou entre os 11.094.698 brasileiros que votaram nulo (8.608.105) ou branco (2.486.593) no segundo turno das últimas eleições para o mais alto cargo da Nação. Não me sentia representado pelo presidente eleito. Também não por seu adversário. Pela primeira vez na vida, anulei meu voto.
Não obstante, uma vez eleito, ele é o presidente da República Federativa do Brasil, do meu país, restando-me torcer para que faça um excelente governo, pois do seu êxito dependerá o destino dos brasileiros e o meu próprio.
Por isso rogo-lhe: não faça ou permita que façam isso, senhor presidente.
No início de novembro, creditaram à vossa excelência o anúncio do fim do Ministério do Trabalho. Dias depois, que seria Ministério “[…] disso, disso, disso e do Trabalho”. Agora isso!
A inconstância soa como desprezo, menoscabo, insulto mesmo aos trabalhadores brasileiros.
Mesmo na criação, foi Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. O Trabalho veio antes por razões de obviedade ululante: é de trabalho humano que estamos tratando, da dignidade que deve revesti-lo.
Ainda que, conforme proposta intermediária, não perdesse o status de ministério, ser “disso, disso, disso e do Trabalho” já seria, portanto, uma afronta, um desrespeito à dignidade e decência que deve ser conferida à pasta e ao ser — humano — trabalhador.
A extinção do Ministério do Trabalho colide frontalmente com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas (ONU), a cognominada Agenda 2030, da qual o Brasil é signatário, especialmente com o ODS 8, que prega trabalho decente e crescimento econômico e concita o mundo a promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, o emprego pleno e produtivo e o trabalho decente para todos.
A meta 8.7 do ODS 8, estipula que deverão ser tomadas “[…] medidas imediatas e eficazes para erradicar o trabalho forçado, acabar com a escravidão moderna e o tráfico de pessoas, e assegurar a proibição e eliminação das piores formas de trabalho infantil, incluindo recrutamento e utilização de crianças-soldado, e até 2025 acabar com o trabalho infantil em todas as suas formas”.
Ora, como enfrentar o trabalho escravo e combater o trabalho infantil sem um Ministério do Trabalho forte? Para flagelos de tais matizes, nem sequer fiscalização eletrônica é possível. Só é capaz de detectar e coibir a exploração a fiscalização presencial, física, por auditores do Trabalho corajosos e devidamente capacitados, como aqueles que perderam a vida em emboscada de 28 de janeiro de 2004, na conhecida chacina de Unaí, em Minas Gerais.
Honremos a memória desses combatentes de exploração do trabalho humano.
A extinção do Ministério do Trabalho, portanto, já respondendo à pergunta formulada no título, interessa aos escravagistas e exploradores do trabalho infantil e humano, aos assassinos de auditores fiscais, como os mandantes de Unaí. Esses, sem dúvida, serão beneficiados pela estapafúrdia medida.
“Proteger os direitos trabalhistas e promover ambientes de trabalho seguros e protegidos para todos os trabalhadores, incluindo os trabalhadores migrantes, em particular as mulheres migrantes, e pessoas em empregos precários.” É a meta 8.8 do ODS 8 da ONU, outra que merece ser realçada e cumprida.
Como o Brasil fará isso sem um Ministério do Trabalho forte e atuante, ainda mais agora, com o enfraquecimento dos sindicatos pelo abrupto fim da contribuição sindical, que, a par de importar renúncia fiscal da parte que cabia à União, deles subtraiu oxigênio vital, sem nenhuma contrapartida?
Aos que pregam o contrário, aí sim interessa também o fim do Ministério do Trabalho. Aos bons empresários, àqueles que cumprem a legislação trabalhista, e que são maioria, não interessa a extinção da pasta.
A precarização, a pejotização, a informalidade nas relações de trabalho também não consultam aos melhores interesses da nação. Tornam desleal a concorrência, enfraquecem os bons empregadores e cumpridores da legislação, promovem a balbúrdia, aniquilam o sistema previdenciário.
A morte e esquartejamento do Ministério do Trabalho, portanto, interessa, sim, aos que precarizam o trabalho humano, aos que não pagam sequer verbas rescisórias, aos que cometem fraudes nas relações trabalhistas, uma minoria barulhenta e que, explorando a classe trabalhadora, abarrota os tribunais com ações que, na sua maioria, reivindicam direitos básicos, como registro em carteira (CTPS) e verbas rescisórias não satisfeitas.
A esses, interessa avançar sobre os direitos sociais, exterminar a legislação de proteção, enfraquecer o Ministério Público do Trabalho, extinguir a Justiça do Trabalho, revogar, se possível, a própria Lei Áurea, de 1888.
É certo que o Ministério do Trabalho já vinha sendo sucateado por governos anteriores. Os cerca de 2.300 auditores fiscais atualmente existentes não dariam conta, sequer, de fiscalizar os shoppings brasileiros em uma só ação concentrada, como já foi dito na própria sede do órgão.
A pretexto de “reforma trabalhista”, promoveram, pouco mais de um ano atrás, autêntica demolição na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Se num primeiro momento, por temor dos trabalhadores de responder por sucumbência parcial que antes não existia, reduziu-se, artificialmente, o número de ações trabalhistas ajuizadas, o potencial de litigiosidade da “deforma”, pelas inconsistências técnico-jurídicas que a revestem, é elevadíssimo. O tempo dirá!
Estão querendo desestruturar e sucatear o mundo do trabalho.
Os recentes cortes promovidos no orçamento da Justiça do Trabalho, motivados confessadamente por razões nada republicanas; a campanha difamatória encetada até por quem não tem compreensão e amadurecimento suficientes sequer para aquilatar a importância da Justiça do Trabalho; as ameaças de enfraquecimento do Ministério Público do Trabalho e da Justiça do Trabalho, caso a ação dos procuradores e a hermenêutica dos juízes não agradem aos poderosos de plantão, enfim, a pretensão de coarctar até mesmo a convicção jurídica, passaram a fazer parte do cotidiano desse ramo especializado do sistema de Justiça.
Lastimável! Esquecem-se os detratores de lição lapidar do início da última década do século XIX: não existe trabalho sem capital nem capital sem trabalho. Deve haver harmoniosa convivência entre ambos, como pregou, na Encíclica Rerum Novarum, de 15 de maio de 1891, o Papa Leão XIII.
Para promover tal harmonização, imprescindíveis Ministério do Trabalho, Ministério Público do Trabalho e Justiça do Trabalho fortalecidos.
Maltrataram, recentemente, o Ministério do Trabalho com indicações políticas (ou politiqueiras) desastrosas. Desmoralizaram-no até não mais poder.
Não reivindique para si, no entanto, senhor presidente eleito, o extermínio do Ministério do Trabalho. Sua biografia não merece. A história não perdoará tamanho ultraje. Ao contrário, fortaleça-o, revitalize-o. Realize concursos, complete o quadro de auditores fiscais, faça com que a legislação trabalhista seja fielmente cumprida. Certamente desagradará alguns poucos, aqueles, barulhentos, já referidos. Mas fará justiça à classe trabalhadora.
José Roberto Dantas Oliva é advogado, juiz do Trabalho aposentado, mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP, professor, jornalista e radialista.