Entrevista: A luta das brasileiras por igualdade no trabalho

Nas primeiras décadas do século 20, as mulheres tinham presença relevante nas fábricas e já tomavam parte nos movimentos por direitos trabalhistas no Brasil. Este é o tema do livro “Os Direitos das Mulheres: Feminismo e Trabalho no Brasil (1917 – 1937)”, de Glaucia Fraccaro, que investiga a regulamentação do trabalho feminino no período, mostrando as articulações e pressões que antecederam a aquisição de direitos como a licença-maternidade e a previsão formal de igualdade salarial entre mulheres e homens.

Nesta entrevista, publicada originalmente pelo site Nexo, Faccaro fala sobre sua pesquisa, abordando a participação das mulheres no movimento por melhores condições de trabalho, suas pautas, os principais marcos históricos na legislação que garantiram a elas direitos no mundo do trabalho e as relações entre movimento operário e feminista no Brasil. Confira a entrevista:

Quando e em que contexto as mulheres começaram a se organizar por melhores condições de trabalho no Brasil?

Glaucia Fraccaro – Bem antes do começo da minha pesquisa, cujo início é o ano de 1917. Há várias formas de compreender a busca por direitos que não estão restritas à atuação de sindicatos e partidos, ainda que eles sejam instrumentos poderosos de lutas. Me debrucei sobre o trabalho dito livre no começo do século 20. O marco da pesquisa é 1917 porque foi o ano das grandes greves na cidade de São Paulo, onde o trabalho urbano se desenvolvia como exceção, em relação ao restante do Brasil.

Nessa época, que tipo de trabalho remunerado as trabalhadoras brasileiras realizavam?

Glaucia Fraccaro – O Censo de 1920 oferece indicadores parecidos com os dias de hoje. De acordo com essa fonte (e com os cálculos de Paul Singer e Felícia Madeira, que fizeram contas e adaptações que permitem as comparações) as mulheres estavam, em sua imensa maioria, no trabalho rural. Esse dado é fácil de explicar se a gente pensar que o Brasil inteiro se dedicava à produção agrícola nesse período, na plantação do café, e dos gêneros que sustentavam a referida produção. O segundo maior posto de trabalho ocupado por mulheres era a indústria (pouco mais de 25%), o terceiro era o comércio (cerca de 20%), seguido, numa proporção muito parecida, pelo trabalho doméstico remunerado.

Quais eram suas principais pautas?

Glaucia Fraccaro – A reivindicação dos sindicatos era a bandeira do trabalho igual para o salário igual. O motivo era bem concreto, já que, no setor de confecções, em 1920, por exemplo, uma mulher chegava a ganhar metade do salário de um homem, na mesma função. No entanto, a luta por direitos das mulheres corria, também, por fora do sindicato. E a pressão que as trabalhadoras exerciam nas fábricas resultou na conquista de benefícios como licença-maternidade e atenção médica antes mesmo que isso se tornasse lei, no tempo do Getúlio Vargas. Nas greves de 1917, denúncias de assédio sexual apareceram com alguma frequência na imprensa operária Os empresários (donos das fábricas têxteis de São Paulo e Sorocaba) trocavam correspondências sobre como manter tais benefícios eram providências fundamentais para evitar greves e motins. Numa análise a contrapelo, a pressão que elas exerciam ficava evidente.

No mundo do trabalho, quais opressões as trabalhadoras daquela época sofriam especificamente por ser mulheres? Isso aparecia nas suas reivindicações?

Glaucia Fraccaro – Durante as greves de 1917, as denúncias de assédio sexual (que não tinham esse nome, eram tratadas como “abuso”) apareceram com alguma frequência na imprensa operária. Elas relatavam que sofriam esse assédio dos chefes de seção. Encontrei também pautas que envolviam, além do aumento de salário, a instalação de um lugar separado para que elas pudessem trocar de roupa. No entanto, até mesmo a reivindicação de salários melhores envolvia a desigualdade em relação ao ganho dos homens.

Como sua presença nesse movimento e nas fábricas era então percebida por trabalhadores homens também organizados politicamente?

Glaucia Fraccaro – Na fábrica, eu tive mais dificuldade para observar porque não encontrei muitos relatos (nem na imprensa, nem nas fontes da polícia). No sindicato, encontrei um movimento muito interessante. Já nos anos 1930, o sindicato da categoria têxtil chegou a organizar uma pauta de reivindicação para apresentar ao Ministério do Trabalho. Eles pediam a substituição de mulheres por homens nos postos das fábricas, porque queriam evitar o que consideravam “um espetáculo ao mesmo tempo ridículo, vergonhoso e revoltante: o de ver a mulher na fábrica e o marido em casa cuidando dos serviços domésticos”. Pouco tempo depois, o mesmo sindicato decidiu por encampar a luta pela igualdade salarial, deixando pistas de pressões políticas internas pela luta das mulheres.

Quais foram os principais marcos históricos da nossa legislação no sentido de assegurar direitos às mulheres e igualdade de gênero no trabalho?

Glaucia Fraccaro – Desde os anos 1920, havia alguma regulação sanitária na cidade de São Paulo que estabelecia a proibição do trabalho noturno [de mulheres] e o trabalho de crianças. Houve também, no mesmo período, um grande debate parlamentar sobre licença-maternidade, mas que não virou lei. A conquista mais importante do século 20 foi a mudança constitucional que garante direitos às trabalhadoras domésticas Esse acúmulo sustentou, mais tarde, o decreto de 1932 que proibia a desigualdade salarial e estabelecia a licença maternidade em 30 dias. O decreto era parte do Código do Trabalho de Getúlio Vargas que procurava incorporar todas as classes sociais no governo do país, mas pode ser entendido também como parte do acúmulo da pressão das trabalhadoras no movimento operário. A conquista mais importante do século 20 é a mudança constitucional que garante direitos às trabalhadoras domésticas. Desde o final do século 19, o emprego doméstico é um dos setores que mais emprega mulheres nas cidades brasileiras. Cidadania pode ser definida pelo acesso aos direitos sociais. As mulheres empregadas no serviço doméstico haviam ficado de fora da CLT e não foi por mero acaso: Getúlio Vargas pretendia legislar para a classe trabalhadora que ele gostaria de ter, como um projeto político, reduzindo o trabalho rural, por exemplo. De todo modo, transformar as trabalhadoras em sujeitas de direitos iguais foi uma forma de valorizar o trabalho doméstico, interferindo na vida de milhões de mulheres, principalmente, mulheres negras.

Quais consequências a criação do Estado Novo teve para os direitos das mulheres, sobretudo no âmbito do trabalho?

Glaucia Fraccaro – O Estado Novo suspendeu todo o debate que a sociedade vinha fazendo sobre a igualdade. Bertha Lutz, que era deputada na época, havia reunido um grande acervo de proposições legislativas com o objetivo de tornar o ordenamento jurídico mais justo para as mulheres. Ela propôs uma revisão do código civil e a criação de uma espécie de “ministério das mulheres”. Tudo isso foi cancelado pela ditadura, pelo rompimento com o pacto constitucional.

Qual era a relação do movimento de mulheres por direitos trabalhistas com o movimento feminista da época?

Glaucia Fraccaro – Essas duas histórias foram, durante muito tempo, contadas em separado. No entanto, é possível perceber que a pressão política das trabalhadoras e de mulheres do Partido Comunista foi algo que alterou a agenda do movimento feminista organizado. Se a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino havia estabelecido como prioridade a luta pelo sufrágio, em 1924, a mesma organização passou a encampar a condição das trabalhadoras no seu movimento, no final dos anos 1930. A história do movimento feminista é contada a partir da lógica de quem pensa o movimento e raramente considera a experiência de quem luta pela emancipação das mulheres no mundo do trabalho Não sem conflito, é claro. O feminismo é um campo político e, como tal, é permeado por disputas e se transforma a partir delas.

Como a historiografia do feminismo costuma lidar com a luta das mulheres no mundo do trabalho?

Glaucia Fraccaro – A história do movimento feminista é contada, com frequência, a partir da lógica de quem pensa o movimento. É como se a consciência da ação feminista estivesse apenas no pensamento filosófico ou político, e não na vida das pessoas. Raramente tais interpretações consideram a experiência de quem luta pela emancipação das mulheres, no mundo do trabalho (rural ou urbano), nas bases da sociedade. Por esse motivo, a história do trabalho e do feminismo andaram em separado, já que a expectativa sempre foi a de acumular politicamente a partir do momento em que as mulheres se organizam como mulheres. No entanto, há mais no feminismo do que polêmicas e é preciso perceber como mulheres definiram essa luta de emancipação em movimentos amplos, de luta por direitos, pela terra, por igualdade racial, por participação política.

Como você vê a condição das mulheres trabalhadoras no Brasil hoje?

Glaucia Fraccaro – Há uma noção de que não regular as relações de trabalho permitirá que o capitalismo se desenvolva livremente, nem que seja a custo de jornadas exaustivas e baixos salários, que não alimentarão a economia. Isso é prejudicial em várias dimensões e afeta toda a sociedade; muitos especialistas já demonstraram isso com mais propriedade. A Reforma Trabalhista revogou explicitamente aspectos importantes da CLT: a proibição do trabalho de gestantes em local insalubre, a regulação sobre a pausa para amamentação e a igualdade salarial. No geral, as medidas que esvaziam as políticas sociais do Estado afetam especialmente as mulheres A pausa para amamentação, por exemplo, passa a ser de livre negociação com o empregador, mas coloca, no regramento, os interesses da empresa acima das recomendações da saúde. Essas alterações no regramento jurídico ferem, inclusive, numerosos acordos internacionais sem aviso prévio, na medida em que convenções relativas à igualdade salarial e ao trabalho doméstico foram travadas entre o Brasil e a Organização Internacional do Trabalho ao longo de todo o século 20. No geral, as medidas que esvaziam as políticas sociais do Estado afetam especialmente as mulheres. Diminuir o número de equipamentos públicos em nome do saneamento das contas, por exemplo, não faz desaparecer crianças, idosos ou pessoas doentes. Pelo contrário, todo esse trabalho de cuidados vai continuar sendo realizado, especialmente, pelas mulheres.

** Glaucia Fraccaro é doutora em História Social do Trabalho pela Unicamp, professora da PUC-Campinas e foi Coordenadora de Autonomia Econômica das Mulheres do Governo Federal entre 2011 e 2013.

Nexo Jornal

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