Populismo: O que é, o que foi e o que pode ser
A principal ideia transmitida pelos diversos fenômenos populistas é a ideia de que a sociedade é dividida entre um povo e uma elite, inimiga, por esta ser a responsável pelo não atendimento das diversas demandas populares. Essa concepção de divisão social, não necessariamente classista, independente da ideologia que acompanha o populismo e tende a se manifestar em democracias permeadas por crises de hegemonia política. O populismo se vale de uma linguagem mobilizadora, sempre veiculada por um líder carismático que tende a radicalizar, simplificar e dotar de emoção o discurso, para transformar indivíduos em sujeitos políticos. É por meio dessa articulação discursiva que o líder opera a constituição de uma identidade popular, um “povo”, que é levado a interpretar a realidade social de forma binária, como se a sociedade atravessada fosse por uma fronteira antagônica: o povo x os inimigos do povo.
Normalmente, menos na academia e mais na mídia, o termo “populismo” é utilizado para designar pejorativamente fenômenos políticos. Rosanvallon (2011), por exemplo, aborda criticamente o populismo, entendendo o fenômeno como um óbice ao ideal de aprofundamento democrático. O autor associa o conceito a três concepções principais, quais sejam: 1) à simplificação de se considerar um povo como um ente homogêneo em oposição a uma elite, também considerada homogênea; 2) à rejeição aos procedimentos institucionais próprios das democracias liberais, consubstanciada no apelo por plebiscitos e referendos e 3) à simplificação em relação aos laços sociais, que culmina na estigmatização do “Outro”, como, por exemplo, no caso da perseguição dos populistas de extrema direita aos estrangeiros.
No Brasil, um exemplo clássico dessa concepção negativa do conceito, para além da cobertura apedeuta da imprensa, é a abordagem de parte da sociologia paulista sobre a República Liberal (1946-1964), porque tendeu a ocultar aspectos positivos embutidos em uma incipiente experiência de democracia de massas. Primeiramente, a história das lutas dos trabalhadores, considerados alienados e passivos, foi negligenciada. Em segundo lugar, essa abordagem tendeu a desvalorizar uma série de conquistas sociais e de desenvolvimento oriundos das políticas públicas dos governos ditos “populistas”, acusados de serem manipuladores e de desviarem as massas do devir revolucionário. Além disso, se em um primeiro momento a ascensão política das massas é a grande novidade do período, com o tempo, isso se torna um dado da democracia brasileira. Qualquer vitória política, portanto, exigirá do líder estratégias de apelo às massas para formar uma maioria social na disputa pelo poder.
Caso aceitássemos a conveniência do termo “populista” para caracterizar os governos progressistas da República Liberal, deveríamos aceitar que os opositores, notadamente os udenistas mais reacionários, refratários ao nacional-estatismo, fossem considerados “antipopulistas”. Porém, tanto políticos “populistas” quanto “antipopulistas” se valeram de elementos discursivos e de práticas políticas populistas no embate político do período. Portanto, definitivamente, a disputa política essencial da República Liberal não se deu entre populistas e antipopulistas.
Afinal, a quem serve a reprodução insidiosa de uma concepção pejorativa de governos nacionalistas, reformistas e populares da República Liberal? Não seria isso uma operação clandestina para se atribuir à oposição udenista, aos “antipopulistas”, um simpático significante relacionado a sentidos como austeridade orçamentária, espírito tecnocrático e liberalismo político e econômico? E quanto à palavra populismo, como não escaparia a sentidos relacionados ao estatismo, à irracionalidade econômica, ao assistencialismo, à corrupção e à manipulação? Lembremos de discursos de Carlos Lacerda ao criticar o “populismo” se valendo de um linguajar repleto de elementos populistas.
É preciso ter em mente que a disputa política fundamental da “Democracia Populista” (IANNI, 1968) se deu em torno projetos de país e ideologias opostas. Os conceitos de populismo e de antipopulismo tendem a retirar da disputa política o crucial elemento ideológico. Tais conceitos não explicam que a verdadeira disputa do período se deu entre diferentes projetos políticos, na forma de disputada competição política entre nacional-estatismo e liberalismo econômico, entre reformismo e conservadorismo, entre desenvolvimento autônomo e subdesenvolvimento associado que estiveram no centro da conflagração política ao longo de toda República Liberal.
Retomando discursos de Getúlio Vargas à época, há reiteradas manifestações que exortam um ideal trabalhista de bem comum, de harmonia entre capital e trabalho, insistentemente orientando os trabalhadores a se organizarem para disputar influência política frente a outros grupos mais organizados na rinha social por recursos escassos. Mas Getúlio também operava claramente como líder populista nos momentos politicamente mais tensos, ao reproduzir discursos radicalizados, procurando mobilizar um “povo”, estabelecendo uma clara fronteira social antagônica entre as “aves de rapina” e os “trabalhadores do Brasil”.
Já em Lacerda, o anticomunismo se acopla ao populismo na defesa do liberalismo contra a ameaça vermelha, atribuindo aos seus adversários políticos, independente da diversidade de suas ideologias, a pecha de “comunistas”, “irrecuperáveis para a democracia”. A conjuntura que permeia seu discurso de posse como governador da Guanabara, por exemplo, é de ascensão das direitas. Por isso, diferente do ambiente político de seus adversários, ele não enfrenta uma conjuntura de profunda crise. Mas mesmo nessa conjuntura favorável ao projeto político do udenista, encontramos diversos elementos populistas em seu discurso, o que ratifica a existência de um “populismo antipopulista”, ainda que neste discurso de posse não estivesse presente aquela reconhecida virulência retórica e radicalidade discursiva vocalizada por esse nato populista de direita.
Por sua vez, no discurso de Jango da Central do Brasil há a contraposição entre a “democracia do povo” e a “democracia deles”, na crítica ao formalismo liberal, que entende a democracia como um simples conjunto de procedimentos formais de participação eleitoral, em contraposição à “democracia substantiva”, que, grosso modo, pressupõe que a igualdade material entre indivíduos deve ser um requisito para um sistema que se queira realmente democrático. Jango também estabelece uma clara fronteira social antagônica ao fustigar os elitistas refratários ao reformismo social e à participação popular na política. O líder, portanto, mobiliza um povo contra uma elite considerada inimiga do povo, da pátria e da democracia. Um populismo à esquerda, nacionalista e reformista. Nesse sentido, impende relacionar as potências inscritas neste populismo de esquerda a um recente artigo de Nancy Fraser (2018), que enxerga o populismo como uma necessidade para a energização da democracia americana. Ao analisar a ascensão de Trump nos EUA, ela defende a ideia da formação de um bloco contra-hegemônico na forma de um “populismo progressista” para fazer frente tanto ao “neoliberalismo progressista”, à esquerda, quanto ao “populismo reacionário”.
No Brasil de hoje temos no poder um populista reacionário que busca, anacronicamente, dividir o país entre homens de bem e “comunistas”, entretendo a classe média com discursos estapafúrdios enquanto aniquila a soberania da pátria com a benção das elites. Em um contexto de elevada polarização social, tentativas de se deter o neofascismo nos marcos da democracia liberal são fúteis. Assim, um populismo progressista e reformista pode não apenas vencer o populismo reacionário e neoliberal de Bolsonaro, como também oferecer ao povo uma perspectiva de futuro na forma de um projeto nacional reformista e nacionalista. Para tanto, não será preciso qualquer esforço de se forjar os “inimigos do povo”. Nossos inimigos continuam os mesmos: são as mesmas “aves de rapina” denunciadas por Getúlio e os mesmos liberais entreguistas e pseudodemocratas expostos por Jango.