2019, ano da resiliência na ciência
Por trabalhar na fronteira do conhecimento, tentando muitos caminhos diferentes e inexplorados, o cientista precisa ser, acima de tudo, resiliente
Essa semana iniciamos um novo ano. Como cientista, eu reconheço que o instante no tempo em que decidimos comemorar mais uma volta do nosso planeta em torno do sol é arbitrário (não há, afinal, nenhum motivo astronômico para a data). Mas é inevitável pensar no ano que passou e no que queremos para 2020 nessa época.
Dentre meus colegas cientistas, prevalece a impressão que 2019 foi um ano difícil. Mundialmente se vê uma tendência, impulsionada pela difusão facilitada da informação, de pessoas sem qualificação que se pronunciam veementemente, ganhando mais voz que o consenso do conhecimento científico. Literalmente, se usa a ciência para negar a ciência. Infelizmente, a vacinação é um dos muitos alvos da boataria anticientífica, e as consequências são trágicas: a Organização Mundial de Saúde estima que mais de 140 mil pessoas morreram de sarampo em 2019, sendo a maioria menores de 5 anos de idade, em grande parte por causa da falta de cobertura vacinal adequada. Espero sinceramente que essa situação calamitosa sirva, pelo menos, como um estopim para dizimar o lamentável movimento contrário a vacinas no futuro próximo.
No Brasil, essa situação de questionamento científico mundial é muito agravada, pois em 2019 vimos nossos dirigentes nacionais (justamente aqueles que deveriam ser os maiores apoiadores da ciência de qualidade) negar o valor do cientista brasileiro. O financiamento de jovens cientistas (que são, na sua maioria, bolsistas de mestrado e doutorado) foi gravemente reduzido durante o ano, incluindo ameaças de não se pagar nem mesmo contratos já assinados. O financiamento federal a projetos de pesquisa praticamente desapareceu, e há muitas incertezas sobre o futuro das principais agências que fomentam a pesquisa nacional.
Vimos também nossos dirigentes fazerem repetidas afirmações completamente inverídicas e depreciativas sobre as nossas universidades públicas. Sou a primeira a reconhecer que as universidades poderiam melhorar em diversos aspectos, mas, em realidade confirmada pela empresa privada internacional Web of Science Clarivate, 96% da produção científica brasileira é produto dessas mesmas universidades públicas. Negar essa realidade não é apenas mentir, mas consiste também em atacar as instituições brasileiras que mais podem contribuir com o nosso futuro e com a reconstrução da economia, tanto formando jovens profissionais quanto com o desenvolvimento de conhecimento e tecnologia.
Mas o cientista é, acima de tudo, resiliente. É uma característica necessária para uma profissão em que se trabalha na fronteira do conhecimento, tentando muitos caminhos diferentes e inexplorados para, ocasionalmente, achar novas propriedades do nosso universo. Como consequência, somente dentre meus conhecidos em áreas próximas, em 2019 vimos avanços científicos espetaculares: Foi desenvolvida uma nova molécula, chamada SAMbA, capaz de frear a progressão da insuficiência cardíaca. Demonstrou-se que um hormônio liberado pelos músculos em resposta ao exercício ajuda a evitar os danos da doença de Alzheimer. Descobriram maneiras mais eficazes de matar células indesejadas (como células do câncer), usando moléculas ativadas por luz. Descobriram que a quantidade de uma proteína específica no sangue está relacionada à chance de se ter um infarto. Todos esses achados publicados internacionalmente foram reportados em 2019 por cientistas brasileiros de instituições públicas.
Em 2020, nem eu nem meus colegas iremos desanimar ou parar em vista das dificuldades de 2019. Continuaremos trabalhando, resolutos em nossa vontade de fazer a melhor ciência possível, internacionalmente reconhecida, e de transmitir nossos achados da maneira mais eficaz que pudermos. Mas precisamos da ajuda de todos os brasileiros para poder cumprir esse objetivo plenamente. Precisamos que todos entendam que ciência é um bem da sociedade em geral, sem classe social, demagogia, tendência política ou qualquer outro tipo de distinção pessoal. Precisamos que todos reconheçam que a ciência nacional é o melhor investimento público que podemos fazer para o futuro e que neste milênio o conhecimento é nosso bem mais valioso. Precisamos que o brasileiro apoie a geração e transmissão de ciência verdadeira, e exija que essa seja uma política nacional.
Desejo que 2020 seja o ano da consciência da importância da ciência.
Alicia Kowaltowski é médica formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas. Atua como cientista na área de Metabolismo Energético. É professora titular do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. É autora de mais de 150 artigos científicos especializados, além do livro de divulgação Científica “O que é Metabolismo: como nossos corpos transformam o que comemos no que somos”. Escreve quinzenalmente às quintas-feiras.