À deriva social com ODS fora do PPA, fusão de pisos e extinção do Fundeb
Por Élida Graziane Pinto
A imagem de nau à deriva em um mar revolto de interesses contraditórios explica grosseiramente a crise de identidade constitucional em que vivemos. Quase na iminência de um naufrágio coletivo, a irracionalidade se alastra para a (des)ordenação de prioridades no ciclo orçamentário e coloca em risco a própria continuidade dos serviços públicos essenciais.
Grupos de pressão político-econômica e agendas controversas nos costumes disputam a desconstrução da Constituição de 1988. Querem desobrigar, desindexar e desvincular nosso ordenamento dos compromissos orçamentário-financeiros para com os direitos fundamentais. Enquanto isso há quem advogue que, ao invés da Constituição, deveríamos nos guiar primordialmente por crenças religiosas[1], as quais, por seu turno, buscam ampliar subsídios para templos[2]. Noutro influxo de pressões, o país se nega ao propósito de perseguir prioritariamente os objetivos do desenvolvimento sustentável em seu plano plurianual relativo ao quadriênio 2020-2023[3], o que não há de gerar maior constrangimento nos agentes econômicos, desde que seja assegurada o quanto antes uma pouco transparente e fiscalmente temerária autonomia do Banco Central[4].
Não há rumo compartilhado amplamente entre nós. Estamos socialmente à deriva em meio a tantas tentativas de destruição da bússola constitucional que orienta nosso norte comum. Ondas e ruídos de interesses patrimonialistas se superpõem em meio ao diversionismo religioso e ao autismo econômico, a exemplo do projeto vetado[5] que pretendia tornar ontologicamente inexigível toda e qualquer contratação de advogado e contador pela Administração Pública.
Não sabemos o quanto custam as pretensões de (i) resguardar o subsídio da tarifa de energia elétrica em favor dos templos religiosos; (ii) contratar sem licitação quase 2 milhões de advogados e contadores presumidamente “notórios especializados” em serviços abstrata e alegadamente singulares, bem como (iii) dar ao Banco Central uma autonomia opaca, a despeito de extremamente onerosa e arriscada… Tão somente sabemos que, quando todos querem passar adiante uns dos outros, isso só faz acelerar o risco de naufrágio civilizatório.
Interessante resgatar, nesse contexto, o pessimista alerta de Zeina Latif[6] sobre sermos complacentes com o baixo crescimento econômico, por não enfrentarmos a desigualdade e o risco da mediocridade educacional: “Temos uma agenda lenta para crescimento robusto e também não temos um projeto de como endereçar a desigualdade no país. Não é só uma questão moral. Ela [desigualdade] enfraquece a economia e também não ajuda no fortalecimento da própria democracia.”
Mas aludida falta de projeto para a desigualdade não se trata de mero esquecimento da agenda social. O que está em curso, diferentemente disso, parece ser uma deliberada tentativa de quebrar o mastro fiscal da nossa embarcação constitucional, ao qual nossa sociedade se prendeu – em 1988 – para proibir retrocessos ou mesmo a insuficiente proteção orçamentária de determinados direitos fundamentais nucleares.
A mirada para este 2020 apresenta um horizonte adicional de turbulências no mar revolto da democracia brasileira, sobretudo, no que se refere à proposta de fusão dos pisos em saúde e educação trazida pela PEC 188/2019 e ao risco de extinção do Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – FUNDEB.
A unificação dos pisos em saúde e educação é promessa falsa de aprimorar sua gestão orçamentária. O que se almeja é deduzir no cômputo de um o que se gasta excedentemente no outro. No limite, a tese admite até mesmo que o gestor possa vir a zerar o gasto educacional para aplicar de forma supostamente prioritária na saúde da população cada vez mais idosa.
Esse jogo de soma zero é inconstitucional e ilusório. Os pisos não só são individuais, como também há a garantia de que sejam concursados os professores, o que estabiliza a despesa obrigatória com pessoal ativo da educação, à luz do art. 206, V da CF.
Por outro lado, é inadmissível reduzir proporcionalmente carga horária e salário dos servidores da educação e saúde nos Estados e Municípios em crise fiscal. São serviços públicos essenciais, que não devem ser descontinuados, nem restringidos com o cômputo de inativos nos pisos. Fraudes contábeis não podem acobertar crimes de responsabilidade de alguns prefeitos e governadores.
Mesmo os argumentos de transição demográfica e envelhecimento populacional não se sustentam, diante do déficit de quase 7 milhões de vagas em creches e da pífia oferta de ensino em horário integral. Tampouco há valorização remuneratória docente efetiva, na forma do art. 206, VIII da CF. É mesquinho, portanto, falar que há dinheiro sobrando na educação básica obrigatória brasileira, quando chegamos ao sexto ano da vigência do Plano Nacional de Educação com descumprimento[7] de 70% das suas metas e estratégias.
Faltam equipes de saúde da família, mas políticos querem liberdade para gastar mais com hospitais de pequeno porte, por meio de emendas parlamentares desatentas ao planejamento sanitário. O quadro é agravado com demandas judiciais de caráter individual alheias à pactuação federativa que ordena o SUS.
Saúde e educação são subfinanciadas pela União, além de terem seus gastos falseados pela maioria dos Estados e Municípios, de modo que impera uma guerra fiscal de despesas na federação. Ao invés de esvaziar os pisos, é preciso fortalecer o planejamento setorial de cada área, bem como resguardar que os recursos do fundo social do pré-sal sejam, de fato, fontes adicionais de custeio, diferentemente do que pretende a PEC 188/2019.
Por outro lado, é igualmente desastrosa a hipótese de chegarmos a dezembro deste ano sem que tenha sido promulgada uma proposta de emenda constitucional que renove o FUNDEB (Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação).
Aludido fundo busca equalizar o rateio de parte dos recursos vinculados à educação, na forma do art. 212, para mitigar as distorções arrecadatórias existentes entre os entes da federação. O foco é o aluno matriculado nas redes públicas de ensino, cujo direito subjetivo à educação passa a estar lastreado em um valor anual mínimo de referência. O problema é que a vigência do FUNDEB fora definida tão somente até o final de 2020 no art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Em última instância, o que sempre se buscou amparar, com fulcro nos arts. 206, VII e 211, §1º da CF, foi a noção de que deveria ser fixado equitativamente piso de custeio correspondente ao custo identificável por cada aluno para assegurar os insumos mínimos capazes de indicar a qualidade da educação básica obrigatória (ou seja, custo aluno qualidade inicial – CAQi e custo aluno qualidade – CAQ, na forma das estratégias 7.21 e 20.6 a 20.8 do PNE).
A sistemática de 27 fundos estaduais de equalização federativa dos gastos educacionais trata-se de arranjo normativo criado pela Emenda 14/1996 (extinto FUNDEF), que não só foi renovado, como foi também aperfeiçoado pela Emenda 53/2006 (FUNDEB). A garantia apenas do ensino fundamental dos 7 aos 14 anos foi ampliada para a oferta também do ensino infantil pré-escolar e do ensino médio no conceito ampliado de educação básica obrigatória para todos os brasileiros dos 4 aos 17 anos de idade.
Antes da Emenda 14/1996 e da Emenda 53/2006, o gasto mínimo em educação em valores per capita era profundamente variável, na medida em que oscilava abruptamente conforme a capacidade arrecadatória de cada município ou estado. Tampouco a União exercia efetivamente qualquer esforço objetivo e coordenado de complementação em favor das redes públicas de ensino mais pobres. Na redação originária do art. 60 do ADCT na Constituição de 1988, havia tão somente a previsão genérica de que cinquenta por cento dos recursos educacionais referidos no art. 212 da Constituição fossem aplicados na eliminação do analfabetismo e na universalização do ensino fundamental.
Com o FUNDEF/FUNDEB, o desiderato da equidade do gasto educacional se tornou mais plausível, muito embora ainda haja distorções consideráveis na federação brasileira. Para ampliar sua metodologia e corrigir tais falhas distributivas, é que o Congresso tem se ocupado, há quase cinco anos, de debater a renovação do FUNDEB na PEC 15/2015[8], sobretudo no que se refere à expansão da participação federal no custeio da educação básica obrigatória.
Mas eis que chegamos a 2020, na premência do termo final dado pelo art. 60 do ADCT, com a falaciosa tese do Ministério da Economia, encampada pelo Ministério da Educação, de que supostamente não haveria margem fiscal[9] para ampliar a complementação federal ao FUNDEB.
Parecemos estar envoltos em uma repetição do debate sobre a insuficiente complementação federal ao FUNDEF, já duramente refutada pelo Supremo Tribunal Federal nas Ações Cíveis Originárias n.º 648, 660, 669 e 700 (julgadas conjuntamente procedentes). A omissão da União quanto à regulamentação do custo aluno qualidade inicial e, por conseguinte, sua insuficiente complementação ao FUNDEB também foi diagnosticada reiteradas vezes pelo Tribunal de Contas da União nos Acórdãos n.º 618/2014, 906/2015, 1897/2017, 717/2019 e 1656/2019.
Ao longo deste ano, o risco de extinção do fundo se faz presente, sobretudo, por força da estratégia meramente protelatória[10] e reducionista adotada pelos Ministérios da Economia e da Educação, de apresentação intempestiva de proposta alternativa, sem dialogar com o esforço que tem sido empreendido há cinco anos no Congresso no âmbito da PEC 15/2015. Segundo a Deputada Professora Dorinha[11], relatora da aludida PEC: “Imaginar que será possível criar, em um passe de mágica, uma contraproposta à altura, é subestimar o brasileiro e brincar com coisa séria. O Parlamento não vai pagar essa conta e, certamente, não se responsabilizará pelo desmonte da educação básica”.
É preciso aprimorar a eficiência e a equidade dos recursos educacionais, tanto quanto é necessário aportar mais recursos para o custeio da educação básica obrigatória, até para que não caiamos no “risco da mediocridade” suscitado por Zeina Latif, precisamente porque, no Brasil, somente em 2016 foi efetivamente universalizado o dever de oferta da educação básica dos 4 aos 17 anos e porque – ainda em 2019 – quase 53% da população adulta não havia concluído o ensino médio[12].
Com a curta série histórica de vigência do FUNDEB (2006-2020), ainda somos mediocremente um país de analfabetos funcionais clamando por alguma escolarização adicional, ainda que precária e de péssima qualidade. Sem ele, a tendência é de que mantenhamos a irrefletida prioridade para, por exemplo, subsídios religiosos, contratações inexigíveis e opaca autonomia da autoridade monetária, haja vista a restrição igualmente mantida de nossa capacidade analítica do quanto cada qual dessas escolhas custa ao conjunto da sociedade e como poderiam tais custos serem devidamente controlados/mitigados.
Se se consumarem os riscos de fusão dos pisos em saúde e educação e de extinção do FUNDEB, quebraremos os parcos instrumentos civilizatórios que nos mantiveram minimamente atrelados ao nosso compromisso constitucional de prioridade de custeio dos direitos fundamentais. Nossa democracia tende a ver acirrada a desigualdade e, com isso, ver-se ela própria naufragando em meio ao caos orçamentário das pressões fisiológicas de curto prazo eleitoral.
Para que escaparmos dessa deriva social, seria preciso que fossemos um país aderente ao nosso pacto constitucional e que houvesse consenso mínimo sobre nossas prioridades civilizatórias. Nossa bússola constitucional reclama de nós que busquemos empreender estruturalmente duas ações coordenadas:
– aprimorar o planejamento estatal que identifica legitimamente problemas como demandas prioritárias, para – a partir desse diagnóstico nuclear – avaliar prognósticos em termos de consistência técnica e economicidade. Tal concepção planejada do papel do Estado tem por compromisso finalístico a atividade dinâmica e plural de resguardar cumprimento progressivo aos direitos fundamentais. A clareza dos problemas e o teste das possíveis alternativas que se lhe apresentam como solução são medidas basilares que deveriam lastrear todas as escolhas governamentais, para que se passasse racionalmente a executar as metas físicas e financeiras do planejamento setorial e orçamentário de modo coerente e consistente ao longo do tempo, sem reinvenções da roda e descontinuidades patrimonialistas[13];
– qualificar as vinculações orçamentárias para associá-las substantivamente ao alcance de metas objetivas definidas nos seus respectivos instrumentos de planejamento setorial, com foco integrado na promoção do desenvolvimento sustentável. Tal medida se justifica, na medida em que resguardar a continuidade dos repasses para educação e seguridade social (dentro da qual se insere a saúde) é escolha constitucional inalienável que não só estabiliza seu custeio, como também impõe seu aperfeiçoamento intertemporal em torno de resultados socialmente definidos a cada ciclo de planejamento setorial e orçamentário.
Se, como bem provocara Zeina Latif, há de haver ousadia para superarmos o risco da mediocridade, então que sejamos ousados no debate da renovação do FUNDEB e na manutenção da higidez constitucional dos pisos em saúde e educação, qualificando-os conforme o respectivo planejamento setorial de cada área.
Ora, falta-nos projeto comum ou falta-nos compromisso com nossas prioridades civilizatórias já eleitas na Constituição de 1988? Em meio à deriva social na qual nos encontramos, falar em desenvolvimento sustentável e em vinculações orçamentárias é lutar para sobreviver ao naufrágio civilizatório que se avizinha.
[1] O slogan “Bíblia sim, Constituição não” tem sido usado como lema para pichações em muros e edificações, como se pode ler em https://piaui.folha.uol.com.
[2] O subsídio pretendido incidiria sobre o consumo de energia elétrica dos templos religiosos e seria arcado pelos demais consumidores, como debatido em https://politica.estadao.com.
[3] Conforme veto noticiado em https://www.camara.leg.br/
[4] Como suscitado em https://g1.globo.com/economia/
[5] Como se pode ler em https://www.conjur.com.br/
[6] Em entrevista disponível em https://valorinveste.globo.
[7] Como noticiado em https://portal.tcu.gov.br/
[8] Como se pode ler em https://www2.camara.leg.br/
[9] Em um cálculo metodologicamente controvertido, o governo chegou a contrapor o custo do Fundeb ao da aprovação da reforma da previdência, como se pode ler em https://oglobo.globo.com/
[10] Como suscitado em https://congressoemfoco.uol.
[11] Em nota divulgada em https://valor.globo.com/
[12] Como noticiado em https://g1.globo.com/educacao/
[13] Como suscitado por Bruno Carazza em https://valor.globo.com/
Élida Graziane Pinto é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).