Sinpro/RS: A periferia luta sozinha contra a pandemia

Em Porto Alegre, lideranças populares nas periferias mostram como a mobilização, a solidariedade e o voluntarismo salvam centenas de vidas, apesar da falta de apoio dos governos

Por Flavio Ilha

Em pleno pico da pandemia do novo coronavírus no Brasil, como previam as autoridades científicas e sanitárias do país, a situação de contaminação e mortes se agrava nos principais centros urbanos, além de cidades como Manaus, Belém, Fortaleza e Recife, e desafia as comunidades periféricas a sobreviverem em meio ao caos no sistema de saúde. Sem apoio do Estado, que se limitou a distribuir um auxílio financeiro insuficiente, que causou mais problemas que soluções, e sem condições concretas de cumprir com as práticas de isolamento, as próprias comunidades se organizam para combater a fome e a proliferação do vírus. Em Porto Alegre, a reportagem do Extra Classe acompanhou o esforço de lideranças populares nas maiores concentrações periféricas da capital e mostra como a mobilização, a solidariedade e o voluntarismo salvaram centenas de vidas – apesar da falta de apoio dos governos.

Um ruidoso grupo de homens levantava poeira no campinho de futebol do Jardim Planalto, no meio da tarde, ao contrário do que recomendam as normas de isolamento social na pandemia do novo coronavírus. Na torcida, famílias inteiras tomando chimarrão, crianças com bicicletas e bolas, idosos, técnicos informais comentando as jogadas.

Ao lado da quadra de areião, ativistas e lideranças comunitárias da Grande Cruzeiro, que congrega cerca de 32 vilas na periferia de Porto Alegre, combinavam ações de enfrentamento à crise provocada pelo vírus, em especial a falta de comida que atingiu as famílias mais vulneráveis. Volta e meia uma bolada atrapalhava a reunião improvisada.

Esse pessoal todo trabalhava de pedreiro, de mecânico, fazendo pintura. Agora estão sem ter o que fazer. As escolas também estão fechadas. Como é que vamos cobrar que fiquem nas suas casas, que às vezes é só um cômodo para quatro, seis pessoas? Não tem condições de fazer isolamento aqui”, relata Bruna Rodrigues, diretora da União das Associações de Moradores de Porto Alegre (Uampa).

A rotina se espalha por outras comunidades periféricas de Porto Alegre. Geralmente sem máscaras, com poucos cuidados de higiene, moradores organizam rodas de samba, churrascos, bailes funk. Levam uma vida quase normal, não fosse a redução drástica na renda das famílias. A tarefa de alertar sobre os riscos de contaminação é das lideranças comunitárias, já que a Prefeitura não é vista por essas bandas.

“Me sinto como se estivesse cuspindo contra o vento. A gente sabe que deveria insistir para que as pessoas ficassem em casa, mas como traduzir a pandemia para a vida cotidiana delas? É uma coisa muito distante, até porque os casos estão longe daqui, nos hospitais. Aqui não tem isso”, diz o presidente da União de Vilas, Ronaldo Souza – a organização que congrega comunidades da Grande Cruzeiro que foi reorganizada no final de 2019.

Em Porto Alegre, o vírus tem feito estragos relativamente pequenos em comparação com outras regiões do país. No final de abril, a capital beirava 450 casos notificados de Covid-19, a doença provocada pelo SARS-CoV-2, e menos de 20 mortes. A ocupação das UTIs, por outro lado, mal chegava aos 70%. Em termos de incidência, a cidade registrava 27 casos por cada grupo de 100 mil habitantes – número muito inferior a capitais como São Luís (128,6/100.00), Recife (115), Fortaleza (113) ou mesmo São Paulo (87,3) e Rio (54,4).

Mas os efeitos sobre as populações pobres, como logo perceberam Bruna e Ronaldo, além de outros líderes comunitários de Porto Alegre, foram devastadores. Além do risco de contaminação, a pandemia derrubou a renda das famílias. Moradora da vila Rio Branco, também na região da Cruzeiro, a diarista Ana Paula Ferreira de Oliveira perdeu as duas faxinas semanais já no início de março e ficou sem renda nenhuma. O marido, que faz bicos de pedreiro ou pintor, também ficou sem trabalho.

Resultado: faltou comida na mesa. Com um filho menor ainda para criar, a família entrou em desespero. “Ficamos em pânico. Não recebi nenhuma ajuda dos empregadores, nada. Para acessar a ajuda federal, tivemos que recorrer a uma vizinha porque não temos internet e nem computador em casa. É muita desumanidade”, relata.

Quem a ajudou, assim como a outras famílias da mesma região, foi o ativista Cleber Moraes. À frente do coletivo A periferia move o mundo, criado no final do ano passado para ajudar cinco creches comunitárias da Grande Cruzeiro, abandonadas pela Prefeitura, Moraes logo se viu às voltas com um problema muito mais grave quando o novo coronavírus atingiu em cheio a vila Rio Branco: a fome.

“No segundo dia de isolamento já tinha gente batendo na minha porta querendo cestas básicas. Simplesmente não tinham mais comida. Na periferia as pessoas trabalham num dia para comer no outro, não têm reservas, poupança. Vão fazer o quê?”, conta o ativista.

Como não tinha estoque de alimentos coletados para as creches, Moraes organizou com outros ativistas três pontos de coleta e conseguiu a doação de cem cestas básicas com a Ufrgs para dar a largada na ajuda, no dia 19 de março. De lá para cá, a estrutura da organização A periferia move o mundo conseguiu distribuir cerca de 160 cestas ou 1,7 tonelada de alimentos. Preferencialmente para moradores da própria vila Rio Branco.

É uma ajuda insuficiente, mas necessária. “A alimentação continua sendo o maior problema das periferias de Porto Alegre, mais que o vírus. Sabemos que cem cestas não são nada em termos absolutos, mas é muito para quem não tem nada em casa”, diz Moraes. As cestas são básicas mesmo, ou seja, permitem que uma família de quatro, cinco pessoas, se alimente por dez ou 15 dias. Como diz a diarista Ana Paula, “tendo arroz e feijão, é comida”.

Brigadas populares atuam nas comunidades

Na Restinga, extremo sul de Porto Alegre, o panorama era semelhante no final de abril: isolamento social em declínio e fome nas comunidades mais vulneráveis do maior complexo de vilas da capital. Cristiane Machado, coordenadora da Casa Emancipa, também foi atropelada pelos fatos: a casa é originalmente uma ONG de educação popular, mas diante do desespero das pessoas teve de se dedicar, nas últimas semanas, à assistência social.

“Não temos nenhuma experiência nisso, preparamos jovens e adultos para o Enem ou para o Instituto Federal que funciona aqui na região. Mas as famílias, especialmente as mais vulneráveis, estão sem orientação alguma. Sem comida. Sem estrutura de higiene. Temos que fazer alguma coisa, pois o poder público não vem aqui”, relata.

A Casa Emancipa conseguiu doações para montar 60 cestas básicas e para distribuir 200 quentinhas nas ruas da Restinga, tanto para moradores de rua quanto para famílias carentes. “Tudo feito com o apoio de muitas pessoas, um grupo de professores e professoras da escola municipal Pessoa de Brum, anônimos, amigas e amigos, uma cafeteria que arrecada alimentos na região central, um grupo de professores e professoras da escola estadual Ernesto Dornelles”, diz Machado.

O isolamento, segundo ela, não pode funcionar quando a maioria das pessoas trabalha na informalidade na região. Mesmo porque, pelos dados oficiais, havia um único caso de Covid-19 registrado em toda a Restinga no final de abril – que reúne cerca de 50 mil habitantes. “As pessoas não acreditam. Não adianta. A informação chega, mas como viabilizar? Tinha que ter uma política pública pra manter as pessoas em casa, mas isso não existe”, explica.

Nas comunidades mais vulneráveis da Restinga Velha, como Pedreira e Rocinha, até mesmo as cestas básicas da Casa Emancipa têm dificuldade para chegar a quem precisa. “As casas não têm esgoto, não tem banheiro, nem chuveiro, o acesso é difícil, tem mães com oito, dez filhos. Não há orientação nenhuma. Como vou me comunicar com essas pessoas, como vou dizer que elas precisam ficar em casa?”, questiona a ativista.

Na Grande Cruzeiro, a distribuição de cestas básicas contou com a participação das Brigadas Populares – grupos de voluntários que fizeram um mapeamento dos casos mais graves para as doações. Os voluntários percorreram as regiões mais vulneráveis para cadastrar a situação das famílias: número de idosos por domicílio, de crianças, existência de doenças crônicas, renda.

Como base nas informações, os “cuidadores de beco” passaram a monitorar as famílias selecionadas e distribuir as doações – cuidando para que a escolha não gerasse descontentamento entre os vizinhos, ou até represálias. Cada um dos 18 cuidadores voluntários fica responsável por cerca de 15 famílias. Isso dá aproximadamente 300 famílias. Parece pouco, mas diante da limitação financeira e logística dos grupos comunitários, é um número extraordinário. O grupo arrecadou e distribuiu 9 toneladas de alimentos – parte desse volume abasteceu famílias em extrema vulnerabilidade em outras regiões da cidade.

“Nosso conceito é de uma democracia da sobrevivência. Ou todos sobrevivem com dignidade, com respeito, ou então não temos uma democracia. Salvar só uma parcela da população não nos interessa”, diz a diretora da Uampa Bruna Rodrigues.

A União de Vilas, por exemplo, conseguiu identificar cerca de 500 famílias na sua base de atuação que estão “invisíveis” nos programas sociais municipal, estaduais ou federais. Ou seja, estão totalmente vulneráveis, que devem ser consideradas prioritárias em caso de assistência. Em toda a Grande Cruzeiro, o grupo calcula que haja 700 famílias nessa situação – especialmente no chamado Buraco Quente e na Ecológica, locais de extrema pobreza na região.

“Temos certeza de que o caos só não chegou aqui por causa da ação das lideranças comunitárias. Não estamos resolvendo nada em termos estruturais, mas apenas minimizando impactos. A pandemia só deixou mais evidente o abismo da nossa desigualdade”, argumenta Ronaldo Souza, da União de Vilas.

Mas, mesmo com toda a dificuldade, as lideranças comunitárias não desistem de pregar a necessidade de higiene pessoal, apesar da falta de infraestrutura sanitária nas comunidades, e de isolamento social.

EXTERMÍNIO – Cléber Moraes, do coletivo A periferia move o mundo, diz que a política de extermínio do Estado brasileiro, especialmente das comunidades faveladas, faz parte da estratégia de tolerância dos governos em relação ao relaxamento das regras de isolamento. Na medida em que as classes média e alta têm plenas condições de adotar trabalho remoto ou reservas econômicas para resistir ao confinamento, as populações pobres não têm alternativa – nem de trabalho, nem de lazer.

“Quando tem um bailinho funk aqui por perto ou uma roda de pagode, onde o risco de contaminação é grande, tu acha que a Brigada Militar vai chegar pra orientar as pessoas a ir pra casa? Vai nada. Vão deixar que a gente se contamine mesmo. A comunidade não percebe que é o alvo essencial dessa política”, argumenta.

E recomenda aos seus vizinhos: “Se ficar de resenha na rua, vai dar ladaia”.

NOTA DA REDAÇÃO – Após o fechamento da edição impressa do Jornal Extra Classe, as lideranças do coletivo A periferia move o mundo divulgaram que já há casos de famílias em isolamento e positivadas para o Covid-19, recebendo assistência de alimentação, máscaras e materiais de higiene dos grupos voluntários. 

COMO PARTICIPAR – DOAÇÕES

Quem quiser doar alimentos para os moradores da Vila Cruzeiro, basta entrar em contato com o coletivo  A periferia move o mundo, pelos telefones (51) 99310-9724 e (51) 3232-2589 (Mercado Santa Tereza). Ou pelo fone (51) 98446-2400 (Bruna). Outra opção é entregar os alimentos diretamente nos pontos de arrecadação: Rua Edson Pires, 33 (Sede do coletivo), Rede de supermercados Pezzi (rua Cruzeiro do Sul, 2445), Super Frare (Rua Corrêa Lima, 1210). Para colaborar com o trabalho da Casa Emancipa, na Restinga, o contato pode ser feito pelo telefone (51) 98540-9267 (Cristiane).

Do jornal Extra Classe, do Sinpro/RS

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