Quando educação e vida não importam, mas o lucro sim

Por João Batista da Silveira*

No dia 11 de dezembro de 1918, o Decreto N° 3.603, aprovado pelo Congresso Nacional e sancionado pelo presidente da República dos então e ainda Estados Unidos do Brasil, declarou que todos os estudantes estariam automaticamente promovidos ao ano ou série imediatamente superior àquele em que estivessem matriculados. Essa foi uma das medidas tomadas em decorrência da pandemia de gripe espanhola que atingiu o país. Segundo a historiadora Adriana da Costa Goulart, os “colégios suspenderam as aulas por tempo indeterminado, numa tentativa de se evitar aglomerações que facilitassem a transmissão da peste. As aprovações do ano letivo de 1918 foram concedidas aos alunos por meio de simples requerimento e pagamento de taxas, de acordo com decreto governamental”.

O trecho da dissertação de mestrado em História de Adriana Goulart, defendida em 2003 na Universidade Federal Fluminense (UFF) e intitulada “Um cenário mefistofélico: gripe espanhola no Rio de Janeiro”, foi citado em março deste ano no artigo “Uma pandemia de 100 anos atrás: decisões de então sobre o ano escolar”, publicado em seu blog pela também pesquisadora Maria Carlota Rosa, professora do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

No texto, a professora da UFRJ aponta que, na ocasião, não houve nem anulação do ano acadêmico, nem reajuste do calendário. “Em meio a uma pandemia que não pouparia o alto escalão do governo — o presidente da república eleito Rodrigues Alves, por exemplo, morreria no início de janeiro de 1919 — a suspensão das aulas levava à discussão sobre o que aconteceria com as atividades escolares”, conta Carlota Rosa no artigo (embora não haja consenso entre os historiadores de que Rodrigues Alves tenha morrido de gripe espanhola). A medida foi o Decreto N° 3.603, que garantiu a provação automática. Havia, contudo, um adendo: pelo artigo 6° da norma, “Os alumnos (sic) beneficiados pela presente lei não ficam isentos do pagamento da taxas de matricula (sic), de frequencia (sic) e de exame”.

“Pagamento” e “taxa” aqui assumem papel central. A Covid-19 já matou bem mais que o dobro do número de vítimas feitas pela gripe espanhola no Brasil (embora não haja um dado preciso, a estimativa é de que cerca de 35 mil pessoas tenham sido mortas pela pandemia de 1918, ao passo que a de 2020 já fez o número de mortes no país atingir quase 80 mil. Mesmo que mais de um século e de 40 mil mortos separem os dois momentos de crise sanitária e humanitária, as orientações do Conselho Nacional de Educação (CNE) dão sinais de que, a exemplo do Decreto N° 3.603/1918, o desfecho é o de resguardar o direito da escola privada de cobrar as mensalidades do ano letivo de 2020.

A atual composição do CNE, bem como a do próprio governo, é impregnada de defensores da escola privada. Desde antes da posse de Jair Bolsonaro, logo após as eleições de 2018, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino — Contee já havia denunciado, no artigo “O parentesco desastroso para a educação”, de autoria da coordenadora-geral em exercício da Confederação, Madalena Guasco Peixoto, o fato de a dirigente da Associação Nacional de Universidades Privadas (Anup), Elizabeth Guedes, ser irmã do atual e ultraliberal ministro da Economia, Paulo Guedes, defensor das grandes corporações e de uma espécie de privatização ampla, geral e irrestrita. Nesse cenário, não é de se espantar — embora seja de se indignar, e muito — que a atuação do CNE, mesmo e principalmente neste momento crítico, se dê no sentido de facilitar a vida dos grandes empresários do ensino (e não estamos falando aqui das pequenas escolas, associações e instituições, ameaçadas de fechamento e que se incluem entre aquelas empresas que, de acordo com Paulo Guedes na reunião ministerial de 22 de abril, não interessa ao governo socorrer).

Dois movimentos tem sido perceptíveis, ambos com o mesmo objetivo. O primeiro acontece no ensino básico do setor privado, em que professores e técnicos administrativos, já submetidos a um exaustivo trabalho remoto ou a reduções de salários e suspensão de contratos, têm sido pressionados a retomar o trabalho presencial o mais rapidamente possível, sem que haja o mínimo de segurança para garantir a saúde não apenas desses trabalhadores, mas também de crianças, adolescentes, seus familiares e de toda a comunidade que se constitui em torno da atividade escolar.

Na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, professores aprovaram em assembleia, no início de julho, uma greve pela vida em resposta ao decreto publicado pela prefeitura do município no fim do mês passado ampliando a flexibilização do isolamento social e aumentando a liberação do funcionamento de mais atividades comerciais e de serviços — entre os quais a abertura “voluntária” de creches e escolas privadas, sem, conforme o Sindicato dos Professores do Rio de Janeiro (Sinpro-Rio), “apresentar nenhum estudo ou base científica que assegure à população a preservação de suas vidas e a diminuição da probabilidade de contaminação pelo coronavírus”. O objetivo por trás da pressão é sobretudo evitar questionamentos das famílias sobre valor das mensalidades.

O outro movimento é o que acontece no ensino superior, no qual a necessidade pontual de aulas remotas imposta pela crise sanitária adoçou a boca e atiçou a fome dos grandes empresários pela expansão da modalidade a distância. Em entrevista recente ao jornal da Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo (USP), a primeira-secretária da Diretoria do Sindicato dos Professores de São Paulo (SinproSP), Silvia Barbara, denunciou o “ensalamento”, neologismo que, nas palavras dela, “consiste em juntar turmas de níveis, de anos e até de cursos diferentes numa única aula. Assim, em vez de dar três aulas para turmas de 50 alunos, você dá uma aula para uma classe de 150 alunos. O que aconteceu agora? A experiência da pandemia mostrou para as escolas que o ensalamento virtual é muito melhor do que o físico, em que há um limite dado pelo tamanho do auditório. No virtual dá para enfiar 250 ou 350 alunos na mesma aula”. O resultado? Demissões em massa nas universidades particulares, conversão acelerada para a EaD e desemprego estrutural dos docentes.

Em ambos os movimentos, a intenção final é a mesma: garantir que os grandes empresários do ensino continuem lucrando. E, se já mostravam há anos que sua preocupação com a qualidade da educação era baixíssima, agora provam que tampouco se preocupam com a vida.

*João Batista da Silveira é secretário de ensino, advogado, professor de História e membro das diretorias executivas da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee) e da Federação Sindical dos Auxiliares de Administração Escolar no Estado de Minas Gerais (Fesaaemg)

Da Carta Capital

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