Pressão irresponsável por retorno às aulas presenciais coloca interesses econômicos à frente da vida
O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos publicou ontem (23) a nota técnica “Educação: a pandemia da Covid-19 e o debate da volta às aulas presenciais”. No documento, o Dieese lembra que uma “das primeiras medidas tomadas pelos diversos governos das esferas municipais e estaduais foi a suspensão das aulas presenciais e o consequente fechamento das escolas de suas redes de ensino, no intuito de impedir a disseminação do vírus, dado o seu alto potencial de contágio”. No entanto, a nota técnica também destaca que, mesmo com o pico da pandemia ainda por vir, tem sido percebida uma pressão cada vez maior para a volta das atividades econômicas, incluindo a “pressão pela volta às aulas, principalmente das escolas privadas, atingidas pela alta da inadimplência, pelos pedidos de descontos feitos pelos pais nas mensalidades e pela falta de alunos(as), acarretando perdas em suas receitas”.
A pressão é real e sentida em todo o Brasil. Como já publicado pelo Portal da Contee, na cidade do Rio de Janeiro, professores do setor privado, em assembleia virtual realizada pelo Sinpro-Rio decretaram, no início do mês, uma greve pela vida contra a posição irresponsável da Prefeitura de flexibilizar a retomada das atividades presenciais nas escolas particulares sem que a pandemia da Covid-19 esteja sob controle. No estado de São Paulo, a Fepesp tem denunciado a exclusão dos trabalhadores em educação do processo de discussão da retomada e exigido que, para além de critérios para a recepção dos estudantes nas escolas, familiares e educadores — incluindo professores e técnicos administrativos — sejam ouvidos em comissões multidisciplinares. Além disso, a federação também se dispôs a levar a questão ao Ministério Público caso a suspensão de aulas presenciais seja relaxada antes que se tenha o controle do coronavírus. No Distrito Federal, o Sinproep-DF participou de reunião com procuradores do Ministério Público do Trabalho frente à intenção do governo distrital impor a retomada das aulas. E esses são apenas três exemplos do que tem ocorrido em todo o país.
“O foco do poder público deveria estar concentrado no envolvimento de professores e professoras na construção de soluções e em garantir que tanto eles(as) quanto os(as) alunos(as) possam ter acesso aos dispositivos necessários para o acompanhamento remoto das aulas, sem que pais e familiares sejam expostos aos riscos nas ruas, desnecessariamente”, defende o Dieese.
Trabalhadores invisiblizados
O processo de invisibilização dos trabalhadores em educação nesse debate é facilmente perceptível pela imprensa. Na última quarta-feira (22), por exemplo, o Portal UOL publicou matéria alertando que a “volta às aulas pode representar um perigo a mais para cerca de 9,3 milhões de brasileiros (4,4% da população total) que são idosos ou adultos (com 18 anos ou mais) com problemas crônicos de saúde e que pertencem a grupos de risco de Covid-19, de acordo com informações divulgadas hoje pela Fiocruz. Isso porque eles vivem na mesma casa que crianças e adolescentes em idade escolar (entre 3 e 17 anos)”.
O alerta é importante, porque as consequências do funcionamento de uma escola não se restringem à zona intramuros, para dentro de seus portões, de modo que estudantes, seus familiares e toda a comunidade ficam expostas aos riscos. Nem docentes nem técnicos administrativos, porém, são incluídos pela reportagem no rol das preocupações, como se fossem incrivelmente imunes ao coronavírus ou como se sua saúde e sua segurança não importasse. Para se ter uma ideia, a matéria trata da retomada das aulas in loco e a palavra “professor” sequer aparece no texto. E tanto a mídia quanto os empresários parecem desconsiderar a decisão liminar do Supremo Tribunal Federal (STF) que reconheceu que qualquer possível contaminação pela Covid-19 pode, sim, ser considerada acidente de trabalho e doença ocupacional.
Interesses econômicos
Como aponta a nota do Dieese, se o retorno às aulas presenciais for feito de forma precipitada, pode gerar consequências muito graves à comunidade escolar, envolvendo professores(as), funcionários(as) e alunos(as). Além disso, conforme o documento, o “debate sobre o fim da quarentena, sem o devido controle da pandemia e pensado no contexto das escolas, em termos de retomada das aulas presenciais, coloca não apenas o risco de aumento da contaminação, mas expõe, também, a falta de condições de milhões de famílias para fazerem o remanejamento do cuidado de seus(uas) filhos(as). Não é uma discussão que envolve apenas as consequências econômicas, mas também sociais e sanitárias”.
Governo federal, bem como alguns governos estaduais e municipais, e grandes empresários do ensino, entretanto, concentram-se nos interesses econômicos e ignoram deliberadamente os efeitos sanitários e sociais. Não é desconexo o fato de que a campanha do governo Bolsonaro e dos ultraliberais contra a aprovação do novo Fundeb tenha acontecido na mesma semana em que o Brasil ultrapassou a marca de 80 mil mortos pela Covid-19. As mesmas forças que atuaram na Câmara dos Deputados para, entre outros pontos, embutir no Fundeb a perversa política de vouchers para a educação — contemplando diretamente os interesses dos privatistas e seu apetite voraz por verbas públicas — são aquelas que defendem a retomada das atividades presenciais sem que haja qualquer segurança mínima para esse retorno. Em nenhum dos dois casos a preocupação real é com a educação.
Ainda em abril, a Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep) lançou um “plano estratégico de retomada das atividades do segmento educacional privado brasileiro”. O protocolo tem sido replicado indiscriminadamente pelos sindicatos patronais de Norte a Sul, sem preocupação com as especificidades da situação pandêmica e condições de enfrentamento em cada município, estado ou região. Em contrapartida, enquanto tentam responsabilizar a resistência de trabalhadores em educação pelo não retorno e por uma possível falência de escolas em razão da inadimplência, da evasão e dos pedidos por diminuição de mensalidades, esses mesmos sindicatos patronais não fazem nenhuma articulação política para cobrar ações afirmativas do Poder Público, entre os quais garantir auxílio a estudantes e seus familiares afetados pelo desemprego e pela crise econômica.
A culpa pela crise no setor privado de ensino não é de professores e técnicos administrativos que decretem greve pela vida, não é de estudantes que peçam redução de mensalidades, não é de pais de alunos que, por ventura, estejam inadimplentes com o pagamento da escola de seus filhos. A culpa é da inoperância do governo; é da política econômica ultraliberal de Paulo Guedes que baixa a cabeça para o setor financeiro e se recusa a socorrer pequenas e médias empresas; é do desemprego, da suspensão de contrato e/ou da redução salarial que impedem uma família de pagar a escola; é da falta de articulação política do setor patronal para cobrar soluções efetivas do governo — soluções que passam por políticas sociais — em vez de disputar verbas da educação pública e tentar desvirtuar o Fundeb.
O Dieese trata desses pontos na nota técnica. “No sentido do planejamento articulado de ações contra a Covid-19, é necessário que não se coloque a perder os esforços realizados até o momento. As escolas sem a presença física dos alunos, a suspensão das aulas presenciais e os decretos de isolamento social foram iniciativas adotadas no combate ao coronavírus, por recomendação de órgãos internacionais, como a Organização Mundial de Saúde (OMS). Mas é preciso avançar na implementação de outras ações, para que as pessoas possam de fato permanecer em segurança, cuidando da própria saúde. Os auxílios para garantir a sobrevivência dos pequenos e médios negócios, para que consigam superar este momento difícil, o perdão temporário das dívidas — tanto das pessoas físicas quanto das pessoas jurídicas — e a transferência de renda do Estado para as mãos da população são ações que permitem que os(as) trabalhadores(as) consigam ter a garantia de que seu emprego ou renda serão mantidos, quando a pandemia for controlada. Permite também que os(as) trabalhadores(as) autônomos(as) e os(as) desempregados(as) possam receber seu auxílio financeiro emergencial, enquanto perdurar essa situação crítica”.
A conclusão do Departamento Intersindical é de que o “foco das preocupações das autoridades públicas e das organizações da sociedade civil há de ser fixado na preservação da vida e da saúde das pessoas, para se evitar que a falta de ação conjunta e eficaz dos poderes públicos, condene milhões de crianças e adultos a uma estação ainda maior de privações”.
Nem professores, nem técnicos administrativos nem estudantes pensam que o trabalho pedagógico remoto é o cenário ideal. Mas ele é uma necessidade temporária que se impõe neste momento de risco em que o foco deve ser a preservação da saúde e da vida.
Assista também ao programa da TV Contee em defesa da vida
Por Táscia Souza