Uma cronologia de desastres na educação superior pública brasileira
As políticas federais seguem como uma ameaça à autonomia universitária, mesmo quando o setor público de educação superior se apresenta como fundamental na luta contra a pandemia da Covid-19 no Brasil.
Marcelo Knobel e Fernanda Leal
Em artigos anteriores 2, tratamos das mudanças críticas nas políticas da educação superior brasileira desde que Jair Bolsonaro assumiu o cargo de presidente, em janeiro de 2019. Em resumo, nos referimos às incertezas, às controvérsias e aos retrocessos a que o setor tem sido submetido; às restrições orçamentárias impostas à ciência e às instituições públicas de educação superior (IES); ao viés ideológico do Governo Federal em relação às ciências humanas e sociais; bem como ao Programa “Future-se”: Proposta neoliberal do Ministério da Educação, que visa à autonomia financeira das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) e à intensificação de mecanismos de controle da produção nessas instituições.
Neste texto, damos continuidade a essa reflexão. Apresentamos o que chamamos de “uma cronologia de desastres”, um resumo dos eventos que ocorreram na educação superior brasileira desde setembro de 2019. Tais eventos revelam como as políticas federais seguem como uma ameaça à autonomia universitária, mesmo quando o setor público de educação superior se apresenta como fundamental na luta contra a pandemia da Covid-19 no Brasil.
Mais incertezas, controvérsias e retrocessos
Um dos efeitos marcantes das políticas de Bolsonaro para a educação superior tem sido a instabilidade que o setor tem vivenciado. Muitas das medidas governamentais foram impostas sem o estabelecimento de diálogo com reitores, comunidades universitárias ou entidades representativas, resultando em resistências e em iniciativas sendo canceladas ou postergadas.
Além disso, em julho de 2020 um novo ministro da Educação foi indicado pela quarta vez. A gestão de Abraham Weintraub, de abril de 2019 a junho de 2020, foi a segunda e mais longa, mas deixou um legado negativo ao setor. Após mais de um ano de controvérsias por conta de sua postura hostil com universidades públicas e acadêmicos em geral, Weintraub deixou a pasta. Seu viés racista e suas ameaças aos membros do Poder Judiciário progrediram ao ponto de que o Presidente não mais poderia mantê-lo no cargo. Talvez uma das situações mais constrangedoras tenha sido quando Weintraub apareceu em uma pequena manifestação pró-Bolsonaro em Brasília, em junho de 2020, sem o uso de máscara. Ele cumprimentou os manifestantes e proclamou: “[…] não quero sociólogo, antropólogo e filósofo com meu dinheiro”.
O economista Carlos Alberto Decotelli foi então nomeado, mas não pode assumir o cargo devido a diversas inconsistências em suas qualificações acadêmicas, incluindo a acusação de plágio em sua dissertação de mestrado, bem como informações incoerentes sobre seu doutorado e pós-doutorado. Ainda em julho, o padre presbiteriano Milton Ribeiro assumiu o ministério, provocando novas preocupações. Muito embora o ministro tenha adotado um perfil mais discreto, evitando aparições públicas e declarações bombásticas, a situação da educação superior e da ciência segue regredindo.
Mais restrições orçamentárias
Restrições orçamentárias direcionadas a universidades públicas e à pesquisa seguiram durante as gestões de Weintraub e Ribeiro e, provavelmente, se intensificarão em 2021. No início de 2020, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) anunciou um novo modelo de concessão de bolsas para estudantes de pós-graduação, dando prioridade às áreas tecnológicas à exclusão das demais. Similarmente, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) excluiu as humanidades e as ciências sociais dos projetos a serem prioritariamente financiados no período de 2020 a 2023. A justificativa, neste caso, foi a aceleração da economia e do desenvolvimento social do país.
A Capes e o CNPq são as principais agências financiadoras de bolsas de pesquisa no Brasil. A Capes, vinculada ao Ministério da Educação, é também responsável pela avaliação e a acreditação dos programas de pós-graduação, de modo que a restrição do financiamento para poucas “áreas prioritárias” põe o desenvolvimento de diversas áreas, além da liberdade acadêmica, em risco, com sérias consequências para o pensamento crítico da sociedade.
A expectativa é, ainda, de que os sucessivos cortes orçamentários para universidades e institutos federais alcancem mais 18% (aproximadamente 1 bilhão de reais) em 2021 para gastos discricionários (pagamentos, investimentos e assistência estudantil). A situação piorou com a aprovação de um projeto que realoca aproximadamente 1.4 bilhão de Reais do Ministério da Educação para infraestrutura, em novembro de 2020. As entidades representativas dessas instituições – a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) e o Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Conif) – analisam que tal medida inibirá a realização de diversas atividades de ensino, pesquisa e extensão, com impacto direto na sociedade brasileira. Como o presidente da Conif argumenta, “Como vai funcionar uma instituição que pode chegar ao patamar do orçamento de 2014 em 2021?”.
Mais ameaças à autonomia universitária
Dada a rejeição do Programa “Future-se” pela vasta maioria das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES), o Governo Federal tem procurado por novas formas de definir os rumos dessas instituições. Em junho de 2020, publicou uma medida provisória definindo que nos casos em que o mandato de 4 anos de um reitor finalizasse durante a pandemia, o próprio Ministério da Educação designaria um novo reitor para dirigir a instituição. Com tal medida, negligencia a tradição segundo a qual líderes universitários são eleitos pelos servidores docentes e técnico-admistrativos e estudantes. Uma vez que o Governo Federal tem demonstrado pouca preocupação com a pandemia da Covid-19, tal medida sugere ser um meio de interferir na autonomia dessas instituições e, eventualmente, ampliar a adesão ao “Future-se”. De fato, a declaração de que não seria possível votar durante a pandemia não se sustenta, uma vez que a tecnologia disponível viabilizaria a realização de eleições para reitores e que a maioria das atividades nessas instituições têm acontecido de forma remota. Assim, o Senado cancelou a decisão, que violava a autonomia universitária prevista pela Constituição Brasileira.
O processo de eleição para reitores se inicia com uma votação institucional. Então, o Conselho Universitário envia ao Presidente uma lista ordenada com os três candidatos mais eleitos. A prática, desde o retorno da democracia no País, é de que o Presidente nomeie o primeiro nome da lista, respeitando a escolha da comunidade universitária. Entretanto, esse não tem sido o caso desde 2019. Até o presente momento, o Presidente nomeou reitores de 27 instituições, desrespeitando o resultado da eleição interna em dez delas. Em um dos casos, o nomeado sequer estava na lista tríplice. Muito embora não haja obrigação de nomear o primeiro da lista, aceitar a escolha das comunidades universitárias não é somente uma tradição, mas uma importante expressão de autonomia, democracia e legitimidade de uma instituição que sofreu com a ausência de tais liberdades durante a ditadura miliar. A gestão de uma instituição tão complexa por uma pessoa não eleita pela maioria da comunidade somente amplifica as tensões já existentes no ambiente universitário.
Outra questão preocupante é a proposta do Governo Federal de expandir a educação a distância nas IFES de forma permanente. Em outubro de 2020, o Presidente definiu dois grupos de trabalho para apresentar estratégias nesse tema. A pandemia da Covid-19 induziu essas instituições a encontrar meios de oferecer ensino remoto como uma medida emergencial, mas questões como a qualidade da educação e o acesso dos estudantes à tecnologia necessária necessitam ser discutidas com a participação das instituições e respectivas entidades representativas. Como a educação superior pública brasileira ampliou o acesso a estudantes de baixa renda e de grupos minoritários nos últimos anos, riscos de desigualdade digital não podem ser desconsiderados.
O evento controverso mais recente na educação superior pública aconteceu em dezembro de 2020, com a publicação de um decreto que determinava o retorno às aulas presenciais nas IFES a partir de janeiro de 2021, quando a vasta maioria dos reitores já havia sinalizado que o ensino seguiria no formato remoto até que a vacina da Covid-19 estivesse disponível. A rejeição das comunidades universitárias e entidades representativas foi imediata, e o Governo revogou o decreto no mesmo dia. Como o reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) manifestou em nota logo após a publicação do decreto, “enquanto não houver garantias de imunização e condições plenas, atestadas pela ciência, continuaremos seguindo nossos princípios em defesa da vida, com cautela e responsabilidade”. Ainda assim, uma semana após a publicação do decreto, o Ministro da Educação declarou que a previsão de retorno às aulas presenciais nas universidades públicas e privadas é março de 2021, quando julga que tais instituições terão feito os “ajustes necessários” para tanto. Contudo, não é claro sobre os ajustes de que trata e tampouco relaciona o retorno com a vacinação da Covid-19 no país.
Paradoxalmente, a despeito da cronologia de desastres a qual a educação superior pública tem sido submetida, o presente momento pode ser considerado como uma oportunidade para que as instituições universitárias públicas reforcem seu valor perante a sociedade, aproximando-se das comunidades em seu entorno. Após anos de ataques, a pandemia da Covid-19 abriu espaço para pesquisadores dessas instituições serem ouvidos, enfatizando a importância da pesquisa e da ciência para lidar com questões públicas críticas como a luta contra o vírus. A tentativa de controlar instituições universitárias públicas não somente prejudica conquistas relacionadas à autonomia universitária e à liberdade acadêmica no mundo todo, como também põe a democracia, o desenvolvimento e o bem-estar social da sociedade brasileira em risco.
Notas
↑1 Reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
↑2 “Higher Education and Science in Brazil: A Walk toward the Cliff?” (International Higher Education)(https://ejournals.bc.edu/index.php/ihe/article/view/11639/9739) e “A looming disaster for HE and Brazil’s development” ( World University News)
Fernanda Leal, é doutora em Administração pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Brasil, foi pesquisadora visitante do Center for International Higher Education (CIHE), Boston College, Estados Unidos, de 2018 a 2020, e é secretária-executiva na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil. Desenvolve pesquisa crítica em internacionalização da educação superior.