Salve, salve as estrelas da canção popular!
As mulheres estão em toda a parte, em toda a atividade humana, mas são as menos reconhecidas ou valorizadas na sociedade, há milênios sob domínio masculino. Na música brasileira, são numericamente inferiores aos homens na composição e têm sido vítimas de discriminações.
Marginalizadas em diversos momentos, as cantoras e compositoras que participaram e participam do ambiente musical são, geralmente, colocadas em uma posição secundária. A despeito de preconceitos e subestimação, produzem e interpretam obras de qualidade diversificada e de apelo popular, construindo um dos mais importantes e consagrados componentes da cultura brasileira.
Mesmo em períodos históricos e sociais mais opressivos que os atuais, a presença feminina no cancioneiro foi constante. Lançar luz sobre as obras femininas no setor constitui importante “passo para o reconhecimento da existência de um significativo universo poético que, embora presente no cotidiano dos indivíduos, ainda conhece grandes dificuldades em ser legitimado pelas vias canônicas”, conclui Jorge Marques em seu livro Finas flores – mulheres letristas na canção brasileira.
“Vias canônicas” é a expressão que ele usa para referir-se à consideração, ainda forte entre estudiosos e acadêmicos, da música popular como um gênero paraliterário, de menor qualidade artística. No entanto, uma de nossas escritoras mais consagradas, a professora Cecília Meireles, teve poemas musicados por Chico Buarque e Raimundo Fagner, e melodias de um dos nossos maestros soberanos, Heitor Villa-Lobos, receberam letras da poeta Dora Vasconcelos.
A segunda metade do século XIX marca o início da atividade e da obra de uma gigante da nossa música: Francisca Edwiges Neves Gonzaga. Conhecida como Chiquinha Gonzaga, foi a primeira pianista chorona, autora da primeira marcha carnavalesca com letra e também a primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil. Em 1909, a negra Joana Batista Ramos compôs a letra do mais popular frevo do Carnaval de Pernambuco, a “Marcha Número 1 do Vassourinhas”, sobre música de Matias da Rocha. Os direitos autorais foram vendidos para o Clube Vassourinhas.
A presença feminina está presente, e discriminada, inclusive, realizando encontros musicais. No início do século XX, em sua casa no número 117 da rua Visconde de Itaúna, na capital fluminense, a baiana e cozinheira Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, realizava bailes e batucadas. O local é considerado um dos berços do samba. O cronista e dramaturgo João do Rio caracterizou Tia Ciata como “uma negra baixa, fula e presunçosa”, “uma das feiticeiras da embromação”…
As festas de Ciata e de outras “tias” propiciaram a difusão e formação de músicos que marcaram a arte brasileira, como João da Baiana, Sinhô e Donga. As mulheres que também levavam suas obras para esses saraus não ficaram registradas. Uma situação mantida por décadas. Dona Ivone Lara não assinava seus primeiros sambas, no final dos anos 1930/início dos 40, devido ao preconceito das escolas carnavalescas, e somente em 1965 se tornou a primeira mulher a fazer parte da ala de compositores de escolas de samba. Meire e Marilene Galvão começaram a apresentar-se cantando música sertaneja em 1947, com menos de 10 anos de idade, e contaram, um programa de TV em homenagem a Inezita Barroso: “No geral, as cantoras e artistas da noite não eram consideradas ‘moças de família’, mas ‘mulheres fáceis’. No nosso caso isso não ocorreu, porque éramos crianças, mas convivemos com muitas artistas que sofreram com isso”.
Umas e outras
Enfrentando as dificuldades e esbanjando talento, a presença e a voz feminina difundiram aboio, baião, balada, batuque, calango, canção, cateretê, catira, congada, chamego, choro, chula, coco, dobrado, embolada, fado, fandango, fofa, forró, frevo, funk, galope, gavota, gospel, habanera, hip-hop, jazz, jongo, lundu, maculelê, marcha, marcha-rancho, maxixe, maracatu, mazurca, miudinho, modinha, polca, pop, punk, rancheira, rasqueado, rock, rojão, romança, samba, samba-canção, sarabanda, sarambeque, sorongo, partido alto, tango, toada, valsa, vira, xaxado, xote e outras tantas modalidades musicais presentes em nosso país.
Umas, compositoras e cantoras, como Adriana Calcanhoto, Ângela Ro Ro, Anna Carolina, Bidu Reis, Bruna Viola, Cássia Eller, Dilú Mello, Dolores Duran, Dona Ivone Lara, Dora Lopes, Dulce Quental, Ester Delamare, Fátima Guedes, Isolda, Joyce, Karol Conka, Leci Brandão, Lina Pesce, Maria Helena Toledo, Marília Mendonça, Marina, Marisa Monte, Martinha, Maysa, Paula Toller, Pitty, Rita Lee, Regina Werneck, Roberta Miranda, Rosa Passos, Rosinha de Valença, Stelinha Egg, Sueli Costa, Teresa Souza, Vanessa da Mata, Zélia Duncan.
Outras, intérpretes e autoras bissextas, como Ademilde Fonseca, Alaíde Costa, Alcione, Ana Terra, Ângela Maria, Anitta, Aracy de Almeida, Beth Carvalho, Bethânia, Carmem Miranda, Cátia de França, Celeste, Celly Campelo, Clementina de Jesus, Clara Nunes, Dalva de Oliveira, Daniela Mercury, Dercy Gonçalves, Diana Pequeno, Doroty Marques, Elba Ramalho, Elis Regina, Elizeth Cardoso, Emilinha Borba, Evinha, Gal Gosta, Hebe Camargo, Inezita Barroso, Irene Portela, Irmãs Galvão, Isaurinha Garcia, Ivete Sangalo, Joanna, Leila Pinheiro, Leny Andrade, Lúcia Turnbull, Marinês, Marlene, Miúcha, Mônica Damaso, Nana Caymmi, Nara Leão, Nora Nei, Quarteto em Cy, Sandra Sá, Simone, Sylvia Teles, Terezinha de Jesus, Thereza Tinoco,Verônica Sabino, Wanderléa, Xuxa, Zizi Possi e tantas outras, lista sempre enriquecida por quem a faça, constroem o monumento que destaca o Brasil nas artes mundiais.
O jornalista Marcos Aurélio Ruy selecionou para a Rádio Peão Brasil algumas canções, de autoria ou participação feminina, sobre as questões de igualdade de gênero (leia e ouça aqui).
Carlos Pompe