A maré de ultradireita já começa a refluir
Mohdi desgasta-se na Índia. Cidades turcas vencem Erdogan. Apoio a Bolsonaro despenca no Brasil. Partidos xenófobos europeus perdem espaço. Fracasso diante da pandemia e vazio do discurso anti-establishment parecem deter o neofascismo
Por Lawrence Wittner, no Counterpunch
Os partidos políticos de extrema direita, que deram grandes passos adiante em diversos países do mundo, a partir de 2015, têm sofrido importantes derrotas.
A onda foi liderada por uma nova geração de demagogos de direita que, alimentando-se do descontentamento público com a estagnação econômica e, em certos países, o crescimento da imigração, alcançaram avanços políticos surpreendentes. Matteo Salvini da Itália, Geert Wilders da Holanda e Marine Le Pen da França impulsionaram seus movimentos políticos, antes marginais para o status de partido principal. Na Grã-Bretanha, o Partido da Independência do Reino Unido (UKIP) de Nigel Farage surpreendeu os principais partidos ao vencer um referendo pedindo a retirada da Grã-Bretanha da União Europeia. Donald Trump, que defendeu uma política “America First”, chocou os analistas políticos ao emergir vitorioso na corrida presidencial dos EUA de 2016. Dois anos depois, no Brasil, o extravagante Jair Bolsonaro , em campanha sob o lema “Brasil acima de tudo”, foi facilmente eleito presidente de seu país. Em maio de 2019, o BJP de Narendra Modi, um partido nacionalista hindu, obteve uma vitória eleitoral esmagadora na Índia.
Como líder reconhecido do levante de direita nessas e em outras nações, Trump estabeleceu contatos próximos com seus homólogos no exterior e tirou os Estados Unidos de diversos tratados internacionais, assim como de instituições globais. “Líderes sábios sempre colocam o bem de seu próprio povo e de seu próprio país em primeiro lugar”, afirmou ele à Assembleia Geral da ONU em setembro de 2019. “O futuro não pertence aos globalistas. O futuro pertence aos patriotas.”
Mas enquanto falava, o ímpeto nacionalista de direita estava começando a vacilar. Na Europa, cada vitória política de 2019 foi acompanhada de uma derrota. Embora na Espanha o pequeno partido anti-imigrantes Vox tenha conquistado cadeiras no Parlamento, na Áustria o Partido da Liberdade experimentou grandes reveses. O outrora poderoso UKIP, na Grã-Bretanha, e o raivoso movimento Golden Dawn [“Alvorecer Dourado”], na Grécia, praticamente desapareceram. Enquanto isso, na Turquia , o partido nacionalista do presidente Recep Tayyip Erdogan sofreu duras derrotas nas eleições nas três maiores cidades do país.
As coisas pioraram ainda mais em 2020. Uma derrota do BJP de Modi em Delhi, em fevereiro, contribuiu para a série de derrotas eleitorais regionais. Na Itália, a Liga do Norte de Salvini sofreu uma derrota eleitoral e o Partido Democrata, de centro-esquerda, substituiu-a no governo de coalizão. Enquanto isso, na França, o partido Reunião Nacional de Le Pen sofreu uma derrota retumbante nas eleições locais de julho de 2020 e, em novembro, no Brasil, Bolsonaro foi humilhado quando a maioria dos candidatos pelos quais fez campanha não venceu as eleições. Talvez a derrota nacionalista mais significativa tenha ocorrido em novembro nos Estados Unidos, onde Trump perdeu a reeleição presidencial por 7 milhões de votos e seu radicalizado Partido Republicano não conseguiu reconquistar a Câmara dos Representantes, que havia perdido em 2018.
Neste ano, as derrotas nacionalistas se transformaram em rotina. Em janeiro, os republicanos de Trump perderam eleições especiais na Georgia, o que acabou com o controle de seu partido no Senado dos EUA. Em março, o controle político de Erdogan sobre a Turquia desgastou-se ainda mais, quando as pesquisas apontaram que o apoio a seu partido nacionalista diminuía dramaticamente. Em maio deste ano, o BJP de Modi perdeu outra eleição regional.
Quase o mesmo ocorreu em junho. Na Alemanha, onde projetava-se uma vitória importante da Alternativa para a Alemanha, xenófoba, em uma eleição estadual, ela obteve decepcionantes 20,8% dos votos – não muito mais da metade da porcentagem obtida pelos vencedores democratas-cristãos e consideravelmente menos do que o total alcançado pelos partidos de esquerda. No Brasil , surgiram sinais claros de que o regime de Bolsonaro, com recorde de impopularidade, está cambaleando e pode rumar para o colapso. Finalmente, na França, onde o partido de Marine Le Pen tinha boas chances de triunfar em seis das 13 eleições regionais do país, acabou derrotado em todas elas .
À medida que a maré de nacionalismos direitista recuou, os governos passaram a retomar as instituições e acordos internacionais prejudicados nos anos anteriores. Isso inclui as Nações Unidas, a Organização Mundial da Saúde, os Acordos do Clima de Paris e os principais acordos de desarmamento nuclear. Em outro sinal de sua disposição de se envolver em ações globais, os principais governos propuseram um imposto global mínimo para as empresas .
Como essa mudança na sorte dos partidos ultradireitistas pode ser explicada?
Um fator por trás da reviravolta política é que o estilo, as políticas e o comportamento de alguns dos principais políticos de extrema direita dispararam alarmes nas mentes de muitas pessoas sobre o autoritarismo e até mesmo o fascismo. Alguns desses políticos não disfarçaram suas tendências fascistas e também encorajaram a ação violenta de seus apoiadores. Em consequência, eleitores e partidos inquietos, ansiosos por preservar a democracia e a liberdade política, pareceram dispostos a fazer compromissos políticos, como o de se unir em torno da alternativa mais viável capaz de fazer frente ao candidato extremista.
Uma razão mais profunda, porém, é que, em um mundo que enfrenta problemas globais como uma pandemia, catástrofe climática, uma corrida armamentista nuclear e desigualdade econômica, uma abordagem nacionalista deixa de fazer sentido. Ao reconhecer isso, a maior parte do público considera soluções globais. Uma pesquisa do Pew Research Center no verão [do hemisfério Norte] de 2020 constatou que 81% das 14.276 pessoas entrevistadas em 14 nações opinavam que “os países do mundo deveriam agir como parte de uma comunidade global que trabalha em conjunto para resolver problemas”. Cerca de 76% aprovavam o papel das Nações Unidas na promoção dos direitos humanos e 74% na promoção da paz, enquanto 63% disseram que a OMS fez um bom trabalho ao lidar com a crise do Covid-19.
É claro que, apesar dos recentes reveses vividos pelos partidos nacionalistas, eles estão longe de estar mortos. Conseguiram estabelecer-se como parte do cenário político e hoje governam uma variedade de países, incluindo Brasil, Hungria, Índia, Polônia e Turquia. Nos Estados Unidos, o Partido Republicano, dominado por Trump, controla vários governos estaduais e tem chance razoável de retomar o controle do governo federal.
Mesmo assim, a maré política recentemente se voltou contra a ultradireita. Ressurgiram as possibilidades de abordar os problemas do mundo em base global.
*Lawrence Wittner é professor emérito de História na Universidade do Estado de Nova York em Albany e autor de Confronting the Bomb (Stanford University Press)