Sinpro/RS: Entrevista com Renato Janine Ribeiro
O filósofo e cientista político Renato Janine Ribeiro tomou posse no último dia 23 de julho como presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Professor titular de Ética e Filosofia Política na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), Ribeiro é considerado um intelectual de grande quilate. Além do prêmio Jabuti de Literatura em 2001 com a obra A Sociedade Contra o Social (Editora Companhia das Letras), em 1998, ainda durante o governo Fernando Henrique, recebeu a Ordem Nacional do Mérito Científico. Janine é ex-diretor de Avaliação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Sua escolha para ministro da Educação de Dilma Rousseff em 2015 foi festejada, mas durou pouco. Imersa na crise política, Dilma o substituiu cinco meses depois em busca de apoio para tentar se manter no poder. Após essa experiência, assumir a SBPC em talvez um dos piores momentos para a ciência no país mostra que o intelectual não foge da raia quando acionado. Sobre este segundo rabo de foguete, Ribeiro diz com modéstia sobre os que apostam no seu mandato: “Talvez, pensaram: ele já esteve em um. Quem sabe num segundo tenha mais sorte. Quem sabe? Tomara!”
Extra Classe – A SBPC foi um importante espaço de discussão política no período final da ditadura e início da redemocratização. Como o senhor vê a entidade agora?
Renato Janine Ribeiro – A vejo com uma missão muito difícil, que é a de enfrentar uma situação que é bastante negativa para a ciência, para a educação, para a cultura, para a saúde, para o meio ambiente. Enfim, para toda uma série de pautas para nós, uma sociedade para o progresso da ciência. Todas essas pautas estão ameaçadas. Então, nós temos, em primeiro lugar, que lutar para defender a pesquisa científica, a educação, a cultura, tudo isso que eu falei. Em segundo lugar, emplacar no Brasil a ideia de que, sem ciência, sem conhecimento rigoroso, não há desenvolvimento econômico e, sem desenvolvimento econômico, não há possibilidade de desenvolvimento de programas sociais. É isso, então, que é preciso. Eu diria que a nossa prioridade é uma prioridade dupla.
EC – O senhor aceitou ser ministro da Educação do Brasil no início de uma era conturbada, que culminou com o golpe que derrubou a presidente Dilma Rousseff. Agora, foi eleito presidente da SBPC em um dos piores momentos da ciência e da educação no país. Seus amigos gostam mesmo do senhor? (risos)
Ribeiro – Acho que o destino me colocou em umas armadilhas (risos). Melhor, em umas dificuldades. Eu fui o primeiro titular da pasta da Educação em 12 anos, de todos os governos petistas, que teve que enfrentar uma situação econômica muito difícil. Antes de mim, houve uma sucessão de ministros que tiveram dinheiro, que puderam fazer um monte de coisas. No meu caso, não podia. Isso realmente foi muito difícil e ainda numa fase em que os beneficiados pelas políticas pró-educação dos governos do PT não tiveram a percepção do que estava em jogo. Tinha professores universitários do setor público que tiveram aumento real de salário com a presidente Dilma e fizeram uma greve de quatro meses durante o tempo em que eu fui ministro. Foi muito difícil. As pessoas não tinham percebido ainda qual era a situação em que a gente estava. Acho que hoje talvez essas pessoas tenham mais noção de onde nós fomos parar, justamente porque não houve uma defesa de um governo que era mais favorável à educação do que os governos seguintes.
EC – Na dor?
Ribeiro – O governo Dilma era muito mais favorável à educação do que o governo Temer, do que o governo Bolsonaro. E, no entanto, uma parte dos beneficiados pelas políticas dos governos Lula e Dilma não percebeu o que estava fazendo ao enfraquecer o governo federal. Não percebeu e deu nisto. Deu nessa situação em que a gente está hoje. Não foi a única causa. Não estou dizendo que eles foram culpados pelo golpe. Mas acabaram enfraquecendo o governo e não defenderam o governo durante o processo que deu no golpe.
EC – Mas eu estava falando que parece que gostam de lhe colocar em rabos de foguete.
Ribeiro – Talvez, pensaram, ‘ele já esteve em um. Quem sabe num segundo tenha mais sorte’. Quem sabe. Tomara.
EC – Brincadeiras à parte, o senhor falou dos desafios da SBPC agora. No meio disso, o negacionismo, certamente, além da falta de verbas, está presente. O que me diz?
Ribeiro – O negacionismo que estamos enfrentando mostra a importância de uma educação científica. O Brasil precisa melhorar nisso para que as pessoas tenham não só o conhecimento do conteúdo da ciência, mas o que eu chamaria de espírito científico. O espírito científico é o de você não acreditar em qualquer coisa; você questionar, buscar ver quais são as fontes, aprender a raciocinar, usar a lógica, usar os testes empíricos para ver se as coisas que são ditas são verdadeiras ou não. Porque o negacionismo – basicamente aquele de fake news – são palavras que apenas enfeitam alguma coisa que, na realidade, é uma mentira, não é? Fake news é um eufemismo para mentira; negacionismo é um eufemismo para um sistema de mentiras. Então, eu acho que se a gente conseguir fazer a sociedade brasileira ser mais crítica a isto, ter mais formação em um espírito rigoroso de pensamento, um espírito científico, a gente avança muito. E esse é um desafio que a SBPC tem que assumir junto com o sistema educacional todo do Brasil que está sendo ameaçado presentemente.
EC – O senhor elencou também nas prioridades da SBPC a crise de financiamento da ciência no Brasil. Como fazer isso em um país onde, recentemente, a Câmara dos Deputados estava aprovando um fundo eleitoral que era mais do que o dobro do que o governo federal colocou no orçamento para o Ministério da Ciência e Tecnologia?
Ribeiro – Nós temos que lutar em defesa da ciência. Nós temos que mostrar o que ela faz de bom para as pessoas. Muitas pessoas não têm noção. Muitas pessoas usam, por exemplo, um Waze, um GPS, sem saber que as vantagens disso vêm de pesquisas científicas. Nós temos que mostrar isso melhor para a sociedade. E, mostrando melhor, fazer com que a sociedade assuma a defesa da ciência, da educação, do conhecimento rigoroso como uma pauta dela. Em uma sociedade democrática, você tem que convencer os não cientistas de que a ciência é importante. Convencer de que não se trata de uma pauta por corporativismo – cientista defendendo a ciência, educador defendendo a educação. Trata-se de uma das maiores defesas que se pode fazer pela sociedade, junto com as defesas da saúde, do meio ambiente. Quando você reúne esses tópicos e a cultura, eu diria, então, ciência, educação, cultura, saúde e meio ambiente, você tem uma possibilidade de crescimento da sociedade muito grande. Nós temos que fazer com que as pessoas compreendam isso. Temos que melhorar a educação científica nas escolas e melhorar a divulgação científica na mídia. Basicamente, é isso.
EC – De fato, a que o senhor atribui a pouca verba para ciência no país?
Ribeiro – Ao fato de termos um governo que não valoriza a ciência e a tecnologia. Um governo que é, como foi dito antes, negacionista. Um governo que, diante de uma crise sanitária terrível (covid-19), em vez de lutar pela saúde do povo, propagandeou tratamentos que não dão certo. Aliás, mais do que não valorizar a ciência, a razão por que o governo cortou o dinheiro da ciência e tecnologia é porque ele não tem mesmo a noção de como governar. É um governo que não sabe como governar um país para sua prosperidade.
EC – Como o senhor viu o recente apagão no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), que deixou fora do ar a plataforma Lattes por um longo período? Teve gente, inclusive, que chegou a temer a perda de todos os dados.
Ribeiro – Segundo o governo, segundo o CNPQ, nenhum dado foi perdido. Agora, veja, a plataforma Lattes voltou, mas a plataforma Carlos Chagas não voltou. E a Carlos Chagas é a que permite você pedir bolsas, usar recursos; se você já tem um auxílio concedido, é ela que permite que você saiba quanto de dinheiro ainda está na sua conta. Isso tudo está fora do ar ainda. É sinal do quê? É sinal de falta de prioridade. Saiu nos jornais que a plataforma Lattes estava sem contrato de manutenção há um certo tempo. Como você quer que um sistema robusto de informações funcione se você não dá manutenção para ele? Não tem jeito.
Ribeiro – É a mesma coisa do supercomputador Tupã, que fica em Cachoeira Paulista e é essencial para a previsão do tempo, que ajuda o agronegócio, o turismo. O governo não está querendo pagar a conta de energia dele. Ele corre o risco de parar. Aí você perde na previsão do tempo. Eu comparo isso a dar a manutenção em um carro. Você compra um carro bom, um Mercedes-Benz, e não vai pôr óleo? Você vai deixar de fazer isso? Vai deixar fundir o motor e perder o seu veículo bom? É um absurdo, não é? É um pouco isso que está acontecendo. Não está se dando manutenção àquilo que mais pode trazer prosperidade ao Brasil, que é o conhecimento científico e a educação.
EC – Bolsonaro disse que iria inverter prioridades na educação, dar prioridade ao ensino básico e, concretamente, nada fez. Obviamente, sabemos que o ensino básico é uma atribuição dos municípios, mas durante os governos do PT havia também uma crítica de que as gestões daquele partido priorizavam o ensino superior na formulação de políticas. Qual é a sua opinião?
Ribeiro – São várias questões. Primeira, na realidade, Bolsonaro não falava de educação. Uma vez, falou no segundo turno quando disse que queria recuar o Brasil 50 anos em matéria de segurança e de costumes. Ele culpava pela liberação dos costumes o Paulo Freire. Chegando ao governo, eles disseram o óbvio porque não tinham um programa de educação. Falaram o óbvio de que você tem que melhorar a educação básica. Com isso, todos estamos de acordo. Eu estou de acordo. Só que eles não fizeram nada nessa direção. Não tomaram nenhum cuidado quando começou a pandemia para garantir que os alunos das escolas públicas tivessem acesso à internet, por exemplo. Ele (Bolsonaro) até vetou o projeto de lei do deputado Idilvan Alencar (Nota da Redação: PDT-CE) que mandava usar os recursos do fundo de universalização dos serviços de telecomunicações para garantir banda larga e tablets para crianças pobres. Até isso ele vetou.
EC – E a questão das administrações petistas?
Ribeiro – O Ministério da Educação, como você falou, tradicionalmente lida com o ensino superior, com as universidades federais. Mas desde os anos 1990, desde os governos Fernando Henrique, se não no governo Itamar Franco, se tem noção de que se a alfabetização ficar só nas mãos dos municípios, vai ser difícil 5.570 municípios tomar conta disso. Então, você tem que colocar também o governo federal e os estaduais ajudando. E houve muita coisa nessa direção. Tanto que na greve das federais que houve contra o governo Dilma, quando eu era ministro, uma das reivindicações das universidades federais, dos professores e servidores das universidades federais, era aumentar o seu orçamento tirando da educação básica. Então, ao contrário dessa crítica, os governos do PT colocaram dinheiro na educação básica, colocaram muito conhecimento na educação básica; teve políticas voltadas, mas teve oposição a isso.
EC – O atual ministro da Educação declarou recentemente que o ensino superior deve ser para poucos. Para ele, “tem muito engenheiro ou advogado dirigindo Uber porque não consegue a colocação devida”. O que dizer?
Ribeiro – Olha, se tem engenheiro guiando Uber é porque a economia está ruim. O problema não é estar formando engenheiro demais. O problema é que o Brasil não está conseguindo utilizar uma mão de obra qualificada para melhorar a sua produtividade porque a economia está em um caminho errado. Nenhum país se desenvolve hoje economicamente, nenhum país aumenta o PIB, sem uma boa formação de engenheiros, para usar o exemplo que o ministro citou. Isso o Brasil procurou fazer nos últimos anos, antes do golpe. O ministro está invertendo totalmente as coisas. Ele está pensando que temos que reduzir a formação de engenheiros, temos que reduzir a formação de obra qualificada. Por que isso? Porque é um governo de pouca ambição. Se este governo tivesse a ambição de desenvolver o Brasil, ele iria querer mais e mais engenheiros, porque toda a vez que o Brasil começa a desenvolver-se, quando começa a aumentar o PIB, um dos primeiros gritos do empresariado é de que estão faltando engenheiros. Então, o ministro está errado nisso.
EC – Ele andou questionando também as políticas de cotas.
Ribeiro – Quanto à questão das cotas, os alunos filhos de pais mais ricos têm metade das vagas para eles. Mas como os governos do PT subiram as vagas no ensino superior de 100 mil para 230 mil – quer dizer, havia 100 mil vagas para não cotistas, quando não havia cotas em 2002, e passou a haver 115 mil vagas para não cotistas, então, ninguém foi prejudicado. Quanto à tese de que os alunos mais ricos são aqueles cujos pais pagam mais impostos, isso não é verdade. Do ponto de vista do percentual da renda da pessoa, não do valor bruto do que se paga, o pobre paga mais imposto do que o rico. O rico consegue poupar, consegue economizar. O pobre não consegue, e se você pega no fim do mês quanto do salário do pobre foi em imposto, se vê que é ICMS, impostos indiretos, não sobre a renda. Imposto sobre a renda no Brasil não é o mais importante. Em países desenvolvidos, o imposto sobre a renda é muito mais importante do que aqui. Um país desenvolvido se caracteriza por tributar fortemente a renda e o patrimônio, que no Brasil escapam. Um dos nossos principais impostos, o grande imposto estadual, é o imposto sobre o consumo, que é um imposto injusto socialmente. O ministro realmente está equivocado aí também.
EC – Aliás, o ministro estava inspirado. Na mesma ocasião, disse que escolas técnicas seriam as “vedetes do futuro” e que universidades não são “tão úteis à sociedade”. O que me diz?
Ribeiro – O Brasil tem 20%, na faixa dos 18 aos 24 anos, no ensino superior. Argentina e Chile têm perto cada um de 40%. Mais de 30%, com certeza. Os países da OCDE (NR: Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) têm 50%, pelo menos. Então, se o Brasil quer se desenvolver, ele tem que fortalecer o ensino superior. Agora, a educação técnica foi um dos grandes projetos da presidente Dilma. Talvez Dilma Rousseff foi quem mais lutou no Brasil pela educação técnica, inclusive com o Pronatec (NR: Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego), que foi um programa que depois foi praticamente extinto. Foi extinto, na verdade, no governo Temer. Acabou. Então, ela, que pretendia melhorar a qualificação da mão de obra e, portanto, a remuneração das pessoas, pensou numa boa formação técnica. Nada contra. Agora, dizer que os pobres não devem fazer um ensino superior, mas uma educação técnica é uma bobagem. Porque as duas formações são importantes para fazer um país se desenvolver.