Espanha: o sentido e as consequências das reformas trabalhistas
O objetivo da reforma trabalhista, na Espanha e no Brasil, é ampliar o poder e a liberdade do capital e diminuir o poder do trabalho
Ricardo Dathein*
Na busca por mais rentabilidade e mais lucros, a classe capitalista possui duas alternativas básicas: ou aumenta a “produtividade do capital”, ou retira mais renda dos trabalhadores. Além disso, quando houver, pode ocupar a capacidade ociosa da economia. A primeira alternativa é alcançada com inovações, com abertura de novos mercados etc. A segunda, via crises econômicas e com reformas trabalhistas que enfraqueçam a classe trabalhadora, por exemplo. A primeira permite ganhos compartilhados e um crescimento sustentável no tempo. A segunda gera concentração de renda, pobreza relativa e conflitos, além de insustentabilidade.
Depois da grande crise de 2008/09 e da crise europeia de 2012/13, certamente houve um enfraquecimento ainda maior da classe trabalhadora na Espanha. A taxa de desemprego, que já era alta (8,2% em 2007), cresceu continuamente até chegar a impressionantes 26,1% em 2013 (FMI). Esse enfraquecimento do poder de barganha dos trabalhadores abriu caminho para mais uma reforma trabalhista prejudicial aos seus interesses.
Por outro lado, a estrutura econômica (e, portanto, a qualidade das ocupações) da Espanha tem piorado. Segundo o Observatory of Economic Complexity o Índice de Complexidade Econômica desse país passou de 0,98 em 2005 (25º no ranking mundial) para 0,90 em 2012, e continuou sua tendência de redução até 0,85 em 2019 (caindo para 36º no ranking). Em termos de produtividade do trabalho relativa aos Estados Unidos, a Espanha passou de cerca de 30% em 1950 para 90% nos anos 1980. Depois de certa estabilidade, de 1997 a 2007 reduziu essa proporção para cerca de 75%. Considerando o período mais recente, esse indicador passou de 75,9% em 2012 para 73,7% em 2019. Ou seja, a Espanha não tem conseguido ampliar sua produtividade relativa via complexificação e sofisticação de sua estrutura produtiva.
Depois da crise europeia a economia espanhola voltou a crescer. A taxa de crescimento do PIB foi em média de 2,6% de 2014 a 2019, com a taxa de investimentos passando de 17,2% em 2013 para 20,9% em 2019 (FMI). Com isso, o emprego aumentou, mas em 2019 ainda não tinha alcançado o nível de 2008. O número de ocupados foi de 21,0 milhões em 2008, 17,7 milhões em 2013 e em 2019 alcançou 19,9 milhões (Penn World Table). A taxa de desemprego caiu dos 26,1% de 2013 para 14,1% em 2019. Essa taxa, e com toda a flexibilização das reformas trabalhistas, ainda é muito maior que a de outros países desenvolvidos. Por exemplo, Alemanha, Japão, Reino Unido e Estados Unidos tinham em 2019 taxas de desemprego entre 2% e 4%. França e Portugal também tinham taxas bem menores que a Espanha (FMI). Por outro lado, a taxa de subutilização da força de trabalho (pessoas de 15 a 64 anos) na Espanha, que também se reduziu depois de 2012, ainda permaneceu no elevado patamar de 23,3% em 2019 (OIT).
Tendo o emprego aumentado e a taxa de desemprego caído, os liberais podem argumentar que a reforma trabalhista funcionou, nesse sentido. Mas, na realidade, o que gerou esses empregos foi o crescimento econômico, com aumento de demanda. Em 2013 a economia espanhola estava funcionando 9% abaixo de seu PIB potencial (FMI). Assim, no período seguinte, a recuperação ocorreu ocupando essa capacidade ociosa, somente chegando à plena capacidade em 2019.
A ideia teórica liberal é a de que reformas trabalhistas, com maior flexibilidade, gerariam mais eficiência na produção, e, portanto, maior produtividade e crescimento econômico. No entanto, a produtividade do trabalho subiu em média 0,5% entre 2013 e 2019, nos 7 anos após a reforma trabalhista de 2012, enquanto nos 7 anos anteriores, de 2005 a 2011, esse crescimento havia sido o dobro, 1,0%, em média (Total Economy Database). É claro que há muitos outros fatores atuando, mas vários deles atuaram positivamente depois de 2012, como, fundamentalmente, a superação da crise econômica.
A taxa de lucro média da economia espanhola subiu de 6,7% em 2012 para 7,8% em 2017. Posteriormente, no entanto, já estava caindo, mesmo antes da pandemia, chegando a 7,4% em 2019 (Penn World Table). Como os fatores impulsionadores da “produtividade do capital” estão, possivelmente, funcionando de forma negativa, esse crescimento da taxa de lucro ocorreu, em primeiro lugar, pela ocupação da capacidade ociosa. Mas, além disso, com a ampliação da participação dos lucros na renda, e é justamente esse o sentido e o objetivo das reformas trabalhistas que ampliam o poder de barganha da classe capitalista.
Assim, aparentemente, os ganhos de lucratividade não estão sendo originados por melhora da estrutura econômica, mas por ocupação de capacidade produtiva já instalada e por concentração de renda. De fato, a concentração de renda determinada pelo mercado (antes dos impostos) cresceu na Espanha. O 1% da população com maior renda, que poderia ser classificada como a classe capitalista, continuou sua tendência de crescimento da apropriação da renda, aumentando sua parcela de 12,1% em 2012 para 12,7% em 2019. Como a participação na renda dos 50% mais pobres permaneceu mais ou menos constante, entre 20% e 21%, a relação entre a renda do 1% mais rico com os 50% mais pobres passou de 57,9% em 2012 para 60,5% em 2019 (World Inequality Database). De outra parte, apesar de os salários médios terem crescido de 2012 a 2019, em termos reais nesse último ano ainda eram inferiores aos valores de 2010 (OIT).
O objetivo desse tipo de reforma trabalhista, como a espanhola, portanto, é ampliar o poder e a liberdade do capital e diminuir o poder do trabalho. Esse foi, também, o sentido da reforma no Brasil. Sendo possível, levar os salários ao seu nível de subsistência, pois essa é de fato a tendência no capitalismo, não havendo forças sociais que se contraponham. É também a saída mais fácil para aumentar a lucratividade. Inovar e complexificar a economia é mais difícil. No entanto, a alternativa da concentração de renda é inferior não só em termos sociais, mas inclusive para os lucros, no longo prazo. Por exemplo, em uma economia com baixo dinamismo, a alternativa de busca de soluções individuais determina a necessidade de viabilizar negócios de baixa produtividade, efetivamente inviáveis, tornando imperiosas reformas sem fim para reduzir custos.
Assim, ao contrário da lógica de que a flexibilização produz maior eficiência alocativa e, portanto, aumento de produtividade e crescimento, o sentido da reforma trabalhista liberal é o oposto. Ou seja, o objetivo é compensar a incapacidade da economia de aumentar significativamente a produtividade. Uma concepção econômica vulgar, amplamente difundida, centra-se na análise dos efeitos microeconômicos, ao nível da firma, com as vantagens da redução de custos, e projeta isso para a economia como um todo e para a dinâmica econômica ao longo do tempo. Não percebe, no entanto, o fundamental, que são os fatores macroeconômicos e estruturais.
As reações atuais na Espanha e no Brasil contra essas reformas que permitem a acomodação e a consagração da ineficiência da classe capitalista são um alento não só em termos sociais, mas também para o desempenho da economia, ainda mais em um país subdesenvolvido como o Brasil, com uma das maiores concentrações de renda do mundo.
*Ricardo Dathein é professor do Programa de Pós-Graduação em Economia da UFRGS