Genivaldo e o espírito de Nise da Silveira
Duas notícias na última quarta-feira (25) se complementam e revelam o caminho para o qual o Brasil está sendo empurrado. A tortura e o assassinato de Genivaldo de Jesus Santos por agentes da PRF (Polícia Rodoviária Federal), bem como o veto do presidente genocida à inclusão do nome da médica e psiquiatra Nise da Silveira ao Livro de Heróis e Heroínas da Pátria
Mário Simões*
A psiquiatra Nise da Silveira foi a única mulher que se formou no estado da Bahia, em 1926, na turma de medicina em meio a 157 homens. Esse pioneirismo seguiu revolucionando a psiquiatria, combatendo justamente a violência que a medicina reservava às pessoas que viviam em sofrimento psíquico.
Dessa forma, a medicina servia como instrumento da sociedade para o controle de pessoas com comportamento “fora do padrão” que, na linguagem do bolsonarismo, seriam aqueles que não são “pessoas de bem” ou “seres humanos direitos”. A própria Nise, por exemplo, ficou presa por 18 meses, em 1936, no presídio Frei Caneca por ter posse de livros marxistas.
Esta experiência foi citada no livro Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, que registra o nome de outros heróis e heroínas perseguidas pelos golpistas do Estado Novo. Libertada, foi obrigada à vida semiclandestina até 1944.
Nada mais em sintonia com os valores do atual governo.
Para dizer pouco, Nise incorporou a arte na humanização da psiquiatria, dialogou com críticos, promoveu exposições e introduziu cães e gatos no convívio com os pacientes.
Nada mais em dissintonia com os valores do atual governo.
Já Genivaldo de Jesus Santos, negro, 38 anos, foi parado pelos agentes da PRF quando trafegava de moto pela BR-101, em Umbaúba, litoral sul de Sergipe. Não usava o capacete obrigatório, prática comum no Nordeste.
Genivaldo obedeceu aos policiais, desceu da moto, colocou-a no tripé e disse que estava com os remédios psiquiátricos no bolso e tinha a receita médica para provar os seus transtornos. Ao ver o início de truculência contra o tio, Wallison deu o alerta aos policiais confirmando a versão de Genivaldo. “A gente pediu para pegar leve, que ele ia atender o que eles pedissem, mas o policial chamou reforço”. A chegada de mais 2 agentes deu início à série de agressões, ainda que Genivaldo estivesse rendido e imobilizado.
O desfecho foi trágico e as imagens, chocantes. Genivaldo foi atirado à traseira do camburão, onde foram jogados gás lacrimogênio e gás de pimenta. A tampa foi abaixada, e Genivaldo permaneceu se debatendo, conforme se vê pelas pernas que ficaram de fora, pressionadas pela porta traseira da viatura.
A morte foi por “insuficiência aguda secundária e asfixia”. A situação era óbvia, até mesmo para agente bolsonarista da PRF, pois ninguém poderia sobreviver àquela brutal agressão. Impossível alegar inocência. Inevitável é também compará-los aos nazistas e a situação, às câmaras de gás, utilizadas para eliminar, dentre muitos, aqueles e aquelas com transtornos mentais.
A ação foi tortura e assassinato. E não dá para esquecer que ali estavam, como coautores, instrutores e comandantes, que, inclusive, confessaram, em nota, a tentativa de amenizar a (ir)responsabilidade dos agentes e da corporação – as tentativas posteriores não reduzem a gravidade do ato anterior. O que fizeram os agentes não pode ser visto como ato isolado.
Os 2 momentos, o dos agentes da PRF e o do presidente da República, mostram nitidamente “Projeto de Nação”, um Brasil que está vendo presente e futuro serem destruídos. Nem é preciso esperar até 2035 para constatar, como pretendem alguns fardados.
O Genivaldo com transtorno psiquiátrico seria acolhido no Brasil de Nise da Silveira. No Brasil do atual governo, porém, o que se pretendeu foi retomar o eletrochoque como padrão de tratamento psiquiátrico, retroagindo à primeira metade do século passado quando Nise da Silveira enfrentou os “doutores” para mostrar que havia gente por trás dos diagnósticos e das torturas disfarçadas de tratamento.
A mensagem que os 2 eventos sugerem à sociedade é a da violência e da destruição, que já se expressam na ameaça de golpe contra a democracia, na agressão contra mulheres, no racismo, na LGBTQI+fobia, na fome, na inflação, no desemprego, na destruição do meio ambiente, no descaso com a saúde, na militarização da educação e na milicialização da sociedade. E, particularmente, no descaso, na omissão e no incentivo a todos esses crimes juntos e a outros que ficaram fora desta lista.
Exatamente tudo o que Nise da Silveira não representa.
É preciso derrubar o veto expresso ao Brasil de Nise da Silveira.
Precisamos de projeto de Brasil que inclua o nome de Nise da Silveira no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria e, mais ainda, que seja iluminado pela solidariedade que ela, postumamente, representa, respeito e amor pelo povo mais simples e abandonado.
De um Brasil que julgue e condene o presidente e quaisquer outros criminosos, vistam ou não farda, tenham ou não estrelas nos ombros, que reservem ao povo bala perdida ou 81 com direção certa. Um Brasil que aponte o Lixo da História da Pátria a todos e à todas que tenham a alma e o coração sombrios, incapazes de se solidarizar com a dor do conterrâneo ou conterrânea. Àqueles que ocupam funções de Estado e roubam o brilho recebido da soberania popular para iluminar seus projetos pequenos e mesquinhos.
Esse novo caminho do Brasil pode começar no outubro próximo, mas precisa continuar depois sob o espírito de coragem e de luta de Nise da Silveira, enfrentando a ignorância e a ignomínia dos “doutores” do bolsonarismo e do neoliberalismo que apartam dos benefícios da sociedade os mais simples e os que não se encaixam no padrão de “gente de bem”.
Portanto, precisamos de um Brasil que tenha o espírito de Nise da Silveira para enfrentar aqueles que reservam ao povo ração minguada, choques, elétricos ou não, e que mantêm o povo numa camisa de força, impedindo a todos e a todas que se desenvolvam como seres humanos plenos, criativos e diversos.
(*)Mário Simões é jornalista