A Comissão da Verdade e a luta democrática | Por Augusto C. Buonicore

Por Augusto C. Buonicore

O que o passado pode nos ensinar? Esta é uma pergunta que perturba o sono da humanidade desde os seus primórdios. Todas as comunidades procuraram de alguma forma estabelecer laços com seu passado. Ora para aceitá-lo e transformá-lo numa referência para a atuação no presente. Ora para rejeitá-lo, como algo a não ser seguido. Portanto, é uma das características dos homens e das mulheres vivendo em sociedade fazer comparações entre o seu passado e o presente e, a partir daí, tentar projetar como seria o futuro: um futuro melhor.

As pessoas comuns – o senso comum – tendem, na maioria dos casos, a jogar a culpa pelos erros cometidos pela humanidade nas costas da própria ignorância, da incapacidade dos homens e mulheres em extrair lições dos acontecimentos ocorridos no passado. Afirmam: “Se tivéssemos aprendido com os nossos erros, não os teríamos cometido de novo”. Esta conclusão pode até valer na vida privada, mas não serve para o entendimento da história das sociedades humanas divididas em classes sociais.

Aqui, infelizmente, ao contrário do que diz o senso comum, os fatos históricos não falam e nem ensinam por si mesmos, pois eles são “lidos” por homens e mulheres portadores de interesses contraditórios e, por vezes, antagônicos. Assim, não é possível ver a história de um mesmo jeito e extrair dela sempre as mesmas lições, independentemente do lugar social em que se esteja.

Um ditado, talvez, nos seja muito útil neste debate: “Se os teoremas da geometria, hoje universalmente aceitos, entrassem em conflito com os interesses das classes sociais, com certeza, eles também seriam objetos de questionamentos e de conflitos acirrados”. Lembramos, por exemplo, quantos livres pensadores foram aprisionados, supliciados e até executados por afirmarem simplesmente que a Terra não era plana e, pior, não era o centro de um universo criado por Deus.

Por que houve tantas e sangrentas polêmicas em torno de coisas que hoje nos parecem tão evidentes? É que essas verdades, na época, atingiam em cheio interesses poderosos da alta nobreza e da hierarquia da Igreja católica. Muitos crentes, inclusive, recusavam-se a olhar pelo telescópio para não serem tentados pela ciência demoníaca que era a astronomia.

Aonde quero chegar? Em todas as sociedades existe um combate surdo pela memória. Este combate faz parte de uma luta ainda maior que é a luta pela conquista da hegemonia. Em outras palavras, a história e a memória são espaços nos quais grupos sociais se enfrentam para decidir quem dirigirá os destinos da nação ou mesmo do Planeta. Contudo, na maioria das vezes, não nos damos conta disso.

Um povo sem memória, sem uma identidade que se funda num determinado passado e num projeto de futuro, estará sempre fragilizado diante de seus inimigos. Cada vez que uma classe se coloca na condição de se tornar hegemônica, ela (re)constrói a história sob sua perspectiva, em geral mais avançada. Portanto, a vitória desta ou daquela escolha não é gratuita, e sim o resultado das lutas sociais numa determinada dimensão: a da representação social.
Por isso, as classes dominantes sempre procuraram reconstruir o passado para, no presente, justificar sua própria dominação. Buscaram sempre obscurecer e mesmo apagar a memória e a identidade das classes subalternas e das nações subjugadas.

Aqui já estamos entrando no campo minado do processo de construção da anistia e da Comissão da Verdade no Brasil. O que é aparentemente algo simples e tranquilo – pois envolve duas palavras quase mágicas: justiça e verdade – se torna algo complexo e explosivo.

As vicissitudes do processo de democratização

Voltemos um pouco ao nosso passado recente. As ditaduras militares da América do Sul foram derrotadas por amplos movimentos que ganharam as ruas e as praças públicas das principais cidades. Contudo, não foram derrubadas por ações insurrecionais – ou revolucionárias. Em todos esses casos, em níveis diferentes, houve algum tipo de negociação com setores ligados ao antigo regime. Isto explica uma série de limitações dos nossos processos de democratização. Grosso modo, foram transições e não rupturas. E, aqui, não cabe passar descomposturas na história.

Como o rompimento com os aspectos negativos do passado não foi radical, ou melhor, não teve a radicalidade necessária, a ideologia (conservadora) que sustentava o sistema opressivo anterior não foi suficientemente extirpada entre nós. Ela ainda nos cerca e contamina nossas instituições privadas e públicas.

Sabemos que as ideologias mudam mais vagarosamente que a base econômica e os regimes políticos. Mesmo após uma revolução, as ideologias antigas permanecem e em alguns casos se fortalecem junto àqueles setores sociais que foram seus portadores no período anterior – numa forma de autodefesa contra o novo que surge e vai se impondo. Os preconceitos mais vis – até então soterrados no subconsciente – vêm à tona. Vide a campanha presidencial passada, quando o tema “terrorismo” da esquerda durante a ditadura veio à baila com certa força entre os setores médios.
Se essas ideologias conservadoras e reacionárias permanecem por algum tempo até quando ocorrem revoluções, imaginem quando não as há. E, ao contrário, muito menos quando ocorre uma transição lenta, gradual – e nem sempre segura –, como ocorreu entre nós.

Vejamos, então, o caso brasileiro. Vamos resumir e nos referir apenas ao período final do regime militar. Depois da grande campanha pelas “diretas já!”, a saída encontrada – e, possivelmente, a única viável naquele momento – foi a participação da oposição no Colégio Eleitoral, criado pelo próprio regime visando à sua perpetuação.

O candidato das oposições era o governador Tancredo Neves – representante dos setores conciliadores do PMDB. O aspirante a vice-presidente, por sua vez, havia saído recentemente do partido oficial, a Arena/PDS. Devido à trágica morte de Tancredo, a presidência caiu nas mãos de Sarney que, apesar das medidas democráticas adotadas nos primeiros anos de governo, sucumbiu à pressão conservadora e militar. Outros próceres da Nova República tiveram a mesma trajetória, como Antônio Carlos Magalhães e Marco Maciel. A maioria dessas pessoas havia apoiado o golpe de 1964 e a ditadura militar, inclusive em seus períodos mais repressivos. Desprenderam-se do regime apenas na crise sucessória de 1984.

Outro detalhe importante: a quase totalidade dos grandes meios de comunicações e dos empresários também havia sido favorável à ditadura, pelo menos até o início da crise econômica de 1974-1975. Neste período alguns fizeram um leve movimento para o campo da oposição, tendo como bandeira o liberalismo contra o excesso de intervencionismo estatal.
Vamos nos deter apenas no exemplo do apoio do nosso empresariado ao regime discricionário durante sua fase mais tenebrosa. No livro Ditadura Escancarada de Elio Gaspari, lemos: “A reestruturação da PE paulista e a Operação OBAN foram socorridas por uma ‘caixinha’ a que compareceu o empresariado paulista. A banca achegou-se no segundo semestre de 1969, reunida com Delfim Neto num almoço no palacete do Clube São Paulo (…). O encontro foi organizado por Gastão Vidigal, dono do Mercantil de São Paulo (…). Sentaram-se à mesa cerca de quinze pessoas. Representavam os grandes bancos brasileiros. Delfim explicou que as Forças Armadas não tinham equipamentos nem verbas para enfrentar a subversão. Precisavam de bastante dinheiro. Vidigal fixou a contribuição em algo como 500 mil cruzeiros da época, equivalente a 110 mil dólares”. Vidigal afirmaria: “Dei dinheiro para o combate ao terrorismo. Éramos nós ou eles”.
Continua Gaspari: “Na Federação das Indústrias de São Paulo, convidavam-se empresários para reuniões em cujo término passava-se o quepe. A Ford e a Volkswagen forneciam os carros, a Ultragás emprestava os caminhões (para serem usados em operações de cobertura para a ação da repressão política) e a Supergel abastecia a carceragem da rua Tutóia com refeições congeladas. Segundo Paulo Egydio Martins, que em 1974 assumiria o governo de São Paulo, ‘àquela época (…) pode-se dizer que todos os grandes grupos comerciais e industriais do estado contribuíram para o início da OBAN’”. Embora só cite duas multinacionais, podemos dizer que o conjunto dessas empresas no país foi muito generoso nas doações aos órgãos de repressão.

Os meios de comunicação privados – jornais, revistas, rádios e TVs, que também são empresas capitalistas – na sua grande maioria deram seu apoio ao golpe e ao regime discricionário. As exceções ficaram por conta do jornal Última Hora e Correio da Manhã. Este apoiou o golpe, mas recuou de suas posições mais conservadoras quando a ditadura se implantou e mostrou suas garras. O grupo Folhas, por exemplo, chegou ao extremo de emprestar suas caminhonetes para o DOI, que as usava para transportar presos políticos na busca de “pontos” com outros militantes. Por isso mesmo essas viaturas foram atacadas por grupos guerrilheiros.

No entanto, a melhor ajuda que davam ao regime era reforçar a tese de que os opositores, especialmente os da esquerda armada, eram perigosos terroristas e encobrir seus assassinatos – a maioria das vezes sob torturas – com mirabolantes versões sobre mortes em tiroteios, atropelamentos durante fugas e mesmo suicídios. É certo que o governo militar impunha censura a certas matérias e certos assuntos, mas não obrigava que suas notas mentirosas fossem inseridas na íntegra, como matéria do próprio jornal.

Os proprietários e editores tinham a liberalidade de colocar entre aspas e citar as fontes da “informação”. Coisas que, em geral, não faziam. Em 6 de janeiro de 1973 A Folha de São Paulo estampava a notícia “Prisões eliminam focos terroristas”. Nela afirmava que os dirigentes do PCdoB Lincoln Oest, Luiz Guilhardini e Lincoln Bicalho Roque tinham sido baleados ao fugirem ou resistirem à prisão. Mas todos eles foram mortos sob bárbaras torturas.
A rede Globo abria sua grade para programas de louvação ao regime militar, especialmente sobre o Milagre Econômico e o clima de “ordem e tranquilidade” reinante no país. Destaco lixos ideológicos, como “Amaral Neto: o Repórter”. Mais à frente, em plena “abertura política”, temos o caso do primeiro grande comício das diretas já! – anunciado como festa de aniversário de São Paulo.

No Brasil, ao contrário de outros países, grande parte dos poderes Judiciário e Legislativo subordinou-se àquela situação. O Congresso Nacional – articulado com os militares golpistas – votou ilegalmente o impedimento de João Goulart, argumentando que ele havia abandonado o governo. O Parlamento – apesar de desfalcado dos setores mais combativos – continuou votando com o regime e – a não ser por curtos períodos – não foi fechado. O Judiciário, grosso modo, se portou da mesma maneira. Pactuou – ainda que através do seu silêncio – com o golpe e o arbítrio. É claro, tanto no Parlamento, como no Judiciário e até nas Forças Armadas houve exceções, mas as instituições se portaram de maneira conservadora.

A visão que esses setores poderosos buscaram passar foi que o golpe se constituiu num mal necessário, diante da desordem que vivia o país sob o governo populista e irresponsável de Jango. Contudo, a “revolução de 1964”, no início denominada de “redentora”, misteriosamente se desviou de seus objetivos e desembocou numa férrea ditadura nas mãos exclusivas de militares sedentos de poder. Pior: de militares que perderam o controle sobre os porões do regime. As torturas e mortes – de autoria de alguns maníacos – teriam sido frutos desse descontrole governamental.
Toda a responsabilidade pelo acirramento do arbítrio foi colocada nas costas da “linha dura” militar e de alguns maus policiais (como Fleury), incrustados no interior do aparelho estatal brasileiro. Assim, um manto de silêncio desceu sobre o papel ativo desempenhado pelos grandes empresários, pela mídia brasileira e pela diplomacia de guerra de potências ocidentais, como os Estados Unidos.

Creio que isso explica, em grande parte, as vicissitudes da nossa chamada transição democrática e do nosso processo de anistia, pois nos faz entender as razões dos inumeráveis entraves colocados à instituição da Comissão da Verdade. Muitos temem que ela possa jogar luzes sobre acontecimentos e estabelecer responsabilidades que prefeririam ver esquecidos.

Os ideólogos do antigo regime, como o coronel Jarbas Passarinho, acuados pelas crescentes denúncias de abuso e de desrespeito aos direitos humanos, inventaram o mito da guerra suja dos dois lados. Este é o outro mote dos ex-agentes da repressão e seus “advogados”, que não podem mais negar as torturas e os assassinatos. Dizem: “Cometemos abusos, é verdade, mas o outro lado também os cometeu. Como somos todos, de alguma maneira, culpados, nada melhor que esqueçamos o passado”. E concluem com ares de superiores: “Anistia é esquecimento!”.

Uma argumentação falaciosa, pois sabemos que a quase totalidade dos opositores ativos ao regime militar teve de responder por suas ações e pagou muito caro por sua ousadia libertária. Foram demitidos, presos, banidos, torturados e assassinados. Os corpos de muito deles ainda estão desaparecidos. Portanto, quando foram anistiados já tinham pagado todas as suas penas – muito além do que determinava as leis de exceção do período, que não prescreviam tortura, execução sumária e desaparecimento de corpos. Não só nada devem como a eles é devido.

Vamos aos números: calcula-se em 500 mil o número de cidadãos brasileiros investigados pelos órgãos de segurança; 200 mil detidos por suspeita de subversão; 11 mil acusados nos inquéritos das auditorias militares, 5 mil deles condenados, e a grande maioria torturada; 10 mil exilados; 4.862 mandatos cassados; 1.202 sindicatos sob intervenção; 245 estudantes expulsos das universidades apenas através do Decreto 477; 49 juízes expurgados; 3 ministros do Supremo afastados, o Congresso Nacional fechado por três vezes; censura prévia à imprensa e às artes; 400 mortos, com 144 desaparecidos até hoje. Muitos consideram estes números irrisórios. Bem, esta não deixa de ser uma maneira (reacionária) de ver as coisas.

E o que ocorreu àqueles agentes do Estado que, desrespeitando as leis da própria ditadura, torturaram, mataram e desapareceram com os corpos dos prisioneiros políticos? Estes foram anistiados – incluídos nos “crimes anexos” – sem terem tido qualquer julgamento, sem sofrerem nenhuma sanção legal, nem mesmo administrativa. Seus nomes e as condições de seus atos continuam na penumbra. Dizem que é preciso virar esta pagina da história. O juiz espanhol Baltazar Garzon, respondendo a isto, afirmou: “sim é preciso virar esta página do livro, mas não antes de lê-la”.

Outra falácia: dizem que, como os militares, a esquerda também deve abrir seus arquivos. No entanto, os nomes e feitos dos resistentes são conhecidos através dos depoimentos prestados à polícia, à imprensa e aos pesquisadores; através de inúmeras biografias e artigos publicados. Lembremos também que grande parte dos arquivos da esquerda foi apreendida pela polícia. Apenas dois exemplos: os documentos que estavam na casa onde ocorreu a Chacina da Lapa, inclusive os relatórios de avaliação sobre a Guerrilha do Araguaia foram levados pelo exército; o Diário do comandante guerrilheiro Maurício Grabois também caiu nas mãos da repressão. Até hoje não se sabe onde estão.

Outra coisa: a maioria dos sobreviventes daqueles anos sombrios se orgulha de sua atuação contra o regime, embora reconheça os muitos erros que foram cometidos. Mostra a cara e assume suas responsabilidades perante o povo e a nação. Nada tem a esconder. Quanto aos torturadores e seus comandantes acontece justamente o inverso. Escondem seus rostos e feitos. Temem que a verdade apareça e a justiça se faça.

Uma palavra sobre a Lei de Anistia e a Comissão da Verdade

A força desses setores conservadores tem moldado negativamente a transição e a construção da democracia entre nós. Quando da aprovação da Lei de Anistia, em 1979, eles conseguiram impedir que as mãos da justiça alcançassem os criminosos incrustados no interior do aparelho de Estado.

Em torno disso um novo mito conservador foi se constituindo. Um mito que, de certa forma, foi expresso na decisão de Supremo Tribunal Federal quando este se recusou a invalidar os aspectos daquela lei que contrariavam a atual Constituição Brasileira, e leis internacionais que tratavam dos direitos humanos. Estas consideram a tortura como crime imprescritível e, portanto, impossível de ser incluído em qualquer processo de anistia.

O procurador-geral da República, Roberto Rangel, chegou a afirmar que a Lei da Anistia “foi o resultado de um longo debate nacional”. De fato, o debate sobre a anistia ocorreu, mas a lei não foi resultado deste debate ou mesmo de um acordo nacional entre oposição e governo. Ela foi uma imposição do poder Executivo ainda ditatorial. A quase totalidade de emendas apresentadas pelo MDB foi rejeitada.

E há um fato que os conservadores parecem esquecer: a Lei foi aprovada por 206 votos da Arena contra 201 votos do MDB; uma diferença de apenas 5 votos – 1% do Congresso. Um Congresso contaminado pela presença de senadores biônicos (32%); instituído pelo pacote de abril de 1977, por graves distorções nas representações estaduais; e inúmeras outras limitações democráticas. Um Parlamento que, sob um regime discricionário, não podia representar plenamente os interesses da nação e do povo brasileiro. Só com muito cinismo poderíamos considerar que um Congresso cerceado – com maioria arenista – pudesse ser a expressão dos interesses nacionais e populares.

Ao contrário da vontade da oposição, a Lei não garantiu anistia para vários prisioneiros e banidos – acusados de “crimes de sangue” –, e estendeu este direito aos agentes do Estado que cometeram crimes contra presos. A tortura e os assassinatos políticos, malandramente, foram incluídos no item “crimes conexos”.

Na ocasião, o senador Pedro Simon chegou a afirmar: “Sem biônicos, o resultado seria outro; a lei 6683/79 é o resultado da imposição e controle do executivo sobre o Legislativo (…) e através do termo crimes conexos, cuja definição não é clara (…) deixou impunes os torturadores e excluiu centenas de militantes de esquerda que resistiram contra o regime militar, evidenciando o caráter de autoanistia contido na lei”. As leis de autoanistia dos torturadores já foram revogadas na maioria dos países que conquistaram a democracia. Neste campo, o Brasil está bastante atrasado quando comparado com seus vizinhos da América do Sul.

A Câmara de Cassação Penal da Argentina – em junho de 2006 – declarou a inconstitucionalidade do indulto concedido por Carlos Menem a alguns generais argentinos. Decisão confirmada pela Corte Suprema o que criou as condições para que se avançasse no processo de julgamento dos criminosos fardados, inclusive os generais-presidentes. Em abril deste ano a justiça argentina condenou o último presidente militar, general Reynaldo Bignone – de 83 anos – à prisão perpétua em cárcere comum. Não foi o primeiro. Rafael Videla – de 85 anos – continua atrás das grades – condenado em dezembro do ano passado. Na Argentina há 480 pessoas presas envolvidas com a repressão política. A metade deles é composta de altos oficiais das forças armadas.

O Uruguai conseguiu condenar à prisão dois ex-ditadores, Gregório Alvarez e Juan Maria Bordaberry e outros 16. E o senado uruguaio invalidou a lei de anistia e iniciou processo contra mais 50 pessoas. Entre 1985 e 2005, quando o país esteve sob o comando de Colorados e nacionais, não foi encaminhada nenhuma ação contra os agentes da repressão. Inclusive em dois plebiscitos a lei de anistia não foi alterada. Apenas sob o governo da Frente Ampla com Tabaré Vasquez, e agora com Pepe Mojica, as coisas começaram a mudar.

Comissões da Verdade já existem em mais de 40 países que fizeram a transição de regimes ditatoriais para regimes democráticos – embora nem todas as experiências tenham sido positivas. Bolívia (1982-1984), Argentina (1983-1984), Uruguai (1985), Chile (1990-1991), Peru (2000-2001). Apenas no final do segundo governo Lula – mais de 25 anos após o fim do regime militar – é que uma lei como essa, criando a Comissão da Verdade, pôde ser encaminhada ao Congresso. Mesmo assim foi preciso muita negociação e concessões para que ela fosse aprovada nas duas casas legislativas.

O objetivo, expresso na lei, será, entre outros, esclarecer as graves violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988; esclarecer de maneira circunstanciada os casos de torturas, mortes e desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria; identificar e tornar públicas as estruturas locais, as instituições envolvidas naqueles crimes, incluindo suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade; recomendar adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violações de direitos humanos e assegurar sua não repetição, promovendo a efetiva reconciliação nacional.

Mesmo que não possa punir ou mesmo indicar punições, se bem conduzida, a Comissão da Verdade apurará as responsabilidades pelas prisões arbitrárias, torturas, pelos assassinatos e desaparecimentos de militantes políticos brasileiros. Identificará e exporá à opinião pública os nomes dos autores materiais e intelectuais de todos esses crimes hediondos. O resultado inicial possivelmente será a mera condenação moral de seus autores. Contudo, futuramente, conforme as dimensões dos crimes forem mensuradas, poderá haver um clamor cívico nacional que conduzirá o Parlamento e a justiça brasileira a reinterpretarem ou reverem a lei da autoanistia aprovada durante o regime militar e, finalmente, levarem os acusados ao banco dos réus.

O resultado dependerá da nossa capacidade de nos manter atentos e mobilizados. Sem apoio político e social, este esforço para constituir uma Comissão da Verdade poderá ser frustrado. Como vimos, as forças contrárias à verdade são muito poderosas e ainda persistem na grande mídia, no mundo empresarial, nas forças armadas, no Judiciário e em outros aparatos estatais. Elas não cansam de repetir que anistia deveria significar esquecimento. Temendo por sua sorte, buscam confundir verdade e justiça com revanchismo. Os brasileiros não cairão neste engodo.
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Texto apresentado no Congresso Internacional História, Memória e Justiça – mesa Lições do passado para a História e o Direito, promovido na PUC-RS em parceria com o Ministério da Justiça e Comissão de Anistia.
* Augusto Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois e autor de Marxismo, história e revolução burguesa: Encontros e desencontros

Fonte: Fundação Mauricio Grabois

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