A Constituição de 1988 e o movimento popular
Por Aldo Arantes*
No dia 5 do mês de outubro foram comemorados os 25 anos da Constituição de 1988. Muitos a veem como fruto da racionalidade dos constituintes e não conseguem identificar que ela foi a resultante da correlação de forças estabelecida no curso da elaboração do texto constitucional. Sendo que a participação popular foi decisiva, assegurando caráter democrático à Constituição.
A luta por uma Constituinte Livre e Soberana, pela Anistia e pelas Diretas era parte integrante da luta mais geral contra a ditadura e pela democracia.
A Anistia Ampla, Geral e Irrestrita levou grandes contingentes de pessoas às praças públicas. As Diretas Já protagonizaram um movimento popular sem precedentes na história do Brasil. Com isto cresceram as reivindicações pelo fim do regime militar e pelo restabelecimento do Estado de Direito, com a convocação de uma Assembleia Constituinte.
Realizada a eleição indireta para presidente da República no Colégio Eleitoral, vence Tancredo Neves, tendo José Sarney como seu vice. Com o trágico falecimento do Presidente, toma posse o vice-presidente. Vive-se assim, uma situação de transição para a democracia.
A onda democratizante existente no país levou o Congresso a aprovar, em maio de 1985, uma Emenda Constitucional visando remover o chamado “entulho autoritário”, legalizar os partidos que se encontravam na clandestinidade, restabelecer as eleições diretas em todos os níveis e assegurar o voto aos analfabetos.
Em 28 de junho de 1985 o presidente Sarney enviou ao Congresso uma proposta de convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, aprovada em 27 de novembro de 1985.
No dia 1º de fevereiro de 1987 instalou-se a Assembleia Nacional Constituinte, num clima de restauração democrática.
A Constituinte era composta de 70% de membros do centro e do centro-direita. Do ponto de vista social apenas seis eram de origem operária, 80 eram empresários urbanos e 40 empresários rurais.
Visando dar maior consistência ao desempenho dos parlamentares mais avançados politicamente formou-se a “Articulação Progressista”, da qual participava boa parte do PMDB, PT, PDT, PSB, PCdoB e PCB. Formou-se, também, um grupo de direita articulado em torno do PFL, PDS, PTB e setores do PMDB. E havia um setor intermediário que fazia alianças com os dois agrupamentos mais definidos política-ideologicamente, conforme as circunstâncias.
O trabalho inicial da Constituinte foi a elaboração de um Regimento Interno. O passo seguinte foi a discussão do texto constitucional.
Para organizar os trabalhos da Constituinte foram criadas oito comissões temáticas, subdivididas em três subcomissões e mais uma Comissão de Sistematização para onde convergiria o resultado dos trabalhos das comissões temáticas. Esta solução permitiu a incorporação de todos os constituintes na elaboração do texto constitucional.
A Comissão de Sistematização, que tinha membros de todos os partidos, foi presidida pelo senador Afonso Arinos de Melo Franco e teve como relator-geral o deputado Bernardo Cabral.
Um dos importantes mecanismos da participação popular na Constituinte se deu através das emendas populares, mecanismo criado pelo Regimento Interno. Doze milhões de assinaturas em emendas populares demonstram o nível da participação do povo neste evento. Foram 122 emendas populares. Destas, 83 foram defendidas, em plenário, por representantes do segmento interessado.
As galerias do Congresso e das Comissões Temáticas foram tomadas por um grande número de pessoas interessadas em acompanhar os trabalhos da Constituinte e pressionar em defesa de suas reivindicações. Circulavam pelas Comissões e corredores do Congresso cerca de 10 mil pessoas por dia. Havia um grande número de grupos de pressão atuando, entre trabalhadores urbanos, rurais, servidores públicos, estudantes, mulheres, empresários da indústria e da agricultura, membros do judiciário, das Forças Armadas, além de outras representações.
Vivia-se um momento de grande mobilização dos diversos setores da sociedade. A Carta Magna era o instrumento jurídico que iria redefinir as novas regras de organização do Estado brasileiro. Daí o grande interesse.
Visando fazer prevalecer seus interesses vários grupos pressionavam os constituintes. Durante os debates sobre a adoção do parlamentarismo e da extensão do mandato do então presidente da República houve pressão direta do executivo e dos ministros militares. Além de pressionar contra o parlamentarismo os militares pressionaram em relação ao papel das Forças Armadas.
Questões relacionadas ao Judiciário, em particular à criação do controle externo deste poder, encontraram forte pressão contrária do STF.
Os grupos econômicos pressionaram contra a definição do conceito de empresa nacional e estrangeira. E forte pressão foi exercida pelos produtores rurais contra a reforma agrária.
A pressão dos grupos econômicos vinha até de fora do país. O Jornal do Brasil de 26 de junho de 1987 estampou matéria intitulada “EUA fazem pressão sobre Constituinte”.
Houve forte pressão contra os direitos sociais incorporados à Constituição. O presidente Sarney chegou a se manifestar em cadeia de televisão alertando para o que chamou de risco de “ingovernabilidade do país”, caso fossem aprovadas, em segundo turno, as conquistas sociais obtidas no primeiro, alegando ônus insuportável ao Tesouro Nacional.
Em resposta ao discurso de Sarney, o presidente da Assembleia Nacional Constituinte, deputado Ulysses Guimarães, afirmou categoricamente: “a governabilidade está no social. A fome, a miséria, a ignorância, a doença inassistida são ingovernáveis. A injustiça social é a negação do governo e a condenação do governo”.
Mas a pressão decisiva foi a popular que assegurou a aprovação de uma Constituição com um conteúdo democrático, apesar de suas limitações.
Para este resultado um importante instrumento foi a avaliação que o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) fez do voto de todos os parlamentares. Este resultado era afixado em placares, colocados pelas entidades sociais nas principais praças, sobretudo das capitais do país. Eles tiveram grande repercussão na imprensa e junto à opinião pública.
O chamado “Centrão”, agrupamento hegemonizado pela direita, se organizou no processo de aprovação do Regimento Interno. A direita consegui atrair o centro para esta composição.
A exposição pública dos votos dos parlamentares a favor e contra os direitos dos trabalhadores exerceu forte pressão sobre o centro da Constituinte, atraindo-o para uma composição política com a esquerda e assegurando o perfil mais democrático da Constituição de 1988.
A direita ficou enraivecida porque constatou o resultado desta ação sobre o voto de inúmeros parlamentares. Isto comprovou que a correlação de forças políticas de um parlamento não pode ser vista de maneira estática. Ela pode se alterar de acordo com o quadro político que se forma no curso da luta, com pressões e contrapressões.
A Constituição
A maior conquista a Constituição de 1988 foi o restabelecimento do Estado de Direito no país, com a conquista das liberdades democráticas, a adoção das eleições diretas em todos os níveis, a liberdade de organização partidária e sindical. Em relação aos partidos políticos estabeleceu-se o Fundo Partidário e o acesso gratuito ao rádio e à TV, em determinados períodos do ano e no período eleitoral.
Um importante debate travado na Constituinte foi sobre o sistema de governo. O Presidencialismo terminou sendo vitorioso, condicionado à realização de um plebiscito que incluía também uma consulta sobre a monarquia.
Como resposta direta aos crimes praticados pela ditadura o texto constitucional definiu a tortura como crime inafiançável e não passível de perdão ou anistia. Definiu, também, como crime inafiançável e imprescritível o racismo. Criou o Mandado de Segurança Coletiva de iniciativa de partidos com representação no Congresso e organizações sindicais. Estabeleceu o voto facultativo aos maiores de 16 anos e aos analfabetos. Criou importantes mecanismos de participação popular no processo político tais como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular de leis.
Estabeleceu um maior equilíbrio entre os poderes fortalecendo o parlamento dando-lhe, por exemplo, o poder de aprovar o Plano Plurianual e o Orçamento da União. Por outro lado, desconcentrou os recursos, estabelecendo uma distribuição de rendas mais justa entre a União, os Estados e os Municípios.
Acabou com o Decreto-Lei e instituiu a Medida Provisória. O Decreto-Lei era um mecanismo da época da ditadura que na ausência do pronunciamento do Congresso era considerado aprovado definitivamente. A Medida Provisória ao contrário, perde sua vigência se não for aprovada pelo Congresso. Todavia, trata-se de instrumento que necessita ser mais bem regulamentada para somente ser editada quanto houver, de fato, relevância e urgência.
No capítulo dos Direitos Sociais os avanços foram grandes. O principal foi a universalização dos direitos à educação, saúde, trabalho, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados. Com isto as populações mais pobres passaram a usufruir destes direitos sem contribuir com a Previdência. Diz o texto constitucional: “a assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social”.
Os setores progressistas defenderam a adoção da jornada de 40 horas, a estabilidade no emprego, entre outros direitos sociais. O resultado final foi a adoção da jornada de 44 horas semanais, a proteção contra despedida imotivada, o seguro desemprego, a licença-maternidade de 120 dias para a mãe gestante, a garantia de emprego da gestante, a proteção do mercado de trabalho da mulher e o direito.
A Constituição considerou a saúde um direito de todos e um dever do Estado e criou o Sistema Único de Saúde (SUS).
Também na área da educação estabeleceu-se a responsabilidade do Estado. Todavia não foi aprovada a proposição da exclusividade da destinação das verbas públicas às escolas públicas.
Na Ordem Econômica assegurou-se o direito à propriedade privada. Todavia estabeleceu a função social da propriedade. Foi assegurado o papel do estado na economia através de um conjunto de medidas entre as quais o monopólio estatal do petróleo e de outras áreas estratégicas.
Porém não foi incorporada ao texto a proposta dos setores nacionalistas que defendiam uma clara diferenciação entre empresa nacional e empresa estrangeira. Por pressão de poderosos grupos econômicos nacionais e estrangeiros foi aprovado o conceito de empresa brasileira como sendo aquela constituída e com sede e administração no Brasil. Na verdade uma empresa de propriedade de estrangeiros. Já a empresa brasileira de capital nacional foi definida como a de propriedade de pessoas domiciliadas e residentes no País. Foram asseguradas certas vantagens para a empresa brasileira de capital nacional, conquista esta depois revogada com o avanço do neoliberalismo no país.
Uma vitória importante dos setores nacionalistas na Constituinte foi a nacionalização da exploração mineral no Brasil. Também foi mantido o monopólio estatal sobre o petróleo.
Foi incorporado, pela primeira vez um capítulo sobre a Política Urbana fixando a função social da propriedade urbana e criando mecanismos de desapropriação, parcelamento ou edificação compulsória e o imposto progressivo.
Na Reforma Agrária os setores conservadores obtiveram importante vitória ao descaracterizar a função social da propriedade agrária como condição para a desapropriação para fins de reforma agrária. Foi introduzido um dispositivo que estabeleceu que a propriedade produtiva cumpria a função social da propriedade e assim não era passível de desapropriação para fins de reforma agrária. Com isto, a propriedade que não cumpra os outros requisitos de sua função social, como, por exemplo, não utilizar o trabalho semelhante ao trabalho escravo ou cometer crimes ambientais, não é passível de desapropriação para fins de reforma agrária.
Outros importantes capítulos foram incorporados à Constituição tais como o sobre a Cultura; Meio Ambiente; Ciência e Tecnologia; Desporto, Família, Criança, Adolescente, Idoso e Índios.
A resultante final das atividades da Assembleia Nacional Constituinte foi a aprovação de uma Constituição de perfil democrático, definida por Ulysses Guimarães como “Constituição Cidadã”.
A resultante do processo constituinte foi um importante passo na consolidação da democracia brasileira. Todavia ela teve fragilidades em vários aspectos e inúmeros dispositivos constitucionais ficaram pendentes de regulamentação, o que não ocorreu até hoje. Muitos dos artigos pendentes decorreram de uma necessidade efetiva de regulamentação. Outros, no entanto, decorreram de certo equilíbrio de forças na Constituinte, em que determinado segmento não tinha força para aprovar determinado dispositivo de forma completa e o outro segmento não tinha força para impedir sua aprovação.
Após a Constituinte, o neoliberalismo, que já era dominante no mundo, ganhou foros de política pública no Brasil com as vitórias eleitorais de Collor e, sobretudo, de Fenando Henrique Cardoso. A aplicação no Brasil da Reforma do Estado dentro da política de “menos estado e mais mercado” levou o governo Fernando Henrique a propor várias emendas constitucionais, sobretudo no Capítulo da Ordem Econômica, que representaram retrocessos.
Ao comemorar os 25 anos da Constituição é necessário ter presente que maiores avanços democráticos dependem da aprovação de Reformas Estruturais da sociedade brasileira. E a mais decisiva é a Reforma Política Democrática, a mãe de todas outras reformas. Sem a alteração do perfil do parlamento brasileiro é muito difícil maiores avanços. A Reforma Política Democrática deve acabar com o financiamento das campanhas eleitorais por empresas e aprovar um sistema eleitoral que privilegie o voto em torno de programas, de partidos, e não o voto em torno de pessoas, pelo qual se elegem os que dispõem de mais recursos.
A aprovação de uma Reforma Política Democrática só será possível com uma ampla união de forças de caráter suprapartidário. Com este objetivo foi formada a Coalizão pela Reforma Democrática e Eleições Limpas, composta pela CNBB, OAB, Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), a Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político, UNE, CUT, Contag, Ubes e inúmeras outras entidades, que apresentou um importante projeto de lei de reforma política de caráter democrático.
Todavia, existem outras reformas urgentes, tais como a democratização dos meios de comunicação, a reforma do Judiciário, a reforma tributária, a reforma educacional, a reforma urbana, a reforma agrária, entre outras.
Aprofundar a democracia, em todas as suas dimensões, é o melhor caminho para atender aos apelos das ruas e para consolidar as instituições democráticas.
Brasília, 10 de outubro de 2013.
*Aldo Arantes
Secretário-geral da Comissão Especial de Mobilização para a Reforma Política da OAB Nacional e deputado federal constituinte
Foto: Gabriela Di Bella/JC