A financeirização do ensino versus a função social da educação
A Contee acredita no papel social da educação e, por isso, o combate à mercantilização e à desnacionalização da educação e a luta pelo desenvolvimento do país, com distribuição de renda, justiça social e soberania nacional são prioridades da entidade. No entanto, esse princípio constitucional tem sido ignorado e desfigurado pelos empresários do ensino superior no Brasil, os quais tratam a educação como mera mercadoria a satisfazer seus bolsos. É sobre essa questão que reflete o artigo abaixo, da coordenadora da Secretaria de Assuntos Institucionais da Contee, Nara Teixeira de Souza, e do consultor jurídico da Confederação, José Geraldo de Santana Oliveira, que acompanharam a audiência pública realizada na Câmara na semana passada sobre a fusão entre as empresas Kroton e Anhanguera:
O médico psiquiatra Simão Bacamarte, do conto de Machado de Assis “O Alienista”, chegou à Cidade de Itaguaí, no Estado do Rio de Janeiro, com a finalidade de submetê-la ao seu incontestável diagnóstico de loucura de todos os seus habitantes, que a ele se obrigavam, para, com este arbitrário meio, controlá-la de maneira plena.
Aqueles que recebiam o diagnóstico de louco eram presos no manicômio Casa Verde. Com isto, em breve período de tempo, todos os habitantes da referida cidade receberam o fatal diagnóstico, sendo, em consequência, presos e restando “lúcido” e, portanto, livre, ou seja, em pleno gozo de suas faculdades mentais, somente o médico diagnosticador. Toda a cidade estava presa.
De repente, o comentado psiquiatra viu-se tomado pela angústia, provocada pela inusitada situação de Itaguaí, que, repita-se, estava presa e apenas ele solto, o que o levou a fazer novo diagnóstico, desta vez, de forma coletiva, inclusive com a sua participação, concluindo, após longa reflexão, que o único louco era ele. Com base nesse novo diagnóstico, liberou todos da cidade e prendeu-se.
No último dia 10 de outubro corrente, a Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados Federais, atendendo requerimento dos deputados federais Chico Alencar (PSOL-RJ), Jean Willis (PSOL-RJ), Ivan Valente (PSOL-SP), e Celso Jacob (PMDB-RJ), realizou audiência pública, com a finalidade de debater os processos de fusão de empresas educacionais em curso no Brasil nos últimos seis anos, com destaque para a dos grupos Kroton e Anhanguera, que alcançou maior destaque social pela vultosa soma envolvida – mais de R$ 13 bilhões de reais – e pelo número de alunos matriculados nos dois grupos, da ordem de 1 milhão, o que representa 14% do total de matrículas no ensino superior, na casa de 7,4 milhões.
Pois bem. Nessa audiência, os representantes patronais agiram como o personagem do citado conto, acusando de descabido, fora de contexto e inconstitucional todo e qualquer debate sobre o caráter mercantil das empresas educacionais; por isso, segundo eles, os que o defendem estão na contramão da realidade socioeconômica. Em outras palavras: este debate seria insano, muito embora não tenham usado, explicitamente, este adjetivo.
Todavia, há uma diferença fundamental entre o comportamento do personagem sob realce e os mencionados representantes das instituições particulares de ensino superior (IES). Isto porque aquele, após prender toda a cidade, concluiu que o único anormal era ele mesmo, o que os representantes patronais nem por hipótese admitem fazer. Ou seja: a verdade está com eles, e com ninguém mais.
O representante dos dois realçados grupos econômicos iniciou a sua participação na mencionada audiência com a seguinte questão: “Por que debater a fusão entre as empresas Anhanguera Educacional e Kroton Educacional enquanto o país ostenta indicadores extremamente negativos na educação superior?”.
A questão suscitada pelo representante dos mencionados grupos mostra-se reveladora, em todos os seus aspectos. Primeiro, visa a coibir a discussão sobre os seus reais objetivos e sobre as consequências que deles advirão e, para tanto, invoca os desastrosos indicadores da educação superior.
Segundo, para tais grupos, a iniciativa privada não se sujeita a nenhum objetivo social, constituindo-se em ato atentatório à Constituição da República Federativa do Brasil (CR) qualquer medida que tenha por escopo regulamentá-la.
Terceiro, a educação é uma mera mercadoria, que deve ser comercializada como as demais, valendo, para este mister, todos os meios e modos, desde que deles provenham lucro farto e fácil.
Quarto, os grupos econômicos educacionais não cumprem nenhuma função social para além da expedição de diplomas a seus alunos, pouco importando a qualidade do ensino ministrado e as condições de formação de seus concluintes.
Ao contrário do que propagam os grupos sob apreciação, a CR, em seu Art. 1º, inciso IV, e 170, caput, estabelece como fundamentos da República Federativa do Brasil os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o que submete a segunda ao prévio e comprovado cumprimento do primeiro, posto que são indissociáveis. Ou seja, não há livre iniciativa sem valorização social do trabalho. Já o Art. 170, inciso III, da CR determina que a propriedade obriga-se a cumprir a sua função social.
Claro está, portanto, que a regulamentação da iniciativa privada é condição primeira para a construção do Estado democrático de direito, sem a qual instala-se a barbárie. Aliás, é exatamente isto que almejam os grupos sob destaque.
A enfática defesa de jogo sem regra, esposada pelo representante dos grupos em questão, representa, ainda, a total negação do que preconiza o Art. 6º da CR, que, propositadamente, elenca a educação como o primeiro dos direitos fundamentais sociais; do 205, que lhe reserva três objetivos, que são: o pleno desenvolvimento da pessoa, o seu preparo para o exercício da cidadania e a sua qualificação para o trabalho; e do 206, que especifica os princípios sobre os quais se assenta o ensino, quer seja oferecido pelo Poder Público, quer pela iniciativa privada.
Com a finalidade de assegurar que a educação escolar possa cumprir os referidos objetivos, a CR, em seu Art. 206, estabelece vários princípios sobre os quais ela deve assentar-se, com destaque para a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, inciso II; pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino, inciso III; valorização dos profissionais da educação escolar, inciso V; e garantia de padrão de qualidade, inciso VI.
Como é possível aprender, ensinar e pesquisar em uma instituição de ensino que não possui laboratórios e bibliotecas adequados, que só contrata professores horistas, com baixos salários, alta rotatividade – com a sistemática demissão de mestres e doutores –, não lhes reservando sequer uma hora para atendimento individualizado aos alunos e para aprimoramento? Como isto é possível se, por determinação da direção, o ensino limita-se ao conteúdo programático transmitido em sala de aula, sem qualquer vinculação com a realidade social e com a profissão escolhida? Como falar em padrão de qualidade se o que interessa aos grupos econômicos educacionais são a venda e a valorização de suas ações, cotidianamente, comercializadas na bolsa de valores?
Como almejar o padrão de qualidade social se o ensino ministrado reveste-se da condição de mercadoria, sem preocupação com os objetivos preconizados pelo Art. 205 da CR?
Em decorrência deste dantesco quadro, cabe perguntar: tais instituições de ensino cumprem alguma função social? O MEC age bem ao não cassar a sua autorização de funcionamento?
Se é fato que o ensino é livre à iniciativa privada, como estipula o Art. 209 da CR, também o é que as instituições que o oferecem obrigam-se a respeitar os fundamentos e os princípios constitucionais, estes destacados no Art. 206, pois que a educação é sistêmica e destina-se à sociedade e não ao lucro fácil de empresas que se recusam a cumprir a função social da propriedade, determinado pelo Art. 170, inciso III, da CR, e que, por isto, nada mais fazem do que fraudar a cidadania.
A título de ilustração, vale registrar que a intolerância patronal ao debate sobre a função social das empresas educacionais chegou ao extremo de o deputado federal Izalci, do PSDB do DF, ex-presidente do Sinepe dessa unidade da Federação, propor ao presidente da audiência, deputado Chico Alencar, que impedisse o professor Celso Napolitano, presidente da Federação dos Professores do Estado de São Paulo (Fepesp), de, em seu seguro e elucidativo pronunciamento, continuar demonstrando as mazelas e os ardis das empresas privadas de ensino superior, notadamente quanto às precárias condições trabalho e aos baixos salários oferecidos aos seus empregados, por todas as IES particulares; a rentabilidade e a segurança dos negócios no ramo educacional, sem inadimplência e com a venda de ações na bolsa de valores; e, a título de exemplo, os ardis praticados pela Uniesp na contratação do Fies – o que foi, prontamente, rechaçado pelo presidente.
Soa estranho, para dizer o mínimo, que, ao longo do pronunciamento do representante dos grupos Kroton e Anhanguera e do Forum das Entidades Representativas do Ensino Superior Particular – que inclui Ames, Anup, Abrafi, Anaceu, Semesp e Fenep – não houve interrupção e/ou questionamento de natureza alguma.
Em que pesem os escusos propósitos do representante dos grupos Kroton e Anhanguera, há de se anotar, para efeito de aprofundamento do debate sobre a fusão deles, os dados por ele apresentados, quais sejam:
i) mais de 1 milhão de alunos matriculados, sendo 486 mil no ensino presencial, e 516 mil no oferecido pela modalidade a distância;
ii) 6,6% dos alunos matriculados são das classes ‘A e B’, 29,8%, da ‘C’; 31,2%, da ‘D’; e 32,4%, da ‘E’;
iii) 167 mil são financiados pelo Fies e 192 mil pelo ProUni;
iv) 35 mil empregados, sendo 22 mil professores e 13 mil técnicos administrativos, com uma massa salarial R$ 1,5 bilhão por ano.
A professora Drª Cristina Helena de Almeida Carvalho, da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UNB), em sua, também, segura exposição, desmontou todas as falácias dos representantes patronais, com notório destaque para os seguintes aspectos:
i) a estratégia de gestão e de negócios da IES, com fins lucrativos, são: i1) venda parcial ou total ao capital estrangeiro; i2) ausência legal para a participação deste capital; i3) alinhamento dos objetivos da administração aos interesses dos acionistas: maior liquidez e maior valorização das ações negociadas no mercado; i4) redução de custos, com enxugamento do quadro de pessoal, baixos salários, demissões dos mais qualificados e precarização das relações de trabalho; i5) a massa salarial das IES, com fins lucrativos, manteve-se estagnada, sem nenhum crescimento, no período 2002 a 2011; i6) concorrência predatória, com a aquisição de estabelecimentos de pequeno e médio porte, que leva à oligopolização do setor, que passa a ser controlado pela mantenedora da holding;
ii) a associação da Anhanguera com a Kroton, numa operação financeira de R$ 13 bilhões, levou à criação da maior IES privada do mundo;
iii) o valor de mercado da Kroton é de R$ 8,8 bilhões; da Anhanguera, de R$ 6,2 bilhões; da Estácio de Sá, de R$ 5,1 bilhões; e da Abril Educacional, de R$ 2,9 bilhões;
iv) a Kroton e a Anhanguera representam 14% das matrículas em ensino superior, percentual que chega a 30% com a soma da Laureate Brasil, Unip, Ser Educacional, Ânima Educação e Cruzeiro do Sul;
v) 56% dos bolsitas do ProUni encontram-se matriculados em IES com fins lucrativos;
vi) 53% dos cursos oferecidos pela Anhanguera obtiveram notas 1 e 2, no último Enade: 71 no total de 134 avaliados.
Extrai-se da epigrafada audiência pública que os questionamentos contidos na Nota Pública N. 15, do Forum Nacional de Educação (FNE), mais do que nunca reclamam o debate por ela proposto.
Os referidos questionamentos são: o impacto dessa fusão e de todo o processo de financeirização para a educação brasileira, bem como na construção do padrão de qualidade social da educação, nos princípios constitucionais da valorização dos profissionais da educação e da liberdade de ensinar e aprender, na indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão e nos interesses maiores da educação como política estratégica de desenvolvimento social.
Ao imperioso e inadiável debate.
Nara Teixeira de Souza – Coordenadora da Secretaria de Assuntos Institucionais da Contee
José Geraldo de Santana Oliveira – Consultor jurídico da Contee