As reformas do ensino médio: considerações históricas, educacionais e políticas
Por Wallace Melo*
INTRODUÇÃO
Diante de tantas críticas e discussões estabelecidas em virtude da proposta de reforma para o ensino médio, apresentada pelo presidente da República, Michel Temer e seu ministro da educação, Mendonça Filho, o tema novamente se tornou objeto de discussão e críticas, demonstrando assim o quanto a ideia sobre a questão do ensino médio brasileiro ainda não foi compreendida por muitos, principalmente do que se trata sobre os objetivos desta última etapa da educação básica.
Ainda existem muitas lacunas no processo de solidificação de um ensino médio no Brasil, assim como na educação como um todo. E ao longo das décadas passadas, vários foram os caminhos percorridos e muitas políticas e legislações foram propostas e instituídas, porém ainda há uma crise de entendimento sobre o verdadeiro teor do ensino médio. Teria essa etapa da educação o papel de formar seus estudantes para o acesso ao ensino superior? Ou será que seria a formação cidadã voltada ao mundo do trabalho?
Essas dúvidas são colocadas ao longo do conjunto de reformas e modificações propostas pelos governantes durante o século passado, e ainda não conseguimos chegar a um denominador comum. Mas tudo isso só demonstra o quanto o ensino médio é um campo que mobiliza uma grande disputa ideológica entre correntes distintas e é dotado de um conjunto de complexidades que vão da sua concepção às suas finalidades. E todas as interpretações estabelecidas estão diretamente interligadas aos projetos de Estado e sociedade existentes no país, sobretudo dentro do contexto de luta de classe.
Nessa conjuntura, este artigo trás algumas considerações sobre as discussões e reformas propostas no ensino médio brasileiro a partir da década de 1930 até a atual reforma proposta em 2016, porém na intenção de debater sobre as ideologias e projetos que estão por trás desse conjunto de modificações propostas para essa etapa da educação básica, alertando também para um dos problemas mais centrais sobre esse assunto, que seria a necessidade de uma construção mais sólida sobre o conceito e finalidade do ensino médio brasileiro.
1. BREVES CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS SOBRE O ENSINO MÉDIO BRASILEIRO
O atual modelo de ensino médio brasileiro carrega consigo um conjunto de contradições e é orientado a partir princípios de dualidade que foram construídos historicamente dentro da própria escola. Uma divisão pautada “na divisão social do trabalho, que distribui os homens pelas funções intelectuais e manuais, segundo sua origem de classe, em escolas de currículos e conteúdos diferentes” (NASCIMENTO, 2007, p.78).
Ou seja, um ensino fortemente marcado pela exclusão, desigualdade social e elitismo. Predicados esses que são produtos dos diversos processos históricos que transformaram a sociedade brasileira, sobretudo nas mudanças econômicas, onde o histórico modelo agro-exportador, hegemonizado pela aristocracia rural, se adequava gradualmente aos moldes do capitalismo, orientado por uma emergente burguesia, sobretudo a partir do desenvolvimento industrial e crescimento da urbanização no Brasil.
Nesse contexto, para entendermos um pouco sobre as discussões sobre o ensino médio brasileiro, é preciso analisar, mesmo que brevemente, os processos de reformas instituídas pelo poder público ao longo do tempo, principalmente as que ocorreram no século passado, quando o país passou por transformações econômicas e sociais. Um período importante para o compreendermos esse assunto foi à década de 1930, onde foi construído um debate sobre os rumos da educação básica brasileira a partir do conflito ideológico dois projetos educacionais distintos, essas discussões envolviam,
[…] os grupos dos renovadores da educação, os “pioneiros”, na defesa da escola pública, laica, gratuita e obrigatória e os “conservadores” representados pelos educadores católicos, que defendiam a educação subordinada à doutrina religiosa (católica), diferenciada para cada sexo, o ensino particular, a responsabilidade da família quanto à educação, etc. (NASCIMENTO, 2007, p.80).
Nesse período, a história da educação brasileira seria marcada pela criação do Ministério da Educação e Saúde Pública, que ficou sob a responsabilidade de Francisco Campos, ministro esse que instituiu uma reforma educacional por meio do Decreto nº 19.890/31, organizando o “o ensino secundário em duas etapas: fundamental (5 anos) e complementar (2anos)” (NASCIMENTO, 2007, p.80).
“O ciclo fundamental dava a formação básica geral, e no ciclo complementar oferecia cursos propedêuticos articulados ao curso superior (pré-jurídico, pré-medico, pré-politécnico)” (NASCIMENTO, 2007, p.81). Surgindo um modelo de escola voltado apenas para poucas pessoas, uma vez que essa última etapa, por ser uma etapa obrigatória de preparação para o acesso ao ensino superior, apenas atendia uma pequena e elitizada parte da população. Porém, é válido pontuar que é nesse período, mais exatamente em 1934 que a Constituição Federal institui o ensino primário obrigatório, público e gratuito, bandeira essa tão defendida pelo movimento escolanovista.
Contudo, mais adiante, em 1937, com o advento da ditadura varguista, a divisão entre o ensino profissional, voltado para as camadas populares e o ensino propedêutico (que garantia o acesso ao ensino superior) utilizado principalmente pelos jovens ricos, ficava mais nítido a dualidade imposta ao modelo escolar brasileiro. Essa característica ficou ainda mais perceptível após a Reforma Capanema de 1942. Uma reforma de caráter,
[…] elitista e conservadora que consolidou o dualismo educacional, ao oficializar que o ensino secundário público era destinado às elites condutoras, e o ensino profissionalizante para as classes populares, conforme as justificativas do Ministro Capanema (NASCIMENTO, 2007, p.81).
E a partir do Decreto nº4.24/42, surgiu a Lei Orgânica do Ensino Secundário, que põe fim o ensino complementar e cria os cursos médios, com duração de três anos, tendo a finalidade de ser uma transição para o ensino superior. Caminho esse que não era ofertado no ensino profissional (normal, agro-técnico, comercial técnico e industrial). Ou seja, o cenário dessas reformas se estabelecia a partir de uma arena política, no qual, de um lado, havia os conservadores que entendiam que a promoção de uma educação pública não seria dever do Estado e do outro lado, setores mais progressistas que defendiam uma escola pública, laica, gratuita, obrigatória e de qualidade para toda população.
Já na década de 1960, com a publicação da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB — Lei 4024/61), foi criado ensino primário (4 anos) e o secundário (7 anos), esse por sua vez, abrangia o ginásio (4 anos) e o colegial (3 anos). “Para o ingresso no ensino secundário, ginásio, era necessário a aprovação em um exame de admissão” (QUEIROZ et al, 2009 p.3).
Uma década depois, com a segunda LDB — Lei 5692/71, criada no governo dos militares e quem trouxe algumas modificações na estrutura de ensino, pois com a nova legislação,
[…] o ginásio e o primário foram unificados, dando origem ao primeiro grau com oito anos de duração, e que antes era denominado colegial transformou-se em segundo grau ainda com três anos de duração (QUEIROZ et al, 2009 p.3).
Nesse período, o ensino médio ganhou um tom extremamente profissionalizante, nesse momento houve o entendimento que tal nível de ensino teria a finalidade de habilitar os estudantes para o mundo do trabalho. Medida essa que foi desastrosa e só serviu para “conter o aumento da demanda de vagas aos cursos superiores” (NASCIMENTO, 2007, p.83) e excluir ainda mais aqueles que teriam acesso à universidade e os que seriam apenas mão-de-obra para o mercado.
Um desses momentos pôde ser verificado em 1968 quando Roberto Campos, figura exponencial, tanto no campo econômico quanto de forte suporte ideológico à ditadura militar, defendia que o ensino secundário perdesse suas características humanísticas para ganhar, na visão dele, conteúdos mais práticos (LINS, 2006, p.8).
Com essa necessidade de profissionalização impostas pela legislação educacional ao ensino médio, as escolas por sua vez não são preparadas para atender essa demanda, devido a falta de recursos financeiros e materiais. Somente em 1972 que o Parecer n.º 45/72, “recoloco a dualidade da educação geral e da formação profissional” (NASCIMENTO, 2007, p.84).
Com a terceira Lei de Diretrizes e Bases da Educação, publicada em 1996 (Lei — 9394/96) o ensino médio novamente é reformado, obviamente que o contexto de solidificação do neoliberalismo no Brasil e nos demais países latinos, influenciou bastante essas mudanças, uma vez que, os investimentos nas áreas sociais passaram a ser secundarizados, uma vez que a cartilha neoliberal impunha um Estado cada vez menor e privatista.
A LDB em vigor, de 1996, restabeleceu a nomenclatura Ensino Médio e uma tentativa conciliadora e pragmática que, até aqui, não resultou na superação da dualidade, podendo tê-la acentuado se considerarmos, por exemplo, as diferenciações práticas entre o ensino médio ministrado no diurno e aquele disponibilizado no período noturno (LINS, 2006, p.15).
Contudo, o ensino médio, então a última etapa da educação básica, passou a ser obrigatório e oferecido gratuitamente pelas escolas públicas, sendo que a sua gestão ficou a cargo dos governos estaduais. Nesse período foi proposto,
[…] uma nova formulação curricular incluindo competência básicas, conteúdos e formas de tratamento dos conteúdos coerentes com os princípios pedagógicos de identidade, diversidade e autonomia, e também os princípios de interdisciplinaridade e contextualização, adotados como estruturadores do currículo do Ensino Médio (NASCIMENTO, 2007, p.85).
Todas essas mudanças ocorridas no final do século XX, onde o ensino médio passa a atender um número crescente de jovens, se deu, principalmente devido às novas necessidades impostas pelo mundo globalizado, sobretudo no mundo do trabalho, que agora não mais cobrava a presença de um trabalhador tecnicamente formado, mas com um nível intelectual e escolaridade maior.
De acordo com a LDB de 1996, em seu artigo 35, as finalidades do ensino médio são:
I — a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos;
II — a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores;
III — o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico;
IV — a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina.
Além da crescente procura pelo ensino médio nas últimas décadas — devido também a ampliação ao acesso no ensino fundamental nos anos de 1980 e 1990 que gerou consequentemente a necessidade de dar continuidade aos estudos — outra questão que surge nessas últimas décadas sobre esse tema, se relaciona ao fato de não haver consenso sobre qual seria o objetivo dessa última etapa da educação básica: a transição para o ensino superior ou a preparação para o mundo do trabalho.
Segundo os números do IBGE/PNAD relacionado ao ano de 2014, o Brasil tinha mais nove milhões de estudantes matriculados no ensino médio (regular e EJA). Ou seja, um número relativamente significativo que freqüentam este nível de ensino, mas que sequer sabem o seu sentido. “Na verdade o ensino médio nunca teve uma identidade muito clara, que não fosse o trampolim para a universidade ou a formação profissional” (KRAWCZYK, 2011 p.755). E isso já é um fator relevante para refletirmos sobre essa “crise de identificação”, que somando a outros fatores, contribuem para a crescente evasão escolar por parte dos estudantes e a diminuição do número de matrículas.
Contudo, independente do seu objetivo e de sua identidade, o ensino médio brasileiro sempre será um campo fecundo para a implantação de projetos e concepções de Estado e sociedade pelas classes dirigentes que disputam pela hegemonia do poder político, uma vez que, por envolver diretamente uma grande parcela das jovens gerações e indiretamente suas famílias “a escola média é um campo estratégico de luta onde as camadas populares têm construído seu direito à educação” (ZIBAS, 2005, p. 1067 apud REZENDE et al, 2012 p123).
A oferta de vagas crescente, por mais precária que sejam as escolas e os sistemas educacionais, oferecem ainda sim, uma perspectiva para milhões de brasileiros, que almejam tanto entrar e permanecer no ensino superior, quanto uma vaga no mundo do trabalho.
De fato, não há como contestar que nossa população vem ampliando seu nível de escolarização,
[…] o Brasil está agora diante de uma geração de jovens de baixa renda, mais escolarizada que seus pais, mas com muitas dificuldades para encontrar sentido na vida escolar, para pensar no mundo do trabalho a partir da escola e para conseguir trabalho (KRAWCZYK, 2011 p.756).
Entretanto, devido às várias reformas ocorridas, o ensino médio brasileiro atualmente sofre com o conjunto de contradições e problemas que foram se acumulando sem a devida resolução. Hoje, costuma-se dizer que o ensino médio tem a difícil missão de preparar os estudantes para a vida, porém ainda há uma vacância no que diz respeito ao real e verdadeiro projeto político e educacional para esse nível de escolaridade. Dessa maneira, é perceptível que reformular suas metodologias, princípios e objetivos é, de certa maneira “fácil”, o difícil e desafiador é proporcionar aos milhões de alunos e alunas uma formação integral, que supere a dualidade e as diversas formas de desigualdades presentes no contexto escolar brasileiro.
Nessa conjuntura, depois dessa breve discussão sobre as reformas instituídas na escola e no ensino médio brasileiro, é interessante também ampliarmos o debate a fim de compreendermos um pouco sobre o que se passa, efetivamente por trás das reformas que são instituídas nessa etapa da educação básica.
2. REFORMAR O ENSINO MÉDIO: O QUE SE PASSA POR DENTRO DESSE DEBATE?
Como ficou perceptível toda e qualquer reforma instituída ao longo do século passado não conseguiu superar as complexidades existentes no ensino médio, e, diga-se de passagem, que essas se agravaram até então, mesmo sendo concebida atualmente como uma etapa que deva ser universalizada e garantida pelo Estado. Ou seja, suas “contradições e dualidades que permanecem na atualidade” (LINS, 2006, p.3). Também não é difícil perceber que em todos esses casos que os princípios que nortearam os debates sobre as mudanças dentro de tal etapa da educação, consideravam fortemente o processo de desenvolvimento do capitalismo no Brasil, fator esse que determinou e ainda determina efetivamente os objetivos e parâmetros do nosso sistema educacional.
Diante disso, assim como toda escola, o ensino médio carrega consigo diversas contradições e mazelas complexas, não apenas a questão do acesso, mas também aspectos relacionados às oportunidades ofertadas às diferentes classes e grupos sociais — principalmente nas diferenças entre as escolas públicas e as particulares — ou até mesmo as diferenças existentes nos períodos noturnos dos demais horários. Assim, debater o ensino médio não é algo simples, pelo contrário, necessita de maiores abrangências, qualitativas e quantitativas.
Registre-se ainda que, por um longo tempo, não houve um currículo efetivamente sistematizado. As decisões eram consideradas pelos parâmetros pressupostos para o ensino superior que determinavam o leque e o enfoque das disciplinas do ensino secundário, obrigando-o a se tornar cada vez mais propedêutico, ou seja, destinado a preparar os jovens para a faculdade (LINS, 2006, p.8).
Essas questões não podemos deixar nunca de esquecer, ou seja, que o ensino médio brasileiro carece de uma identidade e que “sempre esteve pautado em bases históricas elitistas” (QUEIROZ et al, 2009 p.1), uma etapa da educação que “nasce como um lugar para poucos, cujo principal objetivo é preparar a elite local para os exames de ingresso aos cursos superiores” (MOEHLECKE, 2012, p. 40), e do outro lado, para a população mais pobres, um ensino mais profissionalizante.
Essa dicotomia entre o propedêutico e o profissionalizante diz muita coisa, uma vez que,
[…] preparar alguns para o ensino superior e outros para o mundo do trabalho sempre foi uma contradição, evidenciando, na verdade a disputa de classes, que em diversos momentos se expressou até mesmo em estranhas diferenciações curriculares (LINS, 2006, p.9).
Nessa conjuntura, um dos maiores desafios que atualmente é preciso avançar dentro do contexto do ensino médio é o de rompimento dessa dualidade, e atribuir a tal etapa da educação “uma identidade associada à formação básica que deve ser garantida a toda a população” (MOEHLECKE, 2012, p. 40).
Contudo, essa questão não poderá se efetivar se não aceitarmos que toda e qualquer proposta de reformulação das diretrizes educacionais e escolares no Brasil passa diretamente pelas convergências e divergências, articulações e disputa de projetos e concepções de Estado, política e sociedade. Deságua em nossa escola, todas as contradições da luta de classe — queiram ou não queiram os defensores da “Lei da Mordaça[1]”.
As concepções e as políticas neoliberais se interessam por nossa escola, a história já nos mostrou isso, principalmente na década final do século passado, quando Fernando Henrique Cardoso era o presidente da República e Paulo Renato de Souza era ministro da educação. Ora, será que todos os cortes orçamentários que aconteceram nos investimentos sociais e na educação, a concepção de Estado mínimo e a ideia de que era preciso reformular nosso modelo de ensino para que atendesse melhor as necessidades existentes nas relações entre capital e trabalho, dentro da lógica da produtividade, claro e que por sua vez, cumprisse as metas impostas por organizações como Banco Mundial ou Organização Mundial do Comercio não diz respeito a visões estabelecidas por projetos de poder?
Por outro lado, quando defendemos que é preciso construir um modelo de escola que seja “pública, democrática e laica, de qualidade socialmente referenciada” (GASCO, 2016 p.95), que rompa com os valores de uma educação “bancária” e que respeite as cores e a diversidade existente no Brasil, tudo isso, também reflete outro projeto distinto de sociedade e Estado. Ignorar isso, é de fato, não querer superar a dicotomia que, desde do início desse artigo, estamos tratando, ou seja, uma escola para rico e outra para pobres. É não tomar lado. É contentar-se com reformas graduais ou com apenas mudanças parciais, e isso para o filósofo húngaro, István Meszárus, nada mais é que ser autoderrotista (2008).
Na égide do mundo capitalista, todas as mudanças ocorridas na educação (e o debate sobre o ensino médio não foge disso), “tem em seu bojo a reestruturação do Estado e a constituição de novos modos de acumulação do capital (REZENDE et al, 2012 p122). Por isso que , “parafraseando a epígrafe de José Martí, podemos dizer que, as soluções não podem ser apenas formais, elas devem ser essenciais (MESZÁRUS, 2008, p 35). Se não enfrentar, romper e superar às causas das contradições e mazelas presentes no contexto escolar, essas respostas serão resumidas meras intenções ou retóricas pontuais, não vão contribuir para transformar a sociedade.
3. REFORMA NO ENSINO MÉDIO DE 2016: UMA ESCOLA PARA RICOS E OUTRA PARA POBRES
Considerando todos os caminhos e descaminhos percorridos pela escola brasileira, um outro aspecto que merece ser pontuado e criticado nesse artigo corresponde a mais recente reforma promovida pelo ministro da educação, Mendonça Filho, que por meio de uma Medida Provisória, e de maneira autoritária e unilateral, impôs mais uma reforma educacional, modificando as diretrizes curriculares, ampliando a carga horária e precarizando a atividade docente no ensino médio.
Os caminhos que levaram a construção dessa reforma no ensino médio são diretamente contextualizado a atual quadra política que o país e seu povo vem passando, sobretudo após a movimentação e o golpe parlamentar efetivado contra a democracia brasileira, que afastou sem provas e por meio de um julgamento midiático e político, protagonizado pelos setores mais conservadores e elitista do país, a presidenta eleita democraticamente, Dilma Rousseff do Partido dos Trabalhadores (PT) entregando a chefia do poder Executivo Federal ao vice-presidente, Michel Temer (PMDB). Tudo isso culminou em uma série de medidas impopulares e prejudiciais aos interesses e a soberania popular da nação. No âmbito educacional, todas as discussões construídas a partir das Conferências e todas as metas do Plano Nacional de Educação foram preteridas pelo presidente e sua equipe que compõe o Ministério da Educação, assim como todos os demais debates e consultas públicas feitas com as entidades estudantis e sindicais, universidades, movimentos sociais, gestores públicos ao longo dos últimos anos.
Ou seja, o ensino médio brasileiro foi reformado a partir de simples “canetadas”, desconsiderando todos os processos de construção coletiva e democrática, mostrando assim como serão os princípios e métodos que nortearão a educação pública no Brasil.
Um dos pontos mais cruciais dentro do conteúdo dessa reforma corresponde ao conjunto de modificações feitas na matriz curricular das escolas, possibilitando a retirada de alguns componentes, como filosofia, sociologia, artes e educação física, priorizando, praticamente o estudo da língua portuguesa, da matemática, do conhecimento do mundo físico e natural e da realidade social e política, especialmente da República Federativa do Brasil. Dessa forma, ela retira das escolas de nível médio as discussões sobre filosofia e sociologia, e também, ao frisar que as discussões sobre o quadro político e social sejam voltadas especialmente acerca dos tempos republicanos, faz com que, por exemplo, eliminemos das discussões ou do próprio material didático, questões relacionadas aos séculos de escravidão instituído no país e que até hoje nos trás consequências sérias.
Uma reforma que reafirma o caráter tecnicista, de valores bancários, acrítico que não trata das reais complexidades herdadas historicamente pelo ensino médio brasileiro. Pelo contrário, só condiciona ainda mais a educação a uma linha determinista acentuando as diferença entre a escola do rico e a do pobre.
Sobre a dicotomia entre o propedêutico e o profissionalizante, a Medida Provisória deu o entendimento que essa escolha será feita pelo aluno ou aluna, pois, após estudar nos primeiros três semestres do ensino médio todas as disciplinas, a partir de uma Base Nacional Comum Curricular, baseado em cinco áreas: linguagens; matemática; ciências da natureza; ciências humanas; e formação técnica e profissional. Nos outras três semestralidades, cabe ao estudante a escolha entre, ou se aprofundar em uma das áreas do conhecimento ou se especializar para o mundo do trabalho, no entanto, a oferta das possibilidades ficará a cargo do sistema estadual de ensino. Ou seja, se o estudante optar em se aprofundar no campo das ciências da natureza, mas a rede estadual ter avaliado que essa área não seria prioridade, e sim apenas o ensino profissional, as linguagens e a matemática, a escolha feita pelo educando não será oportunizada.
Por trás dessas intenções a todo um jogo de interesses e concepções sobre educação, uma vez que, não será surpresa para ninguém, se as redes estaduais focarem seus esforços para instituir uma escola pública que priorize aos estudantes apenas as competências que os tornem cidadãos que com capacidade de somente ler, escrever e contar (linguagem e matemática), somado a uma parca formação profissional. Já que são os requisitos mínimos do mundo do trabalho (setor empresarial) para recrutar mão-de-obra barata. E quem seriam esses? Os estudantes das escolas públicas, certamente.
E quanto ao ensino propedêutico e o acesso à universidade? Esse com absoluta certeza ficará a cargo das escolas particulares, que vão reforçar as suas metodologias de ensino em cima de todas as áreas de conhecimento, ofertando todas as disciplinas aos seus alunos e possibilitando a eles a vantagem no acesso às universidades publicas brasileiras. Com a reforma no ensino médio, o setor privado da educação será ainda mais lucrativo e a educação será tratada mais do que nunca como mercadoria.
Segundo o professor de filosofia, Jalu Maranhão, que leciona da rede pública estadual de Pernambuco, em um desabafo feito na sua página pessoal no Facebook:
A arte ensina a gente a sentir e a imaginar; a filosofia ensina a pensar; a sociologia mostra as relações de poder na sociedade; a educação física ensina a se movimentar… É tudo o que eles não querem: um cidadão que sente, sonha, pensa, critica e se movimenta[2] (2016).
Já o professor Harim Britto[3], que trabalha em escolas particulares da Região Metropolitana do Recife, avalia que a atual reforma no ensino médio,
[…] apenas reforça aquele estigma da escola como um espaço pseudo-asséptico e de ausência crítica e estética, em favor de uma formação estritamente técnica (2016).
[…] Uma visão pragmática, realista e imediatista, em nome de uma empregabilidade que não se pretende ir além disso. Fica difícil falar em dignidade e liberdade de escolha quando as condições para a escolha (liberdade e discernimento) são de antemão, comprometidas e já pré-determinadas (2016).
Outro ponto crucial que a reforma no ensino médio apresenta se relaciona a questão da formação do professor, considerando profissional da educação da escola básica também os profissionais de “notório saber”, que poderão ministrar aulas no ensino médio, mesmo não tendo formação em licenciatura ou pedagogia. Um ato contraditório com o que expressa o Plano Nacional de Educação e com o que foi construído na última Conferência Nacional de Educação acerca da valorização do magistério no país.
De acordo com o professor de sociologia, Marcelo Galdino que ensina em escola pública no estado de Pernambuco, também pela sua página pessoal no Facebook, fez as seguintes considerações sobre as mudanças do ensino médio[4]:
Se a forma da reforma é bisonha, o conteúdo também o é:
1. De acordo com o documento pra ser professor não será mais preciso ter diploma, formação. Isso praticamente acaba com a profissão.
2. A educação física é retirada, isso um mês depois das Olimpíadas. Mas, a prática de atividades esportivas orientadas continuará existindo para a elite, que pode pagar.
3. A sociologia, a filosofia, a arte retiradas, pois crítica social, sensibilidade e reflexão sobre o mundo não servem ao mercado. Na cabeça desse ministro, com partido, elas só atrapalham, são sem utilidade.
4. O estudante poderá ter uma formação de Ensino Médio só técnica, voltada à empregabilidade, claro que direcionada para as camadas populares, que tem uma pressão social maior para entrar no mercado de trabalho. Aos que não tem essa pressão o caminho será a universidade. Uma reedição idêntica a reforma educacional da ditadura (2016).
A ideia de reforma no ensino médio aconteceu desprovida de uma ampla discussão com a sociedade brasileira e mostra o quanto está alicerçada sobre valores e concepções que só reforçam as desigualdades sociais, diminui o peso do Estado e contribui para a solidificação de um modelo de ensino acrítico, antidemocrático e tecnicista. Dessa maneira, a crítica deve ser feita e considerada, uma vez que, modificar a escola brasileira não é fácil, pois em qualquer uma de suas etapas, vamos nos confrontar com uma gama de contradições e complexidades oriundas dos processos históricos de formação de nossa sociedade. Uma reforma não se constitui ou se encerra por ela mesma, ela deve ser discutida e ampliada a todos e todas e envolve múltiplos enfoques, como currículo, estrutura física das escolas, número de estudantes por sala de aula, sistemas de avaliação etc. Pois de acordo com Rezende, Isobe e Dantas (2012):
A democratização do Ensino Médio, no entanto, não se encerra na ampliação de vagas. Ela exige espaços físicos adequados, bibliotecas, laboratórios, equipamentos, e, principalmente, professores concursados e capacitados. Sem essas precondições, discutir um novo modelo, pura e simplesmente, não resolve a questão.
A formulação de políticas públicas em educação, tendo como pressuposto uma certa autonomia da escola, sem considerar a prática cotidiana dos agentes que, de fato, fazem educação, e o imbricado jogo de interesses existente no seu interior acaba por camuflar os reais problemas da escola (REZENDE et al, 2012 p 123).
E diante de tal conjuntura a crítica e as reflexões sempre serão elementos louváveis para que possamos entender os contextos que circundam o nosso modelo de escola e consequentemente o próprio ensino médio brasileiro. Contudo, mesmo diante de tantos reformismos, mudanças na legislação e construção de políticas públicas educacionais, as mudanças propostas em 2016, assim como todas as anteriores só refletem um aspecto: os projetos de sociedades a qual estes caminhos estão interligados, e infelizmente, em nenhum momento se propõem a superar o maior desafio posto para esse tema, a busca por uma real identidade e finalidade para esta última etapa da educação básica no país.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
E diante de todas as discussões expostas, podemos perceber o quanto o debate sobre o ensino médio é amplo e dialoga diretamente com os processos políticos e educacionais ocorridos ao longo das últimas décadas. Contudo não há como deixar de considerar que, visto todos os interesses e concepções políticas que pairam também sobre a questão educacional, temos ainda a escola como um elemento chave para a promoção e emergência dos novos ciclos sociais, históricos e de desenvolvimento de um país.
Esses ciclos, por sua vez, têm nos sistemas educacionais como um pilar importante para a formação das massas, dos valores sociais e de uma sociedade de conhecimento. Dessa maneira, toda e qualquer reforma educacional, não deixa de ser uma questão política e de entendimento sobre o modelo de Estado brasileiro, elas são, antes de qualquer coisa, pautada pelas suas ideologias.
Dessa maneira, fazer a crítica a um sistema educacional pautado por valores elitistas, excludentes e tecnicistas é reafirmar a defesa por um projeto que perceba a educação como um direito social e não como uma mercadoria. É lutar pela construção de um modelo de escola “pública, democrática e laica, de qualidade socialmente referenciada” (GASCO, 2016, p. 95), que seja formada por profissionais valorizados e com uma matriz curricular que atenda aos anseios científicos, mas que também valorize e dialogue com a diversidade e o conhecimento popular.
Para que assim, possamos construir uma escola crítica, humanística, que forme profissionais e cidadãos ativos para o mundo do trabalho e que, principalmente, supere a concepção de que a escola seja apenas um “depósito de estudantes” e formadora de cidadãos passivos (eleitores), a fim de que sirvam apenas como sustentáculos ao sistema e aos privilégios de uma sociedade burguesa, desigual, exploradora e elitista.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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MOEHLECKE, Sabrina. O ensino médio e as novas diretrizes curriculares nacionais: entre recorrências e novas inquietações. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro , v. 17, n. 49, p. 39–58, 2012 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?scr…>. Acesso em: 22 set. 2016.
NASCIMENTO, Manoel Nelito M. Ensino médio no Brasil: determinações históricas. Publ. UEPG Ci. Hum., Ci. Soc. Apl., Ling., Letras e Artes, Ponta Grossa, jun. 2007. Disponível em: <www.revistas2.uepg.br/index.php/sociais/article/download/2812/2097>. Acesso em: 22 set. 2016.
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REZENDE, V. M.; ISOBE, R. M. R ; DANTAS, F. B. A.. Reflexões sobre a questão da qualidade no ensino médio. Ensino em Re-vista, UFU, Minas Gerais, v. 19, p. 119–130, 2012. Disponível em: <http://www.seer.ufu.br/index.php/em…> Acesso em: 22 set. 2016.
NOTAS
[1] Corresponde a projetos de leis que tramitam a nível federal e em alguns estados e municípios brasileiros, encabeçados principalmente pelo movimento Escola Sem Partido e que representam um ataque ao direito à liberdade na docência e a construção de um modelo educacional plural, crítico e democrático por entender que a escola não deva ser lugar para a discussão sobre questões relacionadas à política, diversidade cultural, identidade de gênero, religião, raça etc. Seria assim uma forma de impedir que os professores realizem seu trabalho.
[2] Relato extraído do perfil do professor Fabio Carneiro Jalu no Facebook, disponível em: https://www.facebook.com/jalumaranhao?fref=ts
[3] Relatos que foram retirados do artigo, Sobre a reforma do Ensino Médio, publicado na plataforma Medium, disponível em: https://medium.com/com-licenca/o-retorno-do-mobral-c1847fe2a2a6#.82hh7z39n
[4] Relatos extraídos do perfil do professor Marcelo Galdino no Facebook, disponível em: https://www.facebook.com/marcelo.galdino.7?fref=ts
*Wallace Melo é diretor do Sinpro Pernambuco