Ataque a escola não é decisão individual e reflete contato com extremistas, diz pesquisadora
Alvos da cooptação são em geral jovens brancos e heterossexuais, com discursos misóginos e racistas
Ataques a escolas estão ficando cada vez mais comuns no Brasil. O país tem registrados 22 ataques violentos com vítimas em unidades de ensino, 10 deles ocorridos nos últimos 12 meses. O mais recente aconteceu nesta segunda-feira (27), na Escola Estadual Thomázia Montoro, na cidade de São Paulo. O levantamento está no relatório O ultraconservadorismo e extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às instituições de ensino e alternativas para a ação governamental, produzido pelo Grupo de Trabalho da Educação do governo de transição.
Vistos muitas vezes como atos individuais, esses ataques estão na realidade mergulhados em uma visão de mundo extremista. “Esses estudantes que têm sido alvo de cooptação por grupos extremistas são mais frequentemente adolescentes brancos e heterossexuais. É fundamental lançar luz sobre esse aspecto, porque essa violência está relacionada com a misoginia”, afirma Marcele Frossard, assessora de políticas sociais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e pesquisadora nas áreas de educação, violência e juventude. “Não é à toa que as mulheres são alvo frequente desses ataques”, diz.
A cada um dos ataques, são sugeridas soluções como mais polícia nas escolas, detectores de metal e câmeras de segurança. Apesar de trazerem sensação de tranquilidade, essas medidas não funcionam. Para Frossard, que também participou da elaboração do relatório do GT de Educação, é preciso que haja políticas de segurança pública para prevenir esses ataques, mas elas passam por inteligência e investigação.
“Quando a gente fala de segurança de fato, a gente tem que falar de prevenção, de políticas públicas e de uma reflexão estruturada e organizada sobre como atacar esse problema”, afirma. “Não é à toa que até hoje o Brasil tem imensa dificuldade de fazer políticas públicas de segurança pública, porque a gente acredita que o que tem que ser feito é realizar uma ação imediata, resolver aquele problema imediatamente e esperar o próximo problema acontecer.”
Na entrevista, Marcele Frossard também falou de controle da internet, educação para a democracia, gestão democrática das escolas e fetiche com armas, entre outros pontos. Confira a entrevista completa.
Brasil de Fato: Os ataques às escolas já não podem mais ser considerados raros no Brasil. Na posição de pesquisadora sobre o tema da violência escolar, quais são os pontos mais importantes que a sociedade entenda sobre esse tipo de violência?
Marcele Frossard: A primeira coisa é tentar identificar quais são as causas. A gente está vendo a mídia e os tomadores de decisão tentando entender por que está acontecendo com a frequência que tem acontecido atualmente.
É muito comum trazer essa discussão como se fosse uma questão do indivíduo, como se fosse um problema daquele aluno em especial que tomou a decisão de entrar numa escola e realizar um ato violento. O que a gente identifica é que não é uma questão apenas individual, tem a ver com o contexto em que esses adolescentes e jovens estão inseridos, o tipo de informação ou de coletivos que eles vêm fazendo parte. Essa relação entre indivíduo e coletivo, ou indivíduo-sociedade, é muito importante destacar. Nenhum indivíduo é puramente individual. Esses adolescentes têm sido atraídos para participarem de grupos que trazem temas que não estão de acordo com a idade deles.
Quando se fala de bullying, detecção de depressão ou de questões relacionadas à saúde mental, não há dúvida que esse adolescente está em sofrimento emocional, mas o fato é que muitas pessoas estão passando por sofrimento emocional e nenhum outro adolescente que está passando por isso naquela turma ou escola [que sofreu o ataque] tomou a decisão de que ele [o agressor] tomou. Isso nos faz refletir sobre o que leva um adolescente a tomar a decisão de cometer um ato violento dentro de sua escola.
Há vários fatores envolvidos: por que é dentro da escola? Por que é violento? Que lugares, online ou não, ele tem frequentado? A que tipo de informação ele tem acesso? O mais importante é pensar em como isso se relaciona com a política e a política atual sobre o controle de armas. Percebe-se que esses adolescentes têm contato com grupos extremistas e violentos. Não são violentos porque saem às ruas e cometem violência, mas porque incitam a violência, gratificam aqueles que cometem os atos violentos. Eles relacionam [os ataques] com atos que aconteceram anteriormente, como os ataques de Suzano, de Realengo, ou de Columbine, nos EUA.
Outro aspecto é que existem vários tipos de vulnerabilidade e é importante pensar sobre elas. Deixar adolescentes e crianças expostos a esse tipo de assédio é também uma forma de violência. Um dos pontos que a gente presta atenção tem sido justamente sobre a educação digital, o acesso à tecnologia.
Esses estudantes que têm sido alvo de cooptação por grupos extremistas são mais frequentemente adolescentes brancos e heterossexuais. É fundamental lançar luz sobre esse aspecto, porque essa violência está relacionada com a misoginia e como a misoginia tem sido difundida nesse meio. Não é à toa que as mulheres são alvo frequente desses ataques. Embora seja um ataque que acabe acometendo diferentes pessoas, normalmente são mais violentos quando as vítimas são mulheres.
Como funciona a cooptação desses estudantes?
Existem diversas formas de cooptação, como o uso do humor, da estética, a linguagem violenta. Há imagens de ataques anteriores, o compartilhamento de manifesto de atiradores como método de propaganda. Tudo isso está presente na internet como se fosse uma coisa ingênua, mas não é ingênua, não é coisa de adolescente. O problema não é só passar muito tempo jogando, muito tempo na internet. Também é o fato de ficar deprimido ou passar por um momento de sofrimento emocional que leva a esses ataques. É uma combinação de fatores relacionados ao monitoramento insuficiente do que é acessado na internet, aos espaços frequentados por esses adolescentes e como a educação sobre a internet é realizada.
A internet é um espaço político disputado por diferentes grupos que cooptam adolescentes. Um trabalho pedagógico em educação crítica da mídia e combate à desinformação é fundamental. Essa educação crítica deve ser parte de diversos componentes curriculares, desde as séries iniciais do fundamental até o ensino médio.
Em resumo, são muitos os fatores associados a esses ataques, mas é importante entender que há uma relação entre o indivíduo e a sociedade em que ele está inserido, e como fatores políticos estão relacionados a esses ataques.
O ataque à escola Thomazia Montoro foi discutido no Twitter, uma plataforma aberta. Qual a responsabilidade das empresas que controlam as redes sociais e plataformas? Como pensar em um controle dessas publicações?
É importante ter um diálogo entre a sociedade civil, o Estado e essas empresas. Dar uma multa ou criar uma legislação proibitiva são soluções de dois gumes. Pode acabar em uma restrição da internet que não é o interesse da sociedade em geral. Quando falamos sobre internet, é um mundo à parte, uma linguagem própria. Esse debate precisa acontecer fora de bolhas para alcançar a sociedade brasileira em geral. É fundamental que as pessoas entendam o que está acontecendo e como a política e as eleições são influenciadas por esses mecanismos. Os estudantes, muitas vezes com a ajuda desses grupos, aprendem a esconder conteúdos e desenvolver perfis falsos, o que é extremamente perigoso.
A maioria de nós não tem a menor noção de como esses mecanismos funcionam, temos acesso só a uma interface dessas plataformas. Existem também interesses de mercado para gerar fluxo e engajamento, mas não sabemos exatamente como funciona. Por isso, acredito que é crucial que exista um debate sério sobre esse tema, promovido por instituições responsáveis e que inclua diversos especialistas, influenciadores e pessoas públicas que possam entender e explicar como esses mecanismos funcionam e por que alguns estudantes são cooptados por redes extremistas e nós não somos. Por que isso não chega para o pai desse aluno? São direcionamentos individualizados. Vimos como isso acontece na política, como mexe com a percepção sobre a realidade.
Essa regulamentação e o monitoramento dessas atividades não vêm sendo realizados pelas empresas não estão sendo realizados por que existem interesses por trás dessa não tomada decisão.
É o momento de a sociedade pensar em uma política para a internet, de comunicação, mas também na política de controle de armas. O ataque foi por arma branca, mas existe um fetiche em torno de armas. Temos que mapear esses grupos, mostrar que eles existem, que compartilham e valorizam esses atos violentos.
Não adianta tomar medidas como colocar um policial em cada escola, pois esse problema envolve várias esferas e fatores. Isso envolve política, e estamos em um momento em que a gente não quer falar sobre política. A gente acha que cada um tem sua visão e que não dá para conversar sobre isso, mas as pessoas que defendem a liberação das armas e a violência como possibilidade de resolver conflitos sociais estão causando um impacto, porque os adolescentes estão crescendo ouvindo repetidamente essa retórica.
O crime teve uma motivação racial, embora esse fato não esteja em tanto destaque. Como trazer essa discussão à tona, para que todos saibam que é um movimento de extrema direita? E como fazer isso trazendo para a discussão a parcela da população que se identifica como extrema direita, mas condena esse tipo de ataque?
O ataque sucede um evento em que o aluno cometeu um ataque racista na escola, é isso que tem aparecido na mídia. Quando a gente fala de racismo, misoginia, capacitismo, acho que é importante lembrar que a sociedade brasileira é uma democracia e se vale da noção de que todos têm direitos iguais, pelo menos idealmente. Quando a gente pensa no momento político, no que foram os últimos quatro anos, passamos dois anos em pandemia ouvindo a principal liderança política do país dizendo que era tudo mimimi, que a gente estava exagerando, que isso era coisa de esquerdista e outros tipos de desvalorização da pandemia.
Quando a gente pensa em resolver isso em sociedades democráticas, não vai ser por meio da forma nem da violência. Temos que fazer um diálogo sério na sociedade. A gente precisa da mídia e também repensar a nossa maneira de dialogar. Será que a gente vai apontar o dedo? Acho que não dá para não responsabilizar a grande massa que é a favor do uso de armas ou da liberação de armas ou de atos violentos. Mas também muitas dessas pessoas foram convencidas disso por meio de um uso restrito e limitado da internet, em que elas só consomem determinadas mídias como sendo verdadeiras. Inclusive, a percepção delas da realidade é distorcida.
A gente precisa conseguir convencer essas pessoas de que a visão que essas mídias extremamente violentas e agressivas não são uma representação da realidade como ela é e que a sua posição política [de extrema direita] não é simplesmente ter direito igual, porque vivemos em uma sociedade, em coletivo. A gente precisa chamar essas pessoas para a conversa.
Mas nosso alcance nessas ferramentas é muito limitado. A extrema direita alcança um público muito maior que as outras frentes políticas. Isso dá a dimensão do problema que a gente está lidando. A gente não vai resolver em quatro anos ou talvez nos próximos dez anos. Foram muitos anos com essas ideias surgindo no subterrâneo e povoando as mentalidades, a cultura e os sentimentos das pessoas. Mais do que a racionalidade de entender que é um problema, isso mexe com os sentimentos, com o sentido de fazer parte de algo maior, e é isso que eles fazem como os adolescentes. Só que esse algo maior é algo duvidoso, porque é violento e restringe a liberdade dos outros.
A gente tem que fazer o debate sobre participação democrática, as vulnerabilidades que atingem esses adolescentes, quais são os desejos que a internet tem provocado. Estamos falando de uma série de desejos, desejo de fazer algo importante, de ser conhecido. Que sociedade é essa? Como temos conversado com adolescentes, jovens e inclusive com a população adulta sobre o que queremos construir para o futuro? Quando saímos do processo de redemocratização isso estava muito claro. Queríamos um país melhor, era o país do futuro, e principalmente queríamos um país democrático. A gente acha que isso está sedimentado, que não é mais necessário falar sobre isso, mas é preciso plantar isso em todas as gerações.
A escola pública é o espaço da educação cidadã e democrática. É a escola pública que ensina as crianças desse país. Temos que reforçar essa educação que podemos chamar de sem fins lucrativos, que produza empatia e senso de pertencimento a uma comunidade nacional ou local. Ensinar que esses jovens fazem parte de algo maior que é o estado democrático de direito brasileiro, e que há caminhos para a participação. A escola é um espaço de participação política. Ser apolítico impede que esses estudantes tenham voz. Eles têm que ter voz, por meio dos espaços que foram desenvolvidos na luta estudantil. A Campanha [Nacional pelo Direito à Educação] está lançando, inclusive, um guia para o funcionamento dos Grêmios Estudantis, que é um desses espaços de participação.
‘Ah, então por ser de direita eu não posso falar?’ A gente precisa ter o entendimento de qual é o limite da liberdade individual. Esse é um debate que não temos feito. Como diz o ex-presidente, ‘dar a vida pela sua liberdade’. Não é isso. Sua vida é garantida porque essa liberdade política existe e o Estado existe para garantir as liberdades individuais. Mas para garantir as liberdades de todos, minorias e maiorias, a gente tem que ter uma sociedade democrática de fato.
E para isso, a gente precisa de uma escola que forme as pessoas para participarem democraticamente, para entender o que está acontecendo, por que esse tipo de debate tem acontecido, por que a gente precisa falar sobre segurança pública. Não é criar uma disciplina sobre isso, é fazer parte do currículo escolar de uma maneira que essa escola faça os estudantes refletirem e que formem esses estudantes para serem cidadãos, e não apenas para entrar no mercado de trabalho ou para terem uma formação técnica.
Você levantou o ponto de que trazer mais polícia para dentro da escola não é a solução. Mas essa demanda vem até das famílias da escola pública, que têm medo quando veem esses ataques acontecendo. Por que não funciona trazer mais polícia e o que a comunidade escolar pode fazer para diminuir essa sensação de insegurança e de medo?
Quando a gente pensa em segurança de uma maneira geral, sempre que acontece um evento, um roubo numa rua, alguma coisa assim, uma das estratégias é colocar uma patrulha por um tempo. Isso tem a ver com fatores psicológicos. Tem a ver com a sensação de segurança. Não é à toa que existe esse indicador, que é a sensação de segurança. A sensação de segurança é transmitida por aquilo que a gente consegue visualizar, que se torna material. É a presença da polícia, do detector de metal, grade.
Mas quando a gente fala de segurança de fato, a gente tem que falar de prevenção, de políticas públicas e de uma reflexão estruturada e organizada sobre como atacar esse problema. Não é à toa que até hoje o Brasil tem imensa dificuldade de fazer políticas públicas de segurança pública, porque a gente acredita que o que tem que ser feito é realizar uma ação imediata, resolver aquele problema imediatamente e esperar o próximo problema acontecer.
Há anos todos os especialistas de segurança pública vêm debatendo sobre esse assunto. Segurança pública envolve o monitoramento da internet, o monitoramento desses grupos, polícias especializadas em redes sociais. Muitos desses ataques sequer chegam à mídia porque foram prevenidos através do monitoramento da internet. É importante refletir de uma maneira racionalizada e entendendo esse planejamento, essa organização e essa criação de um projeto de segurança pública que pense a violência às escolas. É uma questão que a Campanha tem discutido, que é a ideia de violência às escolas. Não é violência escolar, é violência às escolas, porque é um ataque direcionado às escolas.
Quando a gente fala de violência às escolas, a gente falava desse ataque direcionado exclusivamente às escolas. Esses adolescentes não têm realizado esses ataques em outros espaços. Isso tem relação com o espaço escolar, e isso a gente precisa entender: ‘por que isso acontece relacionado com as escolas?’.
Esse tipo de violência não vai ser resolvida com a criação de mais escolas cívico militares, pela educação domiciliar ou por reformas curriculares exógenas à lógica escolar. É preciso então apostar no princípio da gestão democrática e da escola como ambiente fértil para o exercício da cidadania. A gente tem que pensar nos trabalhadores da escola, nos profissionais da escola de uma maneira geral e que esses estudantes possuem voz ativa na construção do espaço escolar e da sociedade em que eles desejam conviver.
Pensando nessas diferentes vulnerabilidades, eu acho que é importante a gente tirar essas crianças e adolescentes da invisibilidade. E aí esses temas se cruzam, porque crianças e adolescentes são sujeitos de direito. Eles têm voz, eles têm desejo. Eles têm, inclusive, vontade de fazer parte de uma coisa muito maior, de construir, de fazer alguma coisa diferente. A nossa cultura, reforça isso para a gente o tempo inteiro que a gente tem que fazer alguma coisa, que a gente tem que deixar o nosso nome na história.
Temos que considerar essas infâncias e adolescências e considerar a diversidade do país. Porque esses ataques não se restringem apenas a centros urbanos. Existem casos em cidades muito pequenas, a internet está difundida para todos os lugares e a gente precisa entender qual a relação com a política, com o racismo, com a misoginia, com o capacitismo, com todas essas formas de preconceito e ódio a grupos da sociedade.
Então são temas que se complementam. É pensar sobre políticas de segurança pública, refletir sobre a visibilidade e crianças e adolescentes e também reforçar o direito à participação e à gestão democrática das informações. Sem essa engrenagem toda funcionando, é muito difícil realizar a prevenção desse tipo de ataque.
Agora a gente vai fazer a posvenção. A gente vai entender o que aconteceu naquela escola, vai dar o suporte para esse grupo específico. Mas a gente não pode esperar acontecer em outra escola. A gente tem que desenvolver medidas para que isso acabe. E isso passa por refletir sobre a legislação de acesso a arma, sobre como esses grupos continuam existindo na internet, sobre como eles têm cooptado adolescentes para participar desses grupos. Temos que entender mesmo, porque são muitos fatores envolvidos e a gente ainda não tem uma resposta objetiva. E talvez não tenha, porque é um fenômeno social que tem acontecido em outros países e que agora tem ganhado mais força também no Brasil e que precisa de atenção.
Edição: Vivian Virissimo