Crise hidroenergética: três décadas de equívocos
Há três décadas, as usinas hidrelétricas respondiam por 85% da eletricidade gerada no Brasil, proporcionando tarifas baixas e segurança de abastecimento, podendo armazenar água para enfrentar sem problemas uma seca de dois anos. Hoje, com a proliferação de usinas com reservatórios limitados por restrições socioambientais (chamadas a “fio d’água”, por funcionarem apenas com as vazões dos rios), tal capacidade foi reduzida a poucos meses, como evidenciado pelos problemas causados pela crise hídrica atual.
O caso da usina de Belo Monte, no Pará, é exemplar. O projeto original previa um reservatório de 1.200 quilômetros quadrados, o que possibilitaria um aproveitamento ótimo do regime de chuvas da região e potência instalada de 19.000 MW, superior aos 14.000 MW de Itaipu e inferior apenas à chinesa Três Gargantas, a maior do mundo, com 22.400 MW. Como resultado da longa e acirrada campanha desfechada pelo aparato ambientalista-indigenista internacional contra o projeto, aceita passivamente por sucessivos governos, o reservatório foi reduzido a pouco mais de um terço daquela área, resultando em uma potência instalada de 11.200 MW, mas com média anual de 4.000 MW, devido às grandes oscilações nas vazões do rio Xingu, e não mais que 1.000 MW no período seco. No momento, devido à seca rigorosa, somente uma das 18 turbinas da usina está funcionando, e gerando não mais que a metade da sua capacidade de 611 MW.
Em entrevista ao Jornal da Band (03/09/2021), o ex-deputado e ex-ministro Aldo Rebelo foi categórico: “No dia em que for realizada uma investigação séria sobre o processo de construção de Belo Monte, nós vamos encontrar os abusos na cobrança de indenizações indevidas, a participação do Ministério Público em coisas absolutamente erradas, as ONGs que chantagearam o poder público e o setor privado responsável pela construção, isso tudo vai aparecer.”
A crise hídrica e energética, que ameaça complicar ainda mais a grave situação socioeconômica e política nacional, não é de gestação recente, mas resulta do acúmulo de três décadas de equívocos e negação da realidade pelas elites dirigentes brasileiras, que, desde a década de 1990, decidiram atrelar os destinos da Nação aos fluxos financeiros da “globalização”, além de criar um ambiente desfavorável a grandes projetos de engenharia, associando-os ao regime de 1964. Com isto, a capacidade do Estado brasileiro de planejar e sinalizar os rumos do desenvolvimento do País foi “terceirizada” para investidores e especuladores privados, em especial, estrangeiros, e junto com a dependência financeira veio a agenda dos condicionantes ambientalistas-indigenistas, promovida pelos mesmos centros de poder do Hemisfério Norte. Para o setor elétrico, o resultado foi desastroso, com a conversão da energia em mera “commodity” subordinada aos apetites e interesses dos mercados privados e a construção de novas hidrelétricas, grandemente restrita por draconianos condicionantes socioambientais definidos por critérios essencialmente mais ideológicos do que racionais e razoáveis.
Assim, as tarifas elétricas nacionais, entre as mais baixas do mundo, passaram para o extremo oposto, estando atualmente entre as mais elevadas, atrás apenas da Dinamarca, segundo os critérios paritários da Agência Internacional de Energia (AIE).
Quanto às alardeadas vantagens da gestão privada, elas se restringiram praticamente aos lucros dos acionistas das empresas privadas e estatais (estas últimas, da China, França e Itália) que passaram a controlar grande parte do parque elétrico nacional. Para os consumidores, inclusive comerciais, sobraram as tarifas olímpicas e a ameaça de um novo racionamento ainda mais sério que o de 2000-2001, que só não deverá ser pior devido à estagnação econômica em que o País chafurda desde 2015.
A maior parte dos investimentos privados se dirigiu à construção de termelétricas e eólicas, de construção e retorno rápidos, como convém a um “mercado livre” especulativo, mas de custo operacional elevado e dependentes de subsídios e vantagens fiscais e tarifárias. Entre as hidrelétricas, menos de 8% dos atuais 109.000 MW de potência instalada correspondem a investimentos novos totalmente privados, segundo o Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético-Ilumina.
E os exageros de gestão do “privatismo” foram escancarados com o desastroso blecaute experimentado pelo Amapá em novembro de 2020, deixando às escuras durante vários dias 13 dos 16 municípios do estado, inclusive a capital Macapá. A calamidade foi causada pela incapacidade gerencial e operacional da empresa Linhas de Macapá Transmissora de Energia, controlada pelo grupo espanhol Isolux Corsan, sendo resolvida apenas com a intervenção de técnicos da Eletronorte, subsidiária da Eletrobras, e a mobilização das Forças Armadas para assegurar o atendimento emergencial a hospitais e outros serviços essenciais.
Em 28 de junho último, em cadeia nacional, o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, empenhou-se em tranquilizar os brasileiros quanto à possibilidade de um novo racionamento de energia semelhante ao de 2001. Na ocasião, afirmou que o sistema elétrico nacional havia evoluído muito nos últimos anos, reduzindo a sua dependência das usinas hidrelétricas. Segundo ele, o governo pretendia enfrentar a situação gerada pela seca atual com “uma estrutura de governança” para coordenar as ações dos vários órgãos envolvidos na questão.
A estrutura referida é a Câmara de Regras Excepcionais para Gestão Hidroenergética (CREG – sigla com grande potencial para tornar-se inspiração de memes nas redes sociais), presidida por ele próprio e integrada por representantes dos ministérios da Economia, Agricultura, Infraestrutura, Meio Ambiente e Desenvolvimento Regional. Curiosamente, foram excluídos órgãos diretamente envolvidos na gestão dos recursos hídricos e do próprio sistema elétrico, como a Agência Nacional de Águas (ANA), Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) e o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS).
Pouco mais de um mês depois, em 31 de agosto, em nova cadeia nacional, o ministro informou que “a nossa condição hidroenergética se agravou” e, portanto, medidas mais drásticas seriam necessárias – começando, claro, por um aumento tarifário, devido à maior utilização de termelétricas e à importação de energia de países vizinhos. Apesar do otimismo que procurou transmitir, nada sugere que um racionamento drástico não seja uma possibilidade real, na medida em que os níveis dos reservatórios das hidrelétricas do Sudeste e Centro-Oeste se aproximam da marca crítica de 10%, quando a geração de eletricidade fica comprometida, cenário ainda mais grave com a aproximação do verão. Um exemplo é a de Ilha Solteira, no rio Paraná, a sexta maior do País, já operando abaixo da sua cota mínima e gerando menos de 10% da sua capacidade de 3.400 MW.
No último dia 14, em nova manifestação sobre a crise, o ministro advertiu que ela “não tem data determinada para acabar”. Ao mesmo tempo, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) anunciou que a “bandeira escassez hídrica”, regime tarifário quase 50% superior à “bandeira vermelha 2” vigente anteriormente, irá permanecer pelo menos até abril de 2022.
Tarifas estratosféricas e ameaça real de racionamento. Em essência, este é o resultado de três décadas de equívocos e ilusões ideológicas sobre a condução da política nacional em um setor estratégico. Algo parecido, aliás, ao que também se manifesta além-mar, como se depreende na nota seguinte sobre a explosão tarifária na Espanha.
Que a lição principal seja aproveitada: o Brasil precisa retomar com urgência o impulso de um projeto nacional de desenvolvimento, no qual os requisitos de infraestrutura física sejam considerados fatores estratégicos que não podem ser confiados aos interesses voláteis dos mercados financeiros, nem subordinados a pressões escusas externas. Simples assim.