Debate sobre juiz das garantias se entrega à retórica terrorista
“Caso o Supremo derrube a tese que fixa prisão automática após a condenação penal em segunda instância, serão postos em liberdade quase 200 mil presos. Muitos deles, perigosos”. Com uma pequena variação das expressões usadas e do tom da fala, mais ou menos sensacionalista a depender do autor da frase, era isso que se dizia quase em uníssono às vésperas do julgamento em que o STF decidiu cumprir a Constituição Federal e não permitir a prisão como regra mesmo sem condenação definitiva.
Houve, claro, exceções. O jornalista Reinaldo Azevedo, por exemplo, publicou no calor dos debates, há pouco mais de um ano, um texto que desmontava os argumentos terroristas que pretendiam emparedar o Supremo para que julgasse de acordo com as pesquisas de opinião, ainda que isso significasse deixar de lado a Constituição de 1988.
Bem, fato é que o Supremo derrubou a tese da prisão automática e — vejam as senhoras e os senhores, que surpresa! — não houve soltura em massa. Aliás, os altos índices de encarceramento no Brasil seguem firmes e fortes, o que faz o país ocupar o terceiro lugar mundial em número de pessoas presas, atrás apenas de China e Estados Unidos. São, segundo números recentes, 338 presos para cada 100 mil habitantes.
Os mesmos argumentos terroristas são repetidos agora na esteira do debate sobre o recente Habeas Corpus impetrado pelo Instituto de Garantias Penais para fazer valer a Lei 13.964/2019, que criou no Brasil a figura do juiz das garantias. “Caso o Supremo acolha o pedido, serão colocados nas ruas milhares de criminosos condenados em 2020. Muitos deles, perigosos”. Mais uma vez, reina a desinformação.
Com um agravante: no caso da antecipação da execução da pena, não seriam soltos automaticamente milhares de criminosos, mas a decisão do Supremo pegaria, sim, alguns casos pregressos. Como pegou. Já no caso do juiz das garantias, a decisão só valerá para o futuro, já que ele sequer chegou a ser implantado.
Pressionar o Supremo para que a Corte molde suas decisões de acordo com a visão que cada um de nós tem do mundo é natural, é humano. Faz parte do jogo democrático. Mas distorcer fatos para conseguir isso deveria ser inaceitável. Principalmente quando a mentira parte de gente que enverga beca e toga.
A lei que criou a figura do juiz das garantias foi aprovada pelas duas casas do Congresso Nacional e sancionada pela Presidência da República. Ou seja, passou pelo crivo de quase 600 autoridades públicas escolhidas nas urnas para representar o sentimento popular: 513 deputados federais, 81 senadores e o presidente da República. Mas parte da magistratura crê que é razoável suspender com uma canetada o trecho da lei que não a agrada. E, pior, sem que o STF se manifeste sobre o tema de forma colegiada, por meio de seu Plenário, como aliás deveriam ser todas as análises de inconstitucionalidade de leis.
Onze tribunais
A Lei 9.686/1999, que fixa as regras de processamento e julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade, prevê que medidas cautelares em ADI, como é a liminar do ministro Luiz Fux que suspendeu a implantação do juiz das garantias, devem ser concedidas em hipóteses excepcionais e, ainda assim, pela maioria dos membros do tribunal. Mesmo nos raros casos em que uma decisão monocrática é necessária, o bom senso e a correção aconselham que essa decisão seja submetida ao julgamento do plenário do Supremo o mais rápido possível.
A prática no STF nos últimos anos, contudo, tem sido outra. O ministro Luiz Fux suspendeu a implantação do juiz das garantias em 22 de janeiro. Em seguida, marcou uma audiência pública para debater o tema, que nunca foi feita por conta da epidemia de Covid-19. Tampouco levou a liminar ao plenário para ser derrubada ou corroborada pelos demais dez ministros da Corte.
Portanto, há 11 meses a vontade de um juiz se impôs sobre todo o arcabouço institucional que envolve a entrada de uma lei no ordenamento jurídico. E, para que as coisas não sejam colocadas em seus devidos lugares, abre-se o leque de argumentos falaciosos, como sustentar que a queda da liminar do ministro Fux poderá causar anulação em massa de decisões judiciais. Mas a cortina de fumaça serve para que não se discuta a real distorção: a perpetuação da vontade individual de um magistrado.
O fenômeno da “monocratização” das decisões do Supremo não é novo, nem monopólio do ministro Luiz Fux. O problema foi recentemente levantado pelo ministro Gilmar Mendes. Ao apresentar proposta de emenda regimental que fixa prazo de 180 dias para um ministro levar a julgamento suas decisões individuais, o gabinete de Mendes contou 255 decisões monocráticas de ministros do Supremo que, nos últimos 20 anos, suspenderam leis ou trechos de leis. Na prática, cada ministro atuou quase como um tribunal.
Feito em outubro, o levantamento mostrou que, das 255 decisões, 69 ainda estavam pendentes de análise pelo plenário. Cinco dessas liminares perduram há sete anos ou mais. O levantamento revela que o primeiro lugar em decisões individuais desse gênero é ocupado justamente pelo ministro Luiz Fux, com 16 decisões. Entre elas, a que não permite a implementação do juiz das garantias. Ele é seguido de perto pelo próprio Gilmar Mendes, com 13 decisões, e por Luís Roberto Barroso, com 11 liminares.
Em outubro, por proposta de Fux, o Supremo alterou seu regimento interno e devolveu ao Plenário a competência para julgar ações penais contra réus com prerrogativa de foro. A competência era das turmas desde 2014. Uma das justificativas do presidente do Supremo para a mudança foi prestigiar o princípio da colegialidade e a segurança jurídica.
Em seu discurso de posse na Presidência do Supremo, Luiz Fux afirmou que “os investidores no Brasil clamam por previsibilidade e segurança jurídica, na medida em que surpresa e desenvolvimento econômico não combinam”. Pois é, imaginem só como seria arriscado investir em um país no qual uma lei recém sancionada pelo Poder Executivo, após ser debatida e aprovada pelo Poder Legislativo, pode ser suspensa pela liminar de um único juiz. Só seria pior se esse juiz não tivesse prazo para decidir se, afinal, a lei vale ou não vale.