Depender de doações ou “ter sangue escorrendo pelas pernas”, a realidade da pobreza menstrual
Veto de Bolsonaro à distribuição gratuita de absorventes põe em risco a saúde de mulheres em situação de vulnerabilidade, que não têm acesso a itens de higiene básica. Após polêmica, Governo agora diz que estuda como viabilizar a distribuição
Bruna, de 29 anos, formada em Educação Física, vive há seis anos em situação de rua, no centro de São Paulo. Ela sabe que deve fazer exames de sangue com regularidade, uma revisão ginecológica uma vez por ano e ter outros cuidados de saúde. “Hoje mesmo, agentes do SUS [Sistema Único de Saúde] vieram aqui falar sobre o Outubro Rosa”, conta ela em frente à barraca de camping onde vive com o marido, na praça da República. O que Bruna ainda não sabia na sexta-feira é que, um dia antes, o presidente Jair Bolsonaro havia vetado a distribuição gratuita de absorventes para mulheres como ela, que vivem em situação de vulnerabilidade. “Nossa!”, reagiu, surpresa, cercada pelos quatro cachorros que considera seus filhos. Ela depende das doações de agentes sanitários, assistentes sociais ou organizações civis para poder usar absorventes durante seu período menstrual. “Quando não tem doação, o jeito é usar papel higiênico, ou papel que a gente acha na rua mesmo”, conta. Eventualmente, diz, é possível recorrer à solidariedade de outras mulheres que moram na praça. “Mesmo que a gente não goste uma da outra, nessas horas, a gente só entrega o absorvente, não precisa nem se falar, mas não deixa a outra sem.”
O veto de Bolsonaro a dois artigos do Programa de Proteção e Promoção de Saúde Menstrual, aprovado pelo Congresso no mês passado, pode deixar 5,6 milhões de mulheres sem acesso a esse item —são estudantes em situação de vulnerabilidade social, mulheres em situação de rua, além de presidiárias, e internadas em unidades para cumprimento de medida socioeducativa. Sem contar outras pessoas que também menstruam, como homens trans e pessoas não-binárias. “Desse jeito, as meninas vão ter que voltar a fazer como nos meus dias, que era ficar com o sangue escorrendo pelas pernas ou amarrar sacolas de plástico no quadril”, lamenta Eugênia Souza, de 56 anos, que já não menstrua, mas passou por essa situação nos muitos anos em que vive na rua —ela já não lembra quantos. Antes de falar com a reportagem, ela se lavava superficialmente no lago da praça.
A falta de algo tão básico quanto água é um dos principais aspectos da pobreza menstrual, que vai além da falta de dinheiro para comprar produtos de higiene. No Brasil, 1,5 milhão de mulheres e 413.000 meninas vivem em residências sem banheiros, de acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde. Com a crise econômica agravada pela pandemia de covid-19, a situação piorou: no dia 14 de setembro, um levantamento realizado pela Johnson & Johnson Consumer Health mostrou que 29% das brasileiras entre 14 e 45 anos tiveram dificuldades financeiras nos últimos 12 meses para comprar produtos para menstruação e 21% têm dificuldade todos os meses. “Quando tenho algum dinheiro, eu já separo para isso e consigo comprar”, diz Bruna. Outras mulheres em situação de rua ouvidas pelo EL PAÍS, que não quiseram se identificar, contam que, quando não há doações, se veem obrigadas a pedir absorventes nas portas de supermercados e farmácias.
A ativista Matuzza Sankofa, coordenadora da Casa Chama, de acolhimento e cultura LGBTQIA+, e membro do Centro de Convivência É de Lei, focado em políticas de redução de danos, lembra, no entanto, que debater pobreza menstrual não significa falar apenas de absorventes. “É preciso falar também do acesso a banheiros públicos com lugar para tomar banho, acesso a lavanderias públicas para que essas pessoas possam higienizar suas roupas… Isso é política de saúde preventiva. O SUS existe também para cuidar da população preventivamente e evitar que a pessoa chegue ao sistema de saúde só quando precisa de tratamento para uma doença”, argumenta. A ativista diz que projetos como o Vidas no Centro, da Prefeitura de São Paulo, que montou estações de banheiros e pias em sete pontos da região central para atender a população durante a pandemia deveriam ser perpetuados e expandidos para todo o país.
O texto do Programa de Proteção e Promoção de Saúde Menstrual —cujo investimento estimado pelo Senado seria de 84,5 milhões de reais por ano, levando em conta oito absorventes ao mês/mulher—previa que o dinheiro para a distribuição desses itens viria de recursos do SUS. Bolsonaro vetou justamente esse trecho por alegar que o projeto não atende ao princípio de universalidade do sistema de saúde, uma vez que estipula beneficiárias específicas, e que absorventes não constam da lista de medicamentos considerados essenciais.A decisão do presidente ainda pode ser derrubada no Congresso Nacional, que tem 30 dias para vetá-la. Na última sexta, depois da polêmica gerada pelo veto, o Governo afirmou que ainda estuda formas de “viabilizar a aplicação da medida”.
Sem o amparo do Estado, muitas pessoas precisam contar com iniciativas como os projetos sociais de Matuzza, cujo departamento coordenado por ela no Centro de Convivência É de Lei distribui não apenas absorventes, mas calcinhas e cuecas para pessoas que menstruam, além de panfletos informativos sobre como usar esses produtos. “Tem gente que está há tanto tempo vivendo na rua que sequer sabe como colocar um absorvente na roupa íntima, ou como higienizar essas peças corretamente”, lembra.
Depois de anos de atividade voluntária em diversos projetos, Mirela Cavichioli percebeu na pandemia que “as necessidades das pessoas menstruantes não eram atendidas” mesmo pelas iniciativas que tinham as melhores intenções. “Via quase todos os kits de doação com sabonete, papel higiênico, escova de dente, mas era raro ver absorventes sendo incluídos”, conta. Ela se reuniu, então, com quatro amigas para criar o Projeto Absorver, que há sete meses distribui absorventes, preservativos e outros produtos de higiene básica para pessoas em situação de rua e que vivem em ocupações. Sempre que possível, convidam ginecologistas para falar sobre saúde sexual. “A pobreza menstrual inibe as pessoas de olhar para e cuidar do próprio corpo. Viver nessa situação é viver sem dignidade”, resume.