Entre o afeto e o abandono: Capitães da Areia e os Quatro da Candelária
Este texto não se propõe a ser uma resenha tradicional da minissérie Os Quatro da Candelária, lançada pela Netflix em 2024, tampouco uma análise literária formal de Capitães da Areia, clássico de Jorge Amado. Trata-se, antes, de um exercício de aproximação entre duas obras separadas por quase noventa anos, mas unidas por um mesmo gesto político: o de devolver voz, rosto e humanidade a crianças e adolescentes pobres que a sociedade insiste em invisibilizar ou exterminar. Ao estabelecer esse paralelo, busca-se também refletir sobre a permanência das estruturas de exclusão no Brasil e sobre a inquietante atualidade da violência de Estado contra a infância marginalizada, inclusive diante da recente tentativa de censura ao romance de Jorge Amado, ocorrida em Santa Catarina, em 2025.
A minissérie dirigida por Luis Lomenha e Márcia Faria reconstrói as últimas 36 horas de vida de quatro jovens assassinados na Chacina da Candelária, crime que marcou o país em julho de 1993. Em vez de adotar o formato típico do true crime, a narrativa opta por uma abordagem poética e simbólica, dando corpo aos afetos, sonhos e subjetividades desses meninos. Douglas, Sete, Pipoca e Jesus não são tratados como “casos”, mas como vidas interrompidas, com desejos, medos, laços e esperanças que seguem reverberando, mesmo após a morte.
O gesto de humanização que estrutura a série tem um antecedente em Capitães da Areia, publicado por Jorge Amado em 1937. O romance acompanha um grupo de meninos de rua de Salvador, vivendo em um trapiche abandonado, à margem da cidade e da lei. Embora vistos como delinquentes pelas autoridades e pela elite, esses jovens são apresentados como sujeitos complexos: capazes de amar, sonhar, pensar e criar. Como os “quatro da Candelária”, os “capitães” de Jorge Amado vivem entre o afeto e a brutalidade, a ternura e o castigo, e é justamente nessa tensão que suas histórias ganham força política e literária.
O paralelo entre as duas obras torna-se ainda mais urgente quando lembramos que, em julho de 2025, uma vereadora de Santa Catarina tentou retirar Capitães da Areia do currículo escolar, alegando que o livro fazia apologia ao crime. A tentativa de censura revela uma lógica antiga e persistente: a de que, em vez de ouvir as vozes que denunciam a desigualdade, o poder prefere silenciá-las. Não por acaso, essa mesma lógica é a que justifica a violência policial contra crianças pobres, a exclusão de narrativas periféricas da mídia e o apagamento sistemático da memória de vítimas como as da Candelária.
O que liga Os Quatro da Candelária a Capitães da Areia não é apenas o tema da infância vulnerável, mas a insistência em olhar para esses sujeitos para além dos estereótipos da delinquência e do abandono. São obras que recusam o rótulo de “marginal” imposto à juventude periférica e que, em vez disso, constroem espaços de afeto, sonho e crítica social. Em ambas, a arte cumpre um papel essencial: abrir brechas de escuta, provocar empatia e denunciar estruturas opressoras.
Em tempos de censura disfarçada de moralismo e de recrudescimento da violência contra a juventude periférica, essas duas obras, uma literária, outra audiovisual, nos convocam à memória e à ação. Afinal, os meninos da Candelária e os capitães da areia não são personagens do passado: continuam vivos nas ruas das grandes cidades brasileiras, sonhando, resistindo e sendo alvos do mesmo sistema que os nega. Lembrá-los, contá-los e imaginá-los é também uma forma de lutar por justiça.
Assistir à série Os Quatro da Candelária e/ou revisitar Capitães da Areia é, portanto, mais do que apreciar duas narrativas potentes. É aceitar o chamado para não nos acostumarmos com a barbárie. É enxergar, nas brechas da ficção e da memória, a urgência de transformar o presente. Porque lembrar é resistir, e resistir, hoje, é um ato de humanidade.
Por Antônia Rangel

