Fepesp: “Não estou com vontade de falar”
Na noite da quinta-feira, 17/10, a Câmara Municipal de São Paulo recebeu educadores para tratar com franqueza do estado da nossa Educação, na série Outubro da Educaçãopromovida pelos mandatos do vereador Celso Giannazi e seu irmão, deputado estadual Carlos Giannazi. A cobertura do evento estará em breve na TV Fepesp. Na abertura do seminário, Celso Napolitano, da Fepesp, lembra nosso patrono Paulo Freire e uma histórica entrevista concedida pelo educador ao Jornal dos Professores – que, mesmo tendo sido publicada em dezembro de 91, permanece atual e segue reproduzida abaixo.
Boa leitura!
Originais da entrevista ao Jornal dos Professores: ainda atual
PAULO FREIRE NO JORNAL DOS PROFESSORES
Encarte especial
Jornal dos Professores /SinproSP
Ano IV – nº30 – Dez 91
Em 1989, cinco mil professores foram ao Pacaembu ouvir o então recém-empossado Secretário Municipal de Educação, Paulo Freire, dizer uma frase que ficou famosa: “Não estou com vontade de falar”.
Mas nem sempre foi assim, como vocês poderão constatar.
Durante o encontro que produziu a entrevista exclusiva que publicamos a seguir, foi um Paulo Freire que tinha muito o que dizer, tranquilo e bem-humorado, que abriu o coração contando seu aprendizado de vida e algumas das circunstâncias que o levaram a ser o mais conhecido e polêmico educador brasileiro.
Autor traduzido para dezoito idiomas, criador de um método de alfabetização de adultos consagrado em países do Terceiro Mundo (divulgado até nos Estados Unidos) e dono de uma quinzena de títulos de doutor honoris-causa de algumas das universidades mais prestigiadas do mundo, ele exercita uma vontade enorme (absoluta, diria ele) de aprender e de enfrentar desafios.
Isso talvez explique o fato de, em 1989, diante do convite feito pela Prefeita Luiza Erundina, ele não ter hesitado um segundo em assumir a Secretaria de Educação da maior, mais rica e também a mais problemática cidade do País. “Eu seria lembrado como um homem que não aceitou a grande oportunidade de colocar as suas ideias em prática”, explicou na época.
Paulo Regis Neves Freire, um pernambucano de Recife, é uma lição de vida. Exilado, não guarda rancor dos seus algozes: “Eles não poderiam mE deixar aqui, eu representava grande perigo”. Azar do Brasil e de toda uma geração de professores que só pôde ler Pedagogia do Oprimido em espanhol, por falta de edição em português, numa época em que a simples citação de seu nome nos jornais era proibida. Esta edição histórica do Jornal dos Professores, que comemora os 70 anos de Paulo Freire (nasceu em 19 de setembro de 1921, no bairro da Casa Amarela) foi idealizada em outubro do ano passado (1990), quando ele veio ao Sindicato para, como sindicalizado, votar nas eleições de renovação da diretoria e que, concretizada, transforma-se no presente de Natal do Sinpro para os professores de São Paulo.
JP: Paulo Freire, 70 anos, professor, falando com os professores. Nós poderíamos começar assim: quando surgiu em você o desejo de ser professor, como foi?
PF: Fui um menino cheio de “anúncios docentes”, o que não significa que eu tenha nascido professor. Agora, quando me revejo, me retomo – coisa que gosto de fazer – me lembro que era um menino curioso. Um professor que não exerce a curiosidade está equivocado. Eu me perguntava muito, perguntava aos outros, era metódico no estudo. Sofria quando aprendia e receava que isso prejudicasse o meu próprio processo de estudo. Tinha certas preocupações que a gente pode chamar de pedagógicas. Na adolescência, sonhava tanto em ser professor que as vezes, para mim, era difícil perceber que estava no nível do imaginário e não do real: eu me via dando aula.
JP: O que o levou a ser professor?
PF: Eu dizia que havia duas razões visíveis para eu ter me entregue ao Magistério. Uma era a necessidade de ajudar. A minha família sofreu o impacto da crise de 29, tivemos que nos mudar de Recife para Jaboatão, foi uma espécie de decisão mágica da família, para ver se fora seria melhor, mas não deu certo. A falta de dinheiro e o endividamento continua lá. Quando eu tinha os meus 18 ou 19 anos, estudante de ginásio, eu precisava ajudar em casa. Meus dois irmãos estavam trabalhando normalmente, muito sacrificados, minha irmã estava no último ano da Escola Normal e a única maneira de eu ajudar era ensinando.
A segunda, na verdade, foi uma questão de gosto intelectual. Eu era muito menino quando descobri uma certa paixão pelos estudos de Gramática e dei saltos por mim mesmo. Eu li todos os bons gramáticos brasileiros e portugueses que eu conseguia comprar em sebos, tinha uma paixão enorme e foi exatamente me servindo dos conhecimentos que fui adquirindo, que eu me tornei, antes mesmo de estar dando aula, competente para dar aula. Dando aula a jovens de classe média, tão apertados quanto eu em Jaboatão, que fui me tornado professor. Quando digo que ninguém nasce professor, eu tenho uma experiência viva disso.
JP: Como era a vida em Jaboatão?
PF: Muito dura, muito sofrida. Meu pai morreu quando eu tinha 13 anos, o que agravou ainda mais a crise. Eu me lembro de certos momentos da vida de minha mãe e quando eu me lembro deles e tenho uma sensação de mágoa. Era, por exemplo, acompanhando-a, que eu pude ver com que rosto de vergonha, de intimidação ela ficava quando o sujeito da venda – minha mãe ainda não havia posto o corpo inteiro na porta – gritava por trás do balcão que não venderia a ela por que a dívida já era grande e que ele não acrescentaria mais. Ela nem balbuciava um “desculpe” ou “muito obrigada”, voltava-se para rua e saía e eu atrás, sem comentários também. Essa coisa me marcou profundamente. Eu cresci com um baita respeito por ela e também com o senso de muita responsabilidade perante ela. Eu acompanhei muito de perto a dor dela, o sofrimento dela e fiz tudo o que pude durante toda a aminha vida em termos de ajuda-la, de mantê-la. Até a morte dela eu não a vi mais, porque estava no exílio e não podia volta para o Brasil. Isso, na verdade, não tem muito a ver com a sua pergunta. Faz parte da minha trajetória, da minha rua, da minha estrada. Foi um beco em que entrei, agora.
JP: Voltando a sua experiência como professor, as suas primeiras aulas foram particulares?
PF: Meus alunos eram meus próprios colegas. Eram muito bons em outras disciplinas e não o eram em língua portuguesa. Com alguns eu permutava, ensinavam-me Matemática, por exemplo, e eu, Português. Outros pagavam. Anita, minha mulher, as vezes reclama porque faço algumas coisas sem cobrar e eu até nunca disse isso a ela: no tempo em que eu, na verdade, precisei, eu cobrei e fui muito rigoroso nas cobranças, mas bastou não precisar muito que eu já reduzi o rigor. Eu sou um pouco gratuito e não me arrependo.
JP: Você também usufruiu de gratuidade na sua formação…
PF: O pai de Anita, Dr. Aluisio, dono do Colégio Osvaldo Cruz em Recife, foi absolutamente gratuito comigo me possibilitando estudar sem pagar. Não foi bolsa aquilo. Dr. Aluisio me permitiu, me ofereceu o estudo como um direito. Ele nunca me chateou e nem à minha mãe para saber se a gente iria e se podia pagar. Não importava ao Aluisio, até, se eu pudesse pagar. Ele disse: “eu acredito no que a mãe dele me disse”.
JP: E a sua primeira aula?
PF: O interessante é que com 16 anos eu escrevia rato com dois erres e interessante com c cedilha e aos 19 anos eu já era professor e, cá prá nós, eu me achava um grande professor.
A primeira aula particular foi lá mesmo na minha casa, numa salinha. Agora, na homenagem de 70 anos que fizeram a mim em Pernambuco, este primeiro aluno foi lá me abraçar, com a esposa dele. Ele foi meu primeiro aluno. Teve coragem de fazer essa experiência.
JP: Como foi essa primeira aula?
PF: Eu devo ter começado a propor a ela uma compreensão gramatical da estrutura do discurso. O interessante é que naquela época, sem saber nada, eu já partia para compreender as palavras nas relações que elas têm dentro do texto e não as palavras isoladas. Por exemplo, eu nunca dei aulas de verbo, a não ser pedindo aos meninos que eles criassem sentenças com os verbos.
JP: E a sua primeira aula em Colégio, como foi?
PF: Uma das maiores alegrias que eu tive, realmente, foi quando de aula no Colégio Osvaldo Cruz, o mesmo que eu estudava, e comecei, obviamente, no que se chamava na época de curso para o exame de admissão. Dei as minhas aulinhas de língua portuguesa aos meninos de 10, 11 anos. Mas daí eu passei a ensinar no 1º, 2º, 3º anos.
JP: Paulo, conta essa história de como o pai da Anita te deu emprego.
PF: Um dia eu fui ao Aluisio e lhe disse que já fazia uns três ou quatro anos que eu estava li estudando e não havia dado nada de mim ao Colégio. Queria que ele escolhesse qualquer tarefa para eu cumprir, só lhe pedia que não fosse na hora das minhas aulas. E ele foi ótimo e pedagógico ao atender ao meu pedido. Comecei a trabalhar num cargo horrível: censor, que ajudava na disciplina do Colégio, o que hoje pode ser chamado de inspetor de aluno. Foi uma experiência trágica, mas fundamental: eu fui censor da minha própria turma e vi como havia uma atitude classista por parte de alguns de meus colegas ricos, que passaram a me tratar com descaso ao perceberem que eu não pagava o Colégio. De censor é que dei o salto para professor de Admissão. Aluisio avaliou a minha prática docente com os meninos e aí ele me deu espaço. Eu dei aula no 1º, no 2º ano e quando ele me botou no Ginásio quis me testar e, nesta manhã, foi assistir a aula.
JP: O que aconteceu nesta manhã?
PF: Ele entrou, sentou-se e eu ainda me lembro que o conteúdo da aula era as funções do “se” E eu dei uma bacaníssima aula. Eu sabia aquilo demais, era até um exagero o que eu sabia. Eu estudava muito. Naquela altura eu já sabia toda a réplica e a tréplica de Ruy, os serões gramaticais de Ernesto Carneiro Ribeiro, o diabo!
JP: E o Dr. Aluisio?
PF: Assistiu a aula toda e depois mandou me chamar ao seu gabinete e me disse: “Paulo, olha aqui, – sua expressão favorita – sua aula foi extraordinária, mas você não acha que foi muito o que você deu?” E eu disse a ele que é ensinando muito que a gente pode cobrar do estudante; eles me entenderam e para mim este é o problema fundamental. Aí ele ficou em absoluta paz com relação ao meu trabalho. Em última análise, para fechar essa pergunta, eu constatei pela própria experiência que a frase “Ninguém nasce feito” não é apenas retórica e até que eu acho que a boa pedagogia é a que você se assuma fazendo-se permanentemente, para que você se faça bem. No fundo, eu fui me tornando professor, processo em que eu me acho ainda hoje.
JP: Esta sua faceta, como professor de Português, não é muito conhecida, como você enveredou para a Pedagogia?
PF: Houve um momento na minha vida em que eu era conhecido na roda dos professores e também dos Colégios como um dos bons professores de língua portuguesa.
Houve um outro momento da minha vida quando, deixando o Magistério, eu tive o convite para trabalhar no Serviço social da Indústria, o SESI, recém-criado pela Confederação Nacional da Indústria e instituído por decreto presidencial, num momento político que revela uma certa posição crítica das chamadas forças produtoras, das classes dominantes brasileiras, empresariais. Eu tenho quase certeza de que em certo momento dos anos 40, a classe dominante do Centro-sul, preponderantemente de São Paulo, anteviu que o processo de presença popular na história política brasileira, a classe operária de São Paulo, seguindo o exemplo dos anos 20 (com a chegada dos italianos radicais) deu um baita impulso à consciência operária brasileira.
É como se a classe dominante dissesse naquele momento: “é preciso fazer o possível para continuar ocultando certas verdades”. O SESI, o SESC, o SENAI e o SENAC nasceram com essa tarefa, de dourar a pílula, de fazer uma assistência que se estendesse ao assistencialismo e com o qual se faria política, mas política da classe dominante.
Eu até que digo isso sem nenhum medo de estar cometendo uma injustiça.
A análise correta pra mim é essa. Veja que coisa maravilhosa. Eu fui convidado para trabalhar neste recém-fundado SESI de Pernambuco e foi exatamente a minha prática dentro do SESI que me radicalizou.
JP: Você era um agente de ocultação…
PF: Eu nunca fui um agente da ocultação e me antecipei como desocultador. Agora, no texto que estou escrevendo, em que retomo a Pedagogia do Oprimido eu faço uma incursão à minha passagem pelo SESI e sigo que se bem que ela sozinha não explique a Pedagogia do Oprimido, sem ela, porém, eu não posso explicar. Esta passagem foi e é um dado fundamental que me explica como educador progressista, hoje.
JP: Quer dizer que, mesmo servindo aparentemente à classe dominante, você pôde realizar um trabalho de conscientização nos filhos da classe operária…
PF: Por aí você vê como estavam equivocados e continuam alguns, espero em menor número, os sectários de esquerda que afirmavam, por exemplo, que aceitar um simples convite para ir a uma universidade dos Estados Unidos era vender-se ao imperialismo e que esse fato, por si só, significava um atraso ideológico, político. Isso não revela cientificidade nenhuma, revela nenhuma compreensão crítica da História, me dá mais pena do que raiva.
JP: E os empresários paulistas, a FIESP, como está hoje?
PF: Naquela época, os empresários eram uma elite de intelectuais, como o Roberto Simonsen, pai do Mario Henrique, que era um homem inteligente, grande economista, que foram para mim muito mais clarividentes do que alguns reflexos daquela geração, como o Amato. Quando você lê o que diz o Amato hoje, não tem nada a ver com a clarividência que tinha o Simonsen, por exemplo. Eu acho que houve um certo retrocesso na classe dominante.
JP: Mais selvagem…
PF: Mais dominante, mais selvagem.
JP: Conte mais sobre a “contribuição” do SESI na sua formação.
PF: No SESI eu aprendi a estabelecer uma certa comunicação com a classe trabalhadora, urbana e rural. O SESI me deu essa chance. E foi a partir do SESI que eu passei a dar saltos dentro do próprio município e cada vez mais eu comecei a ser chamado para discutir termos pedagógicos. Então eu fui tornando um pedagogo também, um cara que pensava a prática educativa e que por isso mesmo propunha uma certa teoria dessa prática. Eu estou escrevendo muito sobre isso, agora, preciso até me conter.
JP: Conte um pouco da sua experiência com adultos, as reuniões de Pais e Mestres enquanto Diretor da Divisão de Ensino do SESI.
PF: Na Divisão de Educação aprendi as técnicas diferentes de ter encontro com grupos de adultos, aprendi, retifiquei os erros que eu cometi através das críticas que os operários me faziam, começando pelas coisas mais tradicionais até chegar a uma coisa que, eu acho, nunca foi feita em termos de prática na Escola que a gente chamava naquela época, pomposamente, de Círculos de Pais e Mestres e que eu amenizei, chamando de Pais e Professores.
Comecei a fazer Círculos, reuniões programadas e conseguia frequência enorme. Discutia antes com os professores a problemática fundamental que eles viam naquela Escola, escolhíamos uma temática parcial, porque caberá à família dar a outra parte. A primeira eu fiz. Daí em diante, terminava uma reunião fazia-se a temática da próxima, o que eu chamava de “carta temário”. Os professores tinham um seminário comigo sobre o tema que ia ser discutido na próxima reunião, faziam um seminário com os alunos, que eram os primeiros a convocar os pais, para que não perdessem a reunião. Na “carta temário” eu desafiava os pais para que eles discutissem com só companheiros de rua, com os vizinhos. Eles precisavam trazer para o Círculo não a opinião deles, mas da rua toda, do bairro, se possível. Resultado: passamos a ter 95% de frequência.
JP: Isso acontecia em uma Escola?
PF: Não. Eram vinte e tantas Escolas do SESI.
JP: O interessante é que o SESI lhe dava espaço, apesar da ideologia…
PF: Sim, eu tive todo espaço para desocultar, apesar da ideologia ser ocultadora.
JP: Você aproveitou a estrutura dos capitalistas para fazer exatamente o contrário da ideologia do capitalismo…
PF: Claro, para fazer um trabalho democrático.
JP: Houve algum episódio nesses Círculos de Pais e Professores que você gostaria de contar?
PF: Nunca vou esquecer de uma coisa que está dito em inglês, porque eu contei isso nos Estados Unidos e saiu publicado. Um círculo de Pais e Professores em que o tema geral que afligia os pais e as famílias era o da disciplina na família, na Escola: o prêmio do castigo. Eu tinha feito uma pesquisa no SESI, com 1.500 famílias e tinha encontrado um resultado trágico: a preponderância era de castigos físicos e violentos. Crianças amarradas com cordas, meninos que apanhavam surras. A única área em que o castigo sumia e caía na licenciosidade mais absoluta era a área praieira. Nesta zona, de pescadores, a relação pai – autoridade – liberdade era de total permissividade. Eu tinha um resultado diante de mim que era absolutamente negativo dos dois lados.
Para discutir o problema do castigo, do prêmio, na relação autoridade-liberdade eu resolvi falar um pouco sobre o código moral da criança, mostrar que ele não tinha nada a ver com o código moral do adulto e que a permissão e a premiação passam pelo código moral. Ou passam aceitados ou passam rejeitados, mas passam sempre.
Para explicar essa coisa eu baseio todo, já naquela épica, em Piaget.
JP: Você pensava que eles entenderiam Piaget?
PF: Eu teria que fazer a tradução, adequar o discurso cientifico de Piaget ao discurso concreto da classe trabalhadora. Ou eu era competente para fazer isso ou o meu discurso não seria inteligível. Na época eu não era capaz de fazer isso. Eu não entendia como é que não me entendiam. Era tão claro para mim.
JP: E como é que você aprendeu isso?
PF: Com exemplos. Não foi invencionice da minha cabeça. Eu precisei descobrir que estava errado. Então, neste tal, dia, em que eu falei de como alcançar a criança, disse que um dos caminhos era exatamente o diálogo com a criança. Quando eu acabei, um sujeito se levanta de lá e diz: “Nós acabamos de ouvir o Dr. Paulo que falou uma fala realmente muito bonita. Agora eu queria dizer umas coisas ao doutor que eu acho que meus companheiros todos concordam”.
JP: Era um dos pais?
PF: Sim, um dos pais, um sujeito de cara forte mas mansa. Um cara de sabedoria, que falava com uma certa condescendência, expressava uma certa pena de mim. Ele olhou para mim e disse simplesmente: “doutor, o senhor sabe onde a gente mora?” E descreveu, afinal, a geografia da casa dele, a história e a cultua da casa dele. As necessidades dele, da mulher, dos filhos, as pressões para sobreviver, tudo isso. A dor, o cansaço. Chegar em casa de noite, morto de fome e cansaço e tendo que acordar no outro dia, às 4 horas da manhã, portanto tendo que dormir.
E os meninos, endiabrados, diabólicos, fazendo o maior barulho do mundo. “Numa situação como essa doutor, o pai bate e não dialoga. Mas não é porque ele não ama. É porque não pode amar como o senhor pode”. E prosseguiu: “Eu vou dizer ao senhor como é a sua casa, eu nunca fui lá, mas vou descrever” E descreveu, perfeitamente, a minha casa.
JP: Quer dizer que nós temos um país com esperança, ainda. Um homem do povo criticar… Ainda são possíveis as reformas de base…
PF: Exatamente, que beleza! Eu vivi estes momentos de esperança, lindos. Que consciência de classe tinha esse homem, sem nunca ter lido Marx nem Engels. Como, a partir do conhecimento da geografia da casa, ele induzia a vida. Ele sabia os conhecimentos que você tinha e, inclusive, a forma errada de conhecer.
Hoje, sem saber seu nome ou se vivo está, ainda, não creio, rendo através do jornal de um Sindicato de Trabalhadores, a minha homenagem e o meu agradecimento a esse homem. Ele foi o meu grande pedagogo!
JP: Naquela noite, qual foi a sua reação?
PF: Eu confesso a você que naquela noite fui afundando na cadeira. Se houvesse possibilidade, eu me esconderia. Às vezes me dá gana de ir lá, ver se ainda existe, perder a humildade e botar uma placa: “AQUI PAULO FREIRE APRENDEU QUE NÃO É POSSÍVEL FAZER O SEU DISCURSO PARA O POVO, QUE É PRECISO PRIMEIRO APRENDER A COMPREENSÃO DO MUNDO QUE O POVO ESTÁ TENDO, PARA DEPOIS FALARMOS NA SUA INTELIGÊNCIA”. Dá vontade de fazer isso, mas seria arrogante demais.
JP: E o que ficou deste aprendizado na sua formação, nas suas obras?
PF: Foram essas coisas todas que me trouxeram mais tarde, como pedagogo, a fazer afirmações como esta, por exemplo e até hoje, nem todo mundo me entendeu: “O ponto de partida de um projeto educacional está na identidade cultural dos educandos e não na dos educadores. Está na compreensão do mundo dos educandos. Está na sabedoria de que os educandos estão molhados, ensopados. Não importa que seja saber de experiência feita, portanto, senso comum. Ninguém supera o senso comum a não ser partindo deste nada. Eu não posso superar o senso comum a partir do meu senso rigoroso. Eu tenho primeiro que assumir a ingenuidade do educando, me papar dela também, depois, dar o braço ao educando e partir para superá-la. Isto não se faz! A escola admite que o aluno é tábua rasa para ela. Não traz nada do mundo e depois que vem para ela continua não recebendo nada do mundo. Só o que a Escola dá. Esta Escola não pode prestar, tem que fechá-la”.
JP: Na história das suas reflexões, das que vão poder dar o salto, o reposicionamento, tem sempre o momento do diálogo com alguém qualificado que ajuda este processo…
PF: Ah, sim. Eu tinha com quem conversar, trocar ideias. EM primeiro lugar, eu batia os papos com a Elza, minha primeira mulher, educadora também, a quem eu devo muito, porque é difícil você viver 42 anos sem dever a ela e ela a você. Se não é cínico, é louco! Em segundo lugar, eu tinha dois os três amigos com quem trocava ideia, na acepção correta. O Paulo Rosas era um deles. Além disso, eu recorria a leituras que abriam caminho para mim da compreensão da formação social brasileira, profundamente autoritária. Depois, leituras que me ajudaram a descobrir como essa ideologia autoritária se reproduzia e como ela se manifestava em comportamentos diante dos quais eu estava vivendo.
JP: No seu método de descoberta é interessante como a ideia vem antes da prática; como a gramática e o fascínio por ela o levam a dar aula. É interessante como é que não é o movimento social que o mobiliza, de início…
PF: Eu acho que o que houve comigo é o que há contigo e com todo mundo. Houve u movimento dialético. Em certos casos foi a minha ideia, a abstração que me moveu, em outras, não. Mas sempre a pratica testou isso. Quem me fez sair do discurso de Piaget para discutir Piaget com eles, a partir da concretude deles, foram eles e foi a minha prática de fazer um discurso sobre Piaget que me ensinou que estava errado.
JP: Guimarães Rosa, através de um personagem, diz a certa altura: “Toda ação principia mesmo é por uma palavra pensada”. Durante décadas se trabalhou com a ideia de que a classe operária seria a vanguarda das transformações. Nestes momentos os trabalhadores passam por um momento muito complexo. Afinal, quem é a vanguarda das transformações? Será o povo, a classe trabalhadora ou a intelectualidade que não vive as mesmas condições de necessidade?
PF: A prática do oprimido para superar a realidade opressora começou na palavra pensada, que é exatamente o discurso antecipador do oprimido, da história. Enquanto a classe trabalhadora não tiver a possibilidade de teorizar o próprio discurso, somos nós, os chamados intelectuais, os progressistas que temos que fazer isso, indiscutivelmente. Mas ao fazermos isso não nos tornamos, necessariamente, vanguardas ou donos ou senhores do processo. Isso é o que muito de nós fizemos, como intelectuais que pensávamos possuir a verdade revolucionária, que havia sido cientificamente proclamada, mas não necessariamente realizada.
JP: Mesmo depois dos acontecimentos no Leste Europeu?
PF: Para mim, depois de tudo isso que ocorreu no Leste Europeu, eu não vejo porque me desiludir da utopia socialista. Eu acho que a na história, pela primeira vez, a gente está diante de uma possibilidade, ao reconhecer que a experiência anterior do socialismo nasceu equivocada porque se deu toda ela metida numa moldura autoritária.
O que não prestou na experiência do Leste Europeu não foi o socialismo, não. Foi a moldura autoritária dentro da qual o socialismo se extraviou. Assim como o que presta no Ocidente não é o capitalismo, não. É a moldura democrática da qual o capitalismo se serviu. O que a gente precisa hoje é motivar-se por uma outra luta, ainda pelo socialismo, mas arrebentando as molduras autoritárias em que foi metido e arrebentando a moldura democrática que está cobrindo e encobrindo o capitalismo para superar, mesmo agora, o capitalismo. Do ponto de vista da compreensão histórica, eu nunca estive tão otimista. Eu nunca percebi um momento tão importante para a prática pedagógica quanto este.
JP: Uma volta aos anos 60?
PF: Não voltando ao pedagogismo dos anos 60, em que se pensou que a prática educativa, sozinha, faria a revolução. Mas agora reconhecendo os limites da prática do capitalismo e descobrindo a força da educação, que está na fraqueza dela.
O que a gente tem a fazer hoje é instalar-se num otimismo crítico, de que a prática educativa – que se sirva no sentido de desocultação das verdades – é absolutamente indispensável à mudança do mundo.
JP: O que leva um jovem, hoje a querer ser professor? O que seria hoje o trabalho do professor no quadro da desesperança em que o indivíduo já não influi. O que motivaria um professor a dar aula?
PF: A boniteza do momento de dar independente. Ela faz parte da natureza do ser da prática educativa. Por isso que eu acho tão importante que o educador se assuma fazendo boniteza. No fundo, as quatro dimensões da natureza da prática educativa são: a gnoseológica, a estética, a ética e a política. A prática educativa fecha essas quatro dimensões. Como educador, o professor faz política, então ele tem de se assumir politicamente. Para saber que ele tem um sonho que é político. Qual é a utopia dele? Que modelo da sociedade ele gostaria de provocar, de produzir com outros? Neste momento, independente do salário, o professor descobre mais boniteza ainda na sua prática.
O Professor, também, tem que mudar a postura. Se é coerente e progressista, o Professor tem que saber que não pode mediar nenhuma atitude dominante. Ele é refazedor do feito. Propor ao aluno que re-saiba o sabido, que reconheça o conhecido, que reproduza o produzido. Isso é produzir postura crítica no educando. Isso só o sujeito faz. E quanto mais você faz, mais se capacita para trabalhar a transformação utópica da sociedade.
Chamar o aluno a assumir-se enquanto conhecedor, não como recipiente do conhecimento que se transfere. É assim que ele vai aprender. O que libertará o menino operário, se ele entrar num processo de luta política é a consciência de que pode conhecer pode fazer História.
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