“Há risco real de que a Justiça do Trabalho seja extinta por inanição”
Juíza do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT-4) e presidente da Associação dos Juízes pela Democracia (AJD), Valdete Souto Severo tem sido uma voz incansável na denúncia do desmantelamento de direitos que atinge trabalhadores e trabalhadoras em nosso país. Um projeto que se intensifica desde o impeachment de Dilma Rousseff, e toma uma face especialmente cruel no Brasil de Jair Bolsonaro – um governo que age no sentido de potencializar os horrores da pandemia, ao invés de detê-la, e assiste impassível enquanto a classe trabalhadora mergulha na fome e no adoecimento.
Entre outras represálias, sua postura fez com que fosse alvo de pedido de providências pelo corregedor geral de Justiça, Humberto Martins. A alegação era de que o artigo “Por que é possível falar em política genocida no Brasil de 2020”, publicado no Democracia e Mundo do Trabalho em Debate – DMT, poderia caracterizar “infração aos deveres dos magistrados”. Seja como for, o silêncio não é opção em tempos terríveis como o que vivemos – e a disposição, tanto da juíza quanto do próprio DMT, é de seguir usando sua voz para se erguer contra todas as ações que coloquem em risco a subsistência, a saúde e a vida de trabalhadores e trabalhadoras.
Em conversa com o DMT, Valdete Souto Severo fala sobre o ataque sistemático contra a estrutura de proteção do trabalho no Brasil, expondo a relação desse desmanche com a fragilidade que vivemos nesses tempos de pandemia. Outros temas, como a situação dos sindicatos e a precarização disparada pelo uso indiscriminado das novas tecnologias no mundo do trabalho, igualmente surgem durante a conversa. O Judiciário, em especial a Justiça do Trabalho, também é questionado em seus caminhos – uma trilha de afastamento das necessidades da classe trabalhadora que, em última análise, pode levar todo esse ramo da Justiça à obsolescência e ao desaparecimento.
DMT – Queria começar falando sobre o presente, mas mencionando situações que tornaram possível esse presente que estamos vivendo. Desde a dita reforma trabalhista de 2017, testemunhamos um processo de desconstrução da estrutura de proteção aos trabalhadores até então vigente no Brasil. De que forma isso acabou potencializando os efeitos da pandemia, e da crise econômica ampliada por esta, sobre a classe trabalhadora brasileira? O quanto a situação é, hoje, pior do que poderia ser, em decorrência direta dessas decisões?
Valdete Souto Severo – Tenho convicção de que o caminho que nos trouxe até aqui tem tudo a ver com a situação que estamos vivendo hoje. Acho que podemos inclusive retornar um pouco mais, fazer o recorte a partir da Constituição de 1988, porque vamos perceber que, na sequência, temos duas transformações muito simbólicas no mundo do trabalho: a lei do banco de horas (Lei n° 9.601, de 1998), que elimina o direito à hora extra e cria uma fórmula mágica para os empregadores explorarem o trabalho sem limites, e a súmula 331 (de 1994), do próprio Poder Judiciário, que viabiliza a terceirização e também abre uma porta que nunca mais se fechou. Ali começa um processo, claro que lento e pontual, com várias legislações que vão criando fissuras na ideia de proteção que constitui o Direito do Trabalho. Evidentemente, quando temos a ruptura democrática com o golpe que tira a presidente Dilma Rousseff do poder, isso permite a colocação efetiva na mesa de uma agenda de desmanche muito mais profunda, muito mais estrutural. Aí vem a dita reforma trabalhista, mas também somada à reforma da previdência, ao teto de gastos etc. Desta forma, a gente chega a 2019 com um quadro de classe trabalhadora pauperizada, superando os 13 milhões de pessoas desempregadas, subempregadas ou desalentadas.
E a gente não pode esquecer que a reforma trabalhista incide inclusive sobre a possibilidade de se manter saudável, com a facilitação da despedida mas, especialmente, com os trabalhos precários, intermitentes e a permissão do aumento da jornada. A reforma trabalhista dá um salto enorme na direção de permitir a exploração do trabalho por mais horas por dia, admitindo acordo individual de 12 horas, sem intervalo e com hora extra. Então, quando chegamos em 2019, já temos um quadro significativo de pessoas que estão trabalhando muito e ganhando pouco. Isso sem falar no estímulo, que vem desde a década de 1990 pelo menos, para o falso empreendedorismo, fazendo com que as pessoas acreditem que é muito melhor ser empreendedor de si mesmo do que ter direitos trabalhistas. Todo esse quadro faz com que, em 2020, a pandemia já encontre um país profundamente precarizado. E os efeitos estão sendo vistos agora.
Acho muito importante a gente ressaltar isso. É fato que muito do quadro que a gente vivencia hoje, com alto número de mortes, tem muito a ver com a gestão política que temos hoje: uma política que estimula a aglomeração, não faz campanha pelo uso de máscaras, negou a compra de vacinas quando deveria ter feito. Mas acho que precisa agregar nesse quadro que, se estamos com mais de 400 mil pessoas mortas, é também por causa desse desmanche que foi feito e que deixou as pessoas muito expostas ao adoecimento, trabalhando muito e ganhando pouco, e portanto morando mal, se alimentando mal.
DMT – Há um discurso, presente em diferentes esferas de poder, de que é preciso cuidar da economia e da saúde ao mesmo tempo. Essa coisa de que a necessidade de se proteger da pandemia não pode resultar na interrupção do trabalho, de que é preciso manter a rotina com o máximo possível de normalidade. Por que é tão difícil tomar a decisão de parar de trabalhar em uma situação tão extrema? Por que é tão inconcebível, em termos decisórios e de opinião pública, que trabalhadores e trabalhadoras fiquem em casa cuidando da própria saúde?
Valdete Souto Severo – É como você diz, parece que, para nosso campo político, se apresenta como inconcebível fazer um isolamento efetivo, um lockdown. E veja que essa dificuldade está nas três esferas de poder. Mesmo quando o governador aqui do Rio Grande do Sul, por exemplo, anuncia algumas medidas, elas são paliativas, insuficientes, e logo se recua nelas.
Me parece que isso se dá porque há um deslocamento do problema, no âmbito do discurso. Se diz que as pessoas não conseguem ficar em casa porque elas precisam trabalhar para sobreviver, contudo, isso só é verdade porque o governo não dá nenhuma alternativa. Ou seja, é uma meia verdade: se o governo brasileiro oferecer uma renda decente, como até os Estados Unidos começaram a fazer com Biden, as pessoas ficam em casa. O problema não é que as pessoas precisam muito expor os corpos e morrer de Covid-19, não é isso: a questão é que as pessoas precisam comer, precisam alimentar os filhos, precisam pagar o aluguel, as contas não param de surgir. E o que o governo dá como alternativa? Mesmo esses governadores e prefeitos que adotam algumas medidas de restrição o fazem sem qualquer tipo de apoio financeiro para essas famílias. Se você tem uma sociedade precarizada, na qual as pessoas trabalham para ter o que comer no dia seguinte – e aí está a consequência da reforma e do desmanche que foi feito até aqui – as pessoas não acumulam renda, elas gastam tudo que recebem com a própria sobrevivência, com despesa ordinária. Parar de receber durante um mês, ou ter o salário reduzido, é condenar essas pessoas à fome, a suportarem privações, o que gera sofrimento e, em consequência, adoecimento.
DMT – E as pessoas que precisam trabalhar para se sustentar não vão querer isso. Portanto, se expõem.
Valdete Souto Severo – Em um pensamento imediato, de curto prazo, a população brasileira que resiste ao lockdown não está equivocada, porque ela está pensando na sobrevivência imediata. Não há nenhum respaldo para que essas pessoas possam ficar em casa e se alimentar de maneira decente, sem ter que se preocupar em ficar sem teto ou morrer de fome. Não há discussão sobre renda decente – aliás, nem a esquerda consegue pautar essa discussão de forma adequada. Ficam dizendo que conseguiram aumentar para R$ 600,00, e deveriam ter vergonha de dizer isso, porque R$ 600,00 não é renda decente. Como as pessoas vão ficar em casa? No último decreto, pelo escalonamento, há pessoas recebendo R$ 175,00, pensa só. O que se faz com R$ 175,00, quando a cesta básica, no Rio Grande do Sul, já está batendo nos R$ 800,00? É muito difícil fazer essa afirmação que farei agora, mas, em certo sentido, é quase pior (do que não receber nada). Porque causa a impressão de que esse governo está fazendo alguma coisa quando, na verdade, está condenando as pessoas a passar por privações. E isso adoece.
E aí isso se alia à ausência completa de uma campanha de conscientização, para mostrar às pessoas por que é tão importante tomar cuidados e se isolar. Há pouco saiu uma campanha da mídia para mostrar a necessidade de usar máscara e tomar vacina, mas eles não falam em isolamento social, porque não interessa a determinados setores da sociedade que a economia pare. Mas mesmo por essa perspectiva é um argumento burro, porque se as pessoas adoecerem, o efeito social disso em termos de sistema previdenciário, de sistema de saúde e de circulação de riquezas – porque corpos adoentados não compram, não vão ao shopping – é muito mais nocivo para a economia. Então, mesmo em uma perspectiva exclusivamente econômica, mesmo se quiser usar essa lógica desumana e absurda que aparece nos discursos do (ministro da Economia, Paulo) Guedes, mesmo assim é um equívoco tremendo não apostar em isolamento social com concessão de renda, porque esse apoio do governo faria com que as pessoas consumissem, que houvesse circulação de dinheiro. Porque é isso que as pessoas fazem, é isso que elas fizeram ano passado com o auxílio emergencial: elas compram comida, elas pagam contas, e esse dinheiro circula, a economia se movimenta. Por isso que tantas pessoas falam em uma lógica suicida, ou o (filósofo e escritor Vladimir) Safatle já fala em estado suicidário: porque é uma lógica que não se sustenta por lado nenhum, nem mesmo na perspectiva econômica mais desumana.
DMT – Tivemos evidências disso em algumas reaberturas recentes de comércio, por exemplo. Os shoppings, mesmo abertos, ficaram quase às moscas. O medo de pegar uma doença mortal, ou a falta de dinheiro, parecem estar falando mais alto.
Valdete Souto Severo – Isso. E todo mundo está perdendo pessoas próximas. É muito difícil conversar com alguém, hoje, que não tenha sofrido a perda de alguém mais próximo, de alguém da família ou do círculo de convivência. As pessoas estão sentindo como é dramático o que estamos vivendo, e antes parecia algo um pouco mais distante. Não adianta querer que o comércio siga funcionando enquanto as pessoas estão passando por esse luto, essa coisa horrorosa.
DMT – Levando em conta esse cenário todo de que estamos falando, qual tem sido o papel do Judiciário? Afinal, a Justiça do Trabalho tem um papel importante para diminuir esse impacto sobre a classe trabalhadora. De que modo essa instituição tem se portado nesse cenário de crise – não apenas na questão das ditas reformas, mas neste momento de desespero atual?
Valdete Souto Severo – Acho essa pergunta bem importante, porque, como a sociedade vem sofrendo uma grande violência, um verdadeiro assédio diário de quem ocupa o cargo de presidente por meio de falas, gestos e omissões, a tendência é que esse raciocínio se concentre no que ele tem feito de errado e no quanto o governo federal tem contribuído para essas mortes. E isso é real, mas não é isolado. Lembrar da responsabilidade do Poder Judiciário e do próprio parlamento, aprovando reforma administrativa ao invés de votar uma renda emergencial minimamente razoável, é fundamental. E o Poder Judiciário tem, sim, papel nessa história. Inclusive o Poder Judiciário trabalhista que, especialmente nas últimas décadas, tem se revelado um instrumento de veiculação dos interesses da burguesia. No próprio exemplo da terceirização, o que temos é a Justiça do Trabalho abrindo as portas para uma perversão, viabilizando e estimulando essa prática. O Poder Judiciário, que poderia efetivamente exercer a função de contrabalançar essa forma como o governo vem lidando com as questões sociais e, mais recentemente, com a tragédia da pandemia de Covid-19, não tem feito isso. É muito impressionante para mim que, durante uma pandemia, se discuta redução de salário, quando se sabe que o salário é uma condição fundamental para que as pessoas se alimentem com decência e, a partir disso, não adoeçam. Diminuir salário é completamente contrário à lógica de proteção social que deveria ser seguida com ainda mais atenção durante uma pandemia. O STF acaba chancelando isso, e aquilo que eu disse antes, de que é preciso ter atenção no que nos trouxe até aqui, também passa pelo Judiciário.
DMT – A reforma trabalhista de 2017, entre outros efeitos, acabou causando séria fragilização dos sindicatos, na medida em que cortou possibilidades de financiamento e limitou a possibilidade da classe trabalhadora buscar auxílio nessas entidades. Como você vê essa questão?
Valdete Souto Severo – São duas questões muito importantes que surgem aí. Primeiro, a incompreensão do próprio empresariado, que produz no Brasil e, portanto, depende do consumo de brasileiros e brasileiras, sobre a importância da circulação da renda. Eu acho que é fundamental se dar conta, nesse aspecto, do poder que a ideologia tem. Há todo um discurso de que a economia não pode parar, que o comércio deve seguir funcionando, e não há espaço para discutir com um pouco mais de profundidade a importância de que as pessoas estejam alimentadas, saudáveis e com renda para que elas possam ter alguma condição de consumo. Porque essa lógica que se instaurou no Brasil, em especial a partir da segunda metade desta década, de pauperização completa de quem se sustenta por meio do seu trabalho, serve ao capital financeiro, mas é completamente destrutiva para um capital industrial, comercial, que seja baseado em produção e consumo, porque elimina consumidores e, em consequência, elimina circulação de dinheiro no mercado. E me parece que isso tem muito a ver com a nossa história, com a nossa posição histórica como país periférico, como colônia de outros países. A gente não nasceu sob a lógica de construir uma nova nação, mas de explorar tudo que fosse possível e exportar essa riqueza para fora. Então, a nossa elite, os nossos empresários que realmente produzem para o mercado interno, acabam adotando um discurso que não os serve, que vai contra os interesses deles. Se mostram subservientes ao capital financeiro exploratório, para o qual ter ou não ter circulação interna de renda não faz a menor diferença.
Quanto aos sindicatos, acho que é importante a gente se dar conta de que, sim, a reforma trabalhista é extremamente violenta com essas entidades, mas já havia um movimento de cooptação e de acomodação da força coletiva da classe trabalhadora em governos anteriores, em governos supostamente alinhados com os interesses da classe trabalhadora. Uma assimilação que pode ser traduzida, por exemplo, pelo movimento que se deu nos anos 1990 no ABC paulista, do negociado sobre o legislado. Havia até um projeto de lei em torno do dito Acordo com Propósito Específico, que era uma iniciativa da própria CUT no sentido de abrir caminho para uma negociação em termos inferiores aos patamares legais. Se acreditava que a categoria tinha força para isso, o que era um equívoco tremendo porque, na verdade, o sindicato negociar para melhorar as condições de vida da classe que representa está na gênese, na alma do sindicato, e para isso não precisa de lei nenhuma colocando o negociado acima do legislado. Enfim, acho que existe esse elemento, que é a própria classe trabalhadora organizada em sindicatos assimilando pautas que são contra os seus próprios interesses, sem perceber isso.
Mais tarde temos, durante os governos petistas, uma acomodação dos principais líderes sindicais, que são trazidos para dentro do governo e acabam assumindo uma posição, até certo ponto, de aliados, deixando de lado a reinvidicação de questões que são centrais. Porque a gente não pode deixar de pontuar que tivemos 13 anos de governo alinhado à classe trabalhadora que não promoveu mudanças que eram absolutamente necessárias: não fez reforma agrária, não taxou grandes fortunas, não tirou dinheiro das grandes mídias corporativas, que são as mesmas que defendem interesses específicos e que silenciam sobre questões sociais, apostou no ensino pago e deixou o ensino público em desamparo. E vamos lembrar das jornadas de 2013, de como a reação do governo foi super violenta contra os movimentos que ousaram sair às ruas naquele momento – e não tinha ocorrido golpe algum, não era um governo de direita, conservador e fascista como temos agora. Claro que isso não explica tudo, muito menos compromete a importância do movimento sindical. Mas, na minha visão, houve uma acomodação e, quando a reação do governo foi a mesma que sempre sofrem os movimentos sociais, de violência e agressão, o sindicalismo meio que silenciou, não conseguiu reagir à altura, o que inclusive gerou um distanciamento entre os movimentos sociais e o movimento sindical clássico.
DMT – E então vem a reforma trabalhista de 2017.
Valdete Souto Severo – Ela chega e destrói, é um tsunami que atinge os sindicatos. É claro que tudo isso tem um efeito e, se a gente volta ao Judiciário, esse efeito acaba sendo imenso, porque a reforma não apenas asfixia os sindicatos, mas também permite uma vedação de acesso à Justiça do Trabalho muito violenta para a classe trabalhadora. Isso que a Justiça do Trabalho tem feito, de condenar testemunha a pagar multa, ou condenar quem é pobre a pagar honorários de advogado e custas, é uma violência tremenda, é uma vedação de acesso à Justiça absolutamente inconstitucional. Porque, no caso concreto, é uma punição a quem busca a ajuda do Estado e não tem outra opção senão recorrer ao Estado, e um recado terrível à sociedade, que faz com que as pessoas não queiram mais saber da Justiça do Trabalho. E nem se pode criticá-las por isso, porque se a Justiça do Trabalho vai servir apenas para punir ou prejudicar quem vai buscar seus direitos, não faz sentido sequer que ela exista. Então, a reforma trabalhista coloca a Justiça do Trabalho em um brete. Essa questão de honorários de sucumbência e custas processuais para quem é pobre acaba sendo muito pior na CLT do que o artigo 98 do Código de Processo Civil. Acaba se criando uma situação real para que a Justiça do Trabalho seja extinta por inanição, que não haja necessidade sequer de uma emenda constitucional para dizer que ela não existe mais, porque a Justiça do Trabalho simplesmente não consegue justificar sua existência, agindo da forma que vem agindo em algumas decisões, destruindo direitos trabalhistas e punindo quem vai discuti-los.
DMT – Essa fragilização do arcabouço de proteção aos trabalhadores e trabalhadoras coincide com a chegada das tecnologias digitais ao mundo do trabalho. Essas questões em torno das plataformas, teletrabalho etc, são um desafio tanto para sindicatos quanto à Justiça do Trabalho. É perceptível que há uma dificuldade muito grande de se posicionar quanto a essas mudanças.
Valdete Souto Severo – Eu concordo, e digo que a questão da tecnologia, em si, não é um problema. Ela poderia e deveria estar sendo usada para reduzir jornada, permitir mais conforto na realização do trabalho. Mas o que a gente vê acontecer é algo que vem da década de 1990, daquele Documento Técnico 319 do Banco Mundial, que fala sobre reformas no Poder Judiciário da América Latina e Caribe. Naquele documento já está dito que o Judiciário deve ser informatizado e que isso deve vir no sentido da uniformização das respostas do Estado. A partir disso há um movimento de informatização do PJE (processo judicial eletrônico), em um país onde um terço da população não tem acesso à internet, em um país onde as audiências são feitas de barco em algumas cidades do Norte do Brasil.
Por que estou falando disso? Porque aquele movimento para informatizar o Judiciário do modo que foi feito, inclusive com o aporte de muito dinheiro para permitir a migração dos processos para o meio eletrônico, vem junto com uma lógica de metas e um assédio institucional sobre juízes e servidores que faz com que o próprio Judiciário vire refém da lógica empresarial de trabalho. Uma das consequências é que nós, como instituição, não nos vemos capazes de enxergar essas novas tecnologias como problema nas relações de trabalho em outros espaços, porque a própria Justiça foi informatizada e assediada.
Por exemplo, essa ideia de teletrabalho sem um limite de horário, que foi introduzida pela reforma, vem depois de termos um Judiciário no qual juízes e servidores já estão trabalhando em uma lógica de metas, em um processo eletrônico que já impôs o teletrabalho e já acabou com os limites de jornada de trabalho – porque o PJE aceita trabalho 24 horas por dia, sete dias por semana. Então, primeiro se coloca juízes e servidores em uma posição de escravos da tecnologia e das metas impostas pelo CNJ, e a partir disso, como o Judiciário vai enxergar as outras realidades? Vai olhar para o teletrabalhador ou teletrabalhadora que está em casa com os filhos, sem condição nenhuma – porque os juízes e servidores do Judiciário, bem ou mal, em função da sua condição de trabalho e de vida, conseguem estabelecer um ambiente minimamente adequado para trabalhar em casa durante a pandemia – e vai naturalizar uma situação de muita precariedade.
DMT – Em que situações essa precariedade tem se feito perceber com maior intensidade?
Valdete Souto Severo – Eu tenho feito audiência virtual apenas quando as duas partes pedem e dizem ter condições; se alguma delas não tem essa condição e eu entendo que pode ser um risco, não faço a audiência. Mas ontem fiz quatro instruções, e o que se verifica? Que aquelas pessoas a quem o nosso trabalho realmente serve, que são os trabalhadores, as testemunhas, os reclamantes etc, não têm condição de um acesso adequado à internet. Elas estão dentro de suas casas, expondo suas casas sem ter essa vontade, com dificuldade de ouvir, de entender e participar. Essa é a condição de trabalho delas, também, e que está contrária a tudo o que a Constituição diz que devemos preservar: a dignidade humana, o descanso, a separação do tempo de trabalho e o tempo de lazer. E isso é naturalizado porque, em primeiro lugar, essa violência foi estabelecida como regra no âmbito do próprio Poder Judiciário, anestesiando juízes e servidores e impedindo que eles percebam a crueldade que há nesse uso desvirtuado da tecnologia nos ambientes de trabalho.
Quando a gente pensa nos motoristas de aplicativo, por exemplo, é a mesma lógica. Há uma naturalização dessa modalidade de trabalho, de tal forma que o Judiciário tem dificuldade de enxergar o quanto temos aí um trabalhador profundamente subordinado, que não estabelece quase nada do trabalho dele e que está trabalhando muito mais horas por dia do que a Constituição permite, sem nenhum direito. Há uma dificuldade, ainda maior no Brasil do que em outros países, para o reconhecimento de vínculo desses sujeitos. E são essas pessoas as que estão mais expostas, transitando por aí enquanto o risco da pandemia está presente.
DMT – Poderíamos, então, dizer que a pandemia da Covid-19 acaba sendo uma aceleradora desses processos de precarização?
Valdete Souto Severo – A pandemia, por um lado, expõe essa precarização e, por outro, aprofunda os efeitos dela. Expõe porque a gente consegue perceber com muito mais nitidez, por exemplo, o cansaço dos profissionais de saúde e o quanto eles não são respeitados. Aí, o que a mídia faz é bater palmas para eles, ao invés de discutir com seriedade o fato de que eles estão trabalhando 12 horas ou mais sem intervalo. E, por outro lado, coloca essas pessoas – que trabalham com o cuidado, com limpeza, transporte etc – em uma exposição muito maior de sua saúde e, portanto, com uma sujeição ao adoecimento e à morte muito maior. Então, a pandemia cria esse abismo entre a classe média, que consegue estar em casa se protegendo, e as pessoas que estão sendo expostas à morte.
Isso surge, por exemplo, nesse abismo entre escolas públicas e escolas privadas, que acaba sendo um verdadeiro apartheid, porque há uma lógica de ensino privado que não consegue dialogar com a realidade completamente diferente que impera no ensino público. O que acho mais impressionante é que essas pessoas que brigam pela volta das escolas, porque estão dentro de uma possibilidade de acesso a um ensino privado que, em alguns casos, tem qualidade de primeiro mundo, não se dão conta de uma outra questão: o trânsito que se impõe a professores e funcionários de escola, e o consequente risco de adoecimentos. Tenho uma pessoa muito próxima a mim que estava defendendo que as escolas tinham que voltar, a escola do seu filho tinha condição etc. Está bem, mas e se o seu filho está brincando no intervalo com o amiguinho, sofre uma queda, bate a cabeça e precisa ir a um hospital? Ele não vai ter hospital para ir. Já pensou nisso? Você pode ter toda a estrutura do mundo na escola, e ainda assim não faz sentido, em uma pandemia, com o sistema de saúde colapsado, querer que seu filho se exponha.
Aliás, não tem como entender isso tudo sem pensar o Brasil historicamente. É uma lógica de origem escravista, as pessoas realmente não conseguem enxergar o outro como um igual. Isso é muito profundo, inclusive entre os chamados cidadãos de bem – eu detesto essa expressão, mas não há um termo que melhor defina nesse caso. São pessoas que se preocupam com a doença, com o adoecimento, que não são pessoas más ou perversas, mas não conseguem enxergar a pessoa que vive do trabalho como uma igual. Existem corpos que podem ser expostos (ao vírus) e outros que não podem. E aí é claro que, em uma situação como a pandemia, essa chaga se aprofunda, como se fosse uma ferida aberta, purgando, porque a pandemia nos força a se posicionar sobre essas coisas. Então, quando a gente ouve alguém dizer que as escolas podem voltar a funcionar porque a escola do filho é boa e pode protegê-lo, tem condições, o que estamos enxergando é essa lógica escravista sendo explicitada.
DMT – Queria encerrar voltando um pouco à questão do possível fim da Justiça do Trabalho, que a senhora mencionou durante nossa conversa. Quais seriam, em sua visão, os mecanismos capazes de evitar ou reverter esse processo de obsolescência, de esvaziamento de propósito da Justiça do Trabalho? Há margem para uma mudança de rota?
Valdete Souto Severo – Sim, sem dúvida há. Mas é um caminho que, hoje, se mostra muito complicado dentro de um Poder Judiciário trabalhista, em larga medida, alinhado com o interesse empresarial muito mais do que com a proteção dos trabalhadores e de uma advocacia trabalhista que eu não chamaria exatamente de pouco preparada, mas que sai de cursos técnicos que não dão valor ao Direito do Trabalho, e que muitas vezes acaba não tendo condições de fazer um enfrentamento, de propor teses, fazer um tensionamento que ao menos provoque esse Judiciário que já está acomodado. Mas acredito que é possível reverter, desde que a Justiça do Trabalho resgate aquilo que é a sua razão de existência. Gosto sempre de lembrar que a exposição de motivos no decreto que cria a Justiça do Trabalho, lá em 1939, diz que ela existe para conter perturbações sociais, porque é preciso um poder judiciário diferente e que garanta proteção social. Isso está escrito lá, a certidão de nascimento da Justiça do Trabalho diz isso. Então, o único caminho para mudar essa lógica é a Justiça do Trabalho compreender, e seus membros atuarem nesse sentido, que ela só existe para ser diferente da Justiça comum – e diferente especificamente no sentido de dar proteção a quem trabalha.
Como se faz isso? Aí depende de uma reformulação do ensino jurídico, de uma discussão muito séria acerca dos entendimentos que têm se fortalecido na Justiça do Trabalho de retirar ou fragilizar direitos trabalhistas, e de uma compreensão de que a chamada reforma trabalhista de 2017 deve ser revogada e não aplicada em nenhuma de suas regras. Claro que, se pegar o texto da dita reforma trabalhista, várias coisas colocadas na CLT por meio dela já vinham sendo aplicadas por entendimento jurisprudencial. Isso mostra que simplesmente revogar o texto da Lei 13.467 não é suficiente. A gente não chega ao ponto que chegou hoje, de uma Justiça do Trabalho tão deteriorada que condena trabalhador pobre a pagar honorários e que multa testemunhas sem processo, sem ter seguido uma caminhada até esse ponto. É preciso uma radicalidade de quem advoga na Justiça do Trabalho e de quem atua como juiz ou juíza na Justiça do Trabalho, no sentido de entender, por exemplo, que essa lei não dialoga com a razão de ser da Justiça do Trabalho, mas que surge justamente para criar essa fissura e fazer com que ela seja incapaz de justificar sua existência como órgão separado – o que, infelizmente, é o que está acontecendo.