Homem com H: O teatro vibrante da vida de Ney Matogrosso
Está em cartaz um filme que pulsa, que arde, que canta e dança com a mesma intensidade feroz de quem jamais aceitou viver à meia-luz. “Homem com H” não é apenas uma cinebiografia: é rito, é corpo em cena, é arte viva. É o retrato de um homem-bicho, multicor, que não cabe — e nunca coube — nos moldes alheios e tradicionais. Ney Matogrosso é pele, é voz única, é vertigem, é irreverência.
Filho de um pai que dizia com brutalidade: “não crio filho para ser artista”, Ney rompeu as correntes cedo. Não se calou, não se apagou, não se dobrou. Acendeu-se. Incendiou o palco da vida com sua presença desobediente e criativa. Atravessou a ditadura como quem atravessa o fogo, com brilho. Reinventou a beleza, reencenou o desejo, reescreveu o masculino.
Sob a direção exuberante e precisa de Esmir Filho, o filme é um banquete sensorial — uma obra que não apenas revela um artista, mas um ser humano inteiro. Ney se ofereceu por completo. Entregou-se à própria verdade com uma nudez que não é só de corpo, mas de alma.
No papel de Ney, Jesuíta Barbosa não interpretam, incorpora. Vai da infância ferida ao mito consagrado, guiando o espectador entre ternura e ferocidade. Ney é fera. É pluma. É purpurina. É liberdade encarnada.
O filme costura, com delicadeza visceral, os encontros e desencontros de sua jornada: o afeto tumultuado com Cazuza, aqui revelado não como ídolo intocável, mas como amigo e grande amor. E o vínculo profundo com Marco de Maria, companheiro por mais de uma década, cuja perda para o HIV deixa no filme a cicatriz trágica de quem ama intensamente e perde sem jamais deixar de ser inteiro.
E entre as imagens, irrompe a canção que dá nome ao filme não como trilha, mas como selo, como declaração de existência:
“Nunca vi rastro de cobra
Nem couro de lobisomem
Se correr o bicho pega
Se ficar o bicho come
Porque eu sou é homem
Porque eu sou é homem
Menina, eu sou é homem
Menina, eu sou é homem
E como sou!”
“Homem com H” é mais que música. É afirmação luminosa. É Ney dizendo ao mundo que existe — e que não pede licença para tanto. A canção que ele hesitou em cantar, hoje parece ter sido escrita para ele — e apenas para ele.
A estética do filme recusa a palidez: é vibrante, exuberante, delirante. Os figurinos são explosões visuais; os cenários, hipnotizantes. Tudo ali é presente. Tudo é intensidade. Não há espaço para o tom neutro, para o preto e branco das cinebiografias convencionais — essa é uma obra que brilha sem cessar.
E que música! São mais de quinze canções entrelaçadas à narrativa, conduzindo tempo e memória como só a música consegue: dizendo o que as palavras hesitam, rasgando o silêncio com a força do que se sente antes de se compreender. É trilha, é testemunho, é veia aberta.
O filme não suaviza. Não esconde cicatrizes. Celebra-as. Porque ser Ney Matogrosso é transitar entre a delicadeza e a selvageria, entre a fúria e o afeto. É quebrar regras, criar novas — e, se quiser, quebrá-las de novo. É ser fiel a si mesmo quando o mundo insiste em censurar.
Assista. Deixe-se atravessar.
“Homem com H” é cinema que vibra, que toca fundo, que exalta o Brasil e sua sétima arte — aquela que não só representa, que não só conta a história, mas encanta.
“Homem com H” é grito ancestral, é corpo pintado, é palco tomado de pertencimento e ousadia. É “Sangue Latino” derramado em tela — sobre nós.
É o Ney de ontem e de hoje, no auge dos seus 83 anos, ainda cantando, dançando, existindo em cena com coragem e muita energia. Colocando seu bloco na rua — pro dia nascer feliz.
Por Romênia Mariani





