Lei da Anistia é incompatível e deve ser revista, diz relator da ONU

Para Bernard Duhaime, atual interpretação da lei possibilitou a impunidade de agentes do Estado que cometeram graves violações na ditadura

O relator da Organização das Nações Unidas (ONU) para Promoção da Verdade, Justiça, Reparação e Garantias de Não Repetição, Bernard Duhaime, declarou, nesta segunda-feira (7), que a da Lei de Anistia de 1979 é incompatível com o ordenamento internacional de direitos humanos e sugeriu que a mesma fosse revista ainda neste ano como forma de corrigir a impunidade resultante de sua aplicação a agentes do Estado que torturaram e mataram durante a ditadura.

“Há vários problemas em relação à compatibilidade da Lei de Anistia com a legislação internacional de direitos humanos. Então, acho que, em 2025, seria importante revisitar esse assunto para garantir que a lei esteja de acordo com a lei internacional de direitos humanos”, afirmou.

A fala ocorreu durante coletiva de imprensa em que Duhaime abordou sua estadia no Brasil — iniciada no dia 30 de março —, período em ele visitou órgãos públicos e conversou com autoridades e representantes de movimentos a fim de avaliar as medidas tomadas nas áreas de verdade, justiça, reparação, memorialização e garantias de não repetição adotadas pelo país.

A visita resultou num relatório preliminar, que servirá de base ao documento final a ser apresentado ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas em setembro.

Obstáculos da Lei de Anistia

Conforme destaca o relatório preliminar de Duhaime, “embora a restituição de pessoas detidas arbitrariamente ao seu status antes da ditadura tenha sido um desenvolvimento positivo, essa disposição foi posteriormente interpretada por uma decisão de 2010 do Supremo Tribunal Federal (SFT) como também abrangendo o perdão por violações de direitos humanos atribuíveis a agentes do Estado, entendendo que eram ‘crimes relacionados’ a crimes políticos”.

Essa interpretação, apontou Duhaime, “abriu as portas para a impunidade de agentes do Estado que perpetraram graves violações de direitos humanos. Essa interpretação, que cria dois grupos opostos sujeitos ao perdão, tornou-se um dos obstáculos mais significativos à justiça de transição e à não repetição”.

Ele lembrou ainda que desde 2012 o Ministério Público Federal vem oferecendo denúncias contra ex-agentes da ditadura, totalizando 50 casos; no entanto, tendo como base essa interpretação da lei, os tribunais acaba rejeitando a continuidade dos processos.

Para além da dor e dos direitos dos familiares que têm sido majoritariamente vilipendiados, o relator também descreve as consequências da impunidade para o país, evocando os prejuízos causados à democracia e às instituições.

“A adoção da Lei de Anistia penetrou em todo o pilar da justiça no processo de justiça de transição do Brasil. Apesar de sua incompatibilidade com as obrigações internacionais e da incessante pressão nacional e internacional, a derrubada da Lei de Anistia encontrou resistência, particularmente de setores políticos militares e conservadores, e permanece evasiva. Como resultado, os autores de graves violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura não enfrentaram a justiça”.

Duhaime acrescenta que “a falta de consequências legais para os abusos do passado reforçou uma cultura de impunidade e estabeleceu condições para a repetição, permitindo que a retórica e práticas autoritárias ressurgissem no discurso político, como evidenciado na suposta tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023”.

O documento lembra que na falta de respostas em âmbito nacional sobre os desaparecimentos forçados, familiares das vítimas recorreram à Corte Internacional de Direitos Humanos, obtendo parecer favorável às suas demandas, como ocorreu nos casos Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia) de 2010 e na decisão sobre a morte de Vladimir Herzog, de 2018.

Por fim, o relator apela às autoridades brasileiras para que adotem medidas que garantam a compatibilidade da Lei de Anistia com o direito internacional dos direitos humanos, “em total conformidade com as sentenças vinculantes acima mencionadas da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Essas medidas devem remover obstáculos à acusação penal de todos os crimes internacionais cometidos durante a ditadura, incluindo crimes contra a humanidade”.

Ele salientou também o caráter contínuo desse tipo de crime, como justificativa para que possam, ainda hoje, gerar responsabilizações. “O processamento penal interno de atos de desaparecimentos forçados, conforme definido pelo direito internacional dos direitos humanos, não deve estar sujeito a prescrição, pois é um crime contínuo. A tipificação desse crime deve ser adequadamente integrada ao direito interno do Brasil”.

Reparação, verdade e memória

Além da justiça, outro tópico abordado no documento diz respeito à reparação às vítimas da ditadura. Nesse aspecto, o relator reconhece os esforços do país a partir dos trabalhos da Comissão Especial de Mortes e Desaparecidos Políticos (CEMDP), criada em 1995, e da Comissão de Anistia, estabelecida em 2002.

Por outro lado, Duhaime também ressalta as dificuldades enfrentadas durante o mandato de Jair Bolsonaro, que extinguiu a primeira e instrumentalizou a segunda, e pede atenção para a necessidade de enfrentar “desafios estruturais e administrativos” para que ambas as comissões sejam fortalecidas e tenham suas condições de trabalho asseguradas.

Outro ponto destacado foi a criação, em 2011, da Comissão Nacional da Verdade, que acabou influenciando o surgimento de colegiados de igual caráter em estados, municípios e instituições como universidades e sindicatos.

Ao final de seu trabalho, em 2014, o relatório da CNV indicou a existência de 191 mortes e 210 desaparecimentos cujos corpos nunca foram localizados, além de outros 33 localizados, totalizando 434 pessoas vítimas desse crime no período ditatorial.

A CNV também identificou 377 agentes estatais, dos quais 191 ainda estavam vivos no momento em que o relatório foi emitido, e reconheceu que cerca de 8,3 mil indígenas e mais de mil camponeses sofreram repressão do Estado naquele período.

Apesar desses avanços, o integrante da ONU observou que a maioria das recomendações feitas pela CNV “nunca foi implementada” e chamou atenção para a necessidade de abertura dos arquivos da ditadura.

Nesse sentido, apelou às autoridades que “estabeleçam mecanismos de busca da verdade para enfrentar plenamente a violência maciça do Estado cometida durante a ditadura contra todos os setores da população, independentemente das atividades políticas das vítimas ou do motivo político do Estado para a violação de seus direitos. É de extrema urgência que as autoridades providenciam acesso irrestrito aos arquivos do Exército e das Forças Armadas”.

O documento também reconhece passos importantes na questão da memória, com a realização de reconhecimento e publicações sobre lugares relacionados às violações dos direitos humanos que devem ser mantidos como locais de conscientização sobre os crimes ocorridos, renovação de ruas que homenageavam ditadores, entre outras iniciativas.

Educação e não repetição

Quanto às iniciativas de não recorrência das arbitrariedades ditatoriais, o relatório descreve ter sido informado pelo o governo sobre as políticas adotadas a nível federal para incluir a educação em direitos humanos, incluindo o ensino de história sobre a ditadura, nos currículos escolares.

No entanto, demonstrou preocupação com o fato de autoridades estaduais e municipais não estarem necessariamente seguindo o arcabouço estabelecido pelo Ministério da Educação.

Além disso, apontou como preocupantes medidas adotadas durante o governo Bolsonaro “para retirar referências à ditadura dos currículos escolares e para censurar ou mesmo criminalizar os professores que educam sobre esses assuntos, acusando-os de doutrinação”, bem como rechaçou a “militarização da educação” por meio de escolas cívico-militares, que se proliferaram sob Bolsonaro. O governo Lula suspendeu esse tipo de instituição, mas estados cujos governos são alinhados ao bolsonarismo resolveram mantê-las por conta própria.

Nesse sentido, o relator pede ao Estado que seja garantida “a inclusão da educação em direitos humanos, incluindo o ensino de história sobre a ditadura, nos currículos escolares” e que “as teorias revisionistas ou negacionistas sobre a ditadura não sejam ensinadas nas escolas”.

Do Vermelho

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