Miguel Nicolelis: “Vamos viver algo que nunca imaginamos na história do Brasil. E isso, nas proporções que vamos ver, não era inevitável”
À frente do projeto Monitora Covid-19, um dos principais cientistas brasileiros avalia o avanço do coronavírus e comenta as estratégias adotadas, no Rio Grande do Sul, no Brasil e em outros países
Referência mundial na área de neurociência, o médico brasileiro Miguel Nicolelis vive na Carolina do Norte (EUA), onde lidera um grupo de pesquisadores do campo de fisiologia de órgãos e sistemas do corpo humano na Universidade Duke. Mas não em tempos de pandemia. Desde que o novo coronavírus chegou, ele se instalou em São Paulo para coordenar o Monitora Covid-19, um grande projeto no qual a própria população compartilha seu estado de saúde (por meio de um aplicativo no celular) e, no caso de haver sintomas da doença, recebe atendimento médico – remoto e, se for o caso, presencial. O sistema começou a ser implantado nos nove Estados atendidos pelo Consórcio Nordeste – cuja comissão científica também é liderada por Nicolelis. Mas já está disponível em todo o país. E é, defende o neurocientista, uma ferramenta importante para conter o avanço do vírus. Até porque, como ele diz na entrevista a seguir – na qual explica a estratégia que julga mais adequada para esse trabalho –, “vamos viver algo que nunca imaginamos na história do Brasil”.
O Monitora Covid-19 surgiu no Nordeste, mas já se expandiu para o Brasil todo. Alguma chance de se tornar oficial, em parceria com o governo, ou, ao menos, termos algo semelhante no país todo?
Nós abrimos o aplicativo para o Brasil inteiro no dia 7, e nos dias seguintes conseguimos solucionar problemas técnicos. Neste momento, já estamos analisando dados de usuários de todo o país, o que nos tem permitido oferecer relatórios sobre qualquer região. Basta as autoridades nos procurarem que estamos dispostos a colaborar. Nosso esforço começou no Nordeste, mas evidentemente a luta é muito maior do que isso e a possibilidade de conhecimento do vírus que um projeto desses oferece é imensa, pois se trata de uma luta também de informação, de validação científica das descobertas que fazemos sobre a doença.
Fala-se muito que a testar a população é primordial, e esse é um problema, pois não temos conseguido fazer isso de maneira tão ampla. Como essas informações podem ser usadas em consonância com a testagem?
Nosso plano é trabalhar monitoramento e testagem em conjunto. No Nordeste estamos preparando grupos de enfermeiros e médicos, as Brigadas Emergenciais, para irem até os locais onde descobrirmos que se faz mais necessário nos fazermos presentes. A ideia é realizar testes rápidos e diagnósticos mais completos e detalhados de ruas, bairros, cidades, regiões, batendo de casa em casa mesmo onde o monitoramento nos indicar que a situação é mais crítica. E aí, é claro, indicarmos para cada pessoa se ela deve ficar isolada, se deve ir a um hospital, enfim, o que for adequado no seu caso. A estratégia tem esses dois lados que se complementam: ter dados mais confiáveis dos contaminados, já que a subnotificação é muito grande, e atuar diretamente nos locais onde estão essas pessoas com o vírus. É claro que, além disso, os gestores políticos e de saúde podem elaborar suas políticas de longo prazo de posse dessas informações, e é por isso que estamos abertos a colaborar com autoridades de todo o país.
O senhor pode explicar melhor como as informações obtidas podem ser usadas?
Nos gráficos do projeto vemos claramente onde os casos aumentam, onde eles desapareceram, quais são os movimentos que o vírus faz, tanto na curva do número de casos quanto na migração entre regiões. As definições sobre o isolamento podem ser feitas a partir disso.
Quais são as indicações de momento?
Tudo o que temos descoberto neste momento leva a uma conclusão principal: precisamos ampliar o isolamento no Brasil.
Por que, então, gestores estão começando a afrouxar o isolamento?
Acho que é porque alguns gestores não estão se dando conta do que isso vai significar, ou seja, uma explosão de casos. Basta nos compararmos com a Itália: algumas autoridades, como o prefeito de Milão, fizeram troça, dizendo que eram mais fortes do que o vírus, e veja o que aconteceu; foi o distanciamento social adotado depois que permitiu o controle da expansão da epidemia. No Brasil, começamos mais cedo o isolamento, o que é bom. Os registros da doença aumentaram com o afrouxamento e com a interiorização do vírus. Significa dizer que ele foi alcançando locais em que as pessoas não estão mais tão isoladas. E isso em todo o Brasil. Alguns Estados, como Rio de Janeiro, São Paulo e os do Norte e Nordeste, viram esse fenômeno antes. Mas, pelo que visualizamos pelos movimentos de deslocamento (do vírus), a tendência é um aumento também no Sul.
O que vocês puderam descobrir sobre como se dá esse deslocamento do vírus?
Conseguimos ver claramente a migração dos casos: a covid-19 chegou por voos internacionais e adentrou nossas fronteiras, instalando-se nas grandes cidades, primeiro nos bairros de classe média-alta, e dali se espalhou por meio dos entroncamentos rodoviários. A imagem, no mapa do Brasil, é a de uma guerra: há invasão pela costa rumo aos centros maiores para, a partir deles, ocupar de todo o território. É como se estivéssemos sendo invadidos. E, pelos nossos mapas de análise de risco, incluindo o da Região Sul, fica claro que, uma vez dentro do país, o vírus se espalha pelas vias rodoviárias. Há registros muitos fortes, por exemplo, de Feira de Santana (BA), local de entroncamento rodoviário. A conexão São Paulo-Campinas é marcante para levar o vírus, e o mesmo deve ocorrer entre Porto Alegre e Novo Hamburgo e Porto Alegre e Caxias do Sul. Essas vias que levam e trazem muita gente são as vias pelas quais o vírus se espalha.
O Rio Grande do Sul adotou medidas de afrouxamento levando em conta particularidades regionais. Respeitar cada contexto regional pode ser um caminho?
Não conheço tão detalhadamente o Estado, mas eu diria que, pela experiência do Monitora Covid-19, isso não funciona. Justamente por conta das idas e vindas rodoviárias. Precisamos lidar com a pandemia considerando os super-spreaders (“superespalhadores”). Há as pessoas que são super-spreaders e também os locais, como fábricas, lojas etc., e as cidades super-spreaders. Supermercados podem estar nessa categoria.
Frigoríficos também? Há alguns com esse indício no Rio Grande do Sul.
Sim, sem dúvida. Ainda estamos estudando esse vírus, mas nos Estados Unidos algumas regiões também reportam frigoríficos como super-spreaders. Na minha região, que é a Carolina do Norte, é assim: há vários frigoríficos interditados. Meus filhos estão me relatando que já falta carne por conta disso, inclusive. No caso das cidades, as super-spreaders são aquelas que servem de passagem para muita gente, caso, por exemplo, da região de Novo Hamburgo, entre Porto Alegre e a Serra. Então não adianta você adotar um tipo de medida para uma cidade com poucos casos se ela é atravessada por muitas pessoas. Você não vai frear o avanço do vírus, pelo contrário, pode inclusive, sendo permissivo com o vaivém de gente, colaborar para que ele se espalhe.
O que se deve fazer?
Os melhores exemplos que temos são os das experiências de alguns países do Oriente, como a Coreia do Sul, e de outros na Europa, sobretudo a Alemanha. Foram esses dois países que melhor fizeram o isolamento das pessoas e dos locais que são considerados super-spreaders. Nos mapas que temos feito, há as regiões que concentram mais casos e a partir das quais o vírus se espalhou. E há aquelas onde ainda há muito pouca incidência da doença. É nessas que as Brigadas Emergenciais têm de ir. É uma estratégia de guerra, mesmo: você domina um território, finca sua bandeira nele e dali tenta se espalhar, tomando os territórios vizinhos. Infelizmente perdemos muitas regiões, já, mas há outras que dá tempo de resguardarmos.
Já há um consenso entre os estudiosos de que há subnotificação. Segundo pesquisa da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), podemos ter quase 10 vezes mais casos do que o registrado. Outro dado, esse da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz): 73% das mortes por Síndrome Respiratória Aguda Grave são provavelmente casos de covid-19 não notificados. Em que medida esse disparate entre os números oficiais e os reais é prejudicial?
Há estudos que indicam que a subnotificação pode ser de 16 vezes em algumas regiões, embora, de fato, os indícios que temos da maior parte do Brasil são de que devem ficar entre 10 e 12 vezes. Esse dado da Fiocruz é o que usamos: assumimos que 73% das mortes por Síndrome Respiratória Aguda Grave são casos de covid-19, ou melhor, casos extras. Assim, conseguimos minimizar a subnotificação. Mas o problema persiste, porque a subnotificação pode não ser constante ao longo do tempo, pode variar dependendo da região, enfim, há uma série de variantes que não são contempladas mesmo que a gente considere um número de casos subnotificados. A curva não muda, mas algumas especificidades dela se perdem. E tudo faz a diferença. Houve um dia em que o Ministério da Saúde disse que errou a digitação, alterando um número de mortos registrados em 24 horas (em 20 de abril). Isso é inacreditável. E coloca dúvidas sobre o que é divulgado. Agora os registros têm caído no fim de semana. Como não acredito que os servidores estão folgando, só posso crer que há ainda mais subnotificação. Ou seja, a subnotificação pode mudar de um dia para o outro. É um problema, toda a modelagem matemática, qualquer criação de cenários, tudo fica mais difícil de ser feito.
O quanto a crise política em Brasília, com trocas de ministros em pastas como a da Saúde, afeta a luta contra o vírus?
Muito. E o problema não é uma questão de direita ou esquerda. Veja a Alemanha. Sua líder (Angela Merkel) é conservadora. Ninguém pode chamá-la de progressista. Mas, quando ela viu o problema, chamou os cientistas dos principais centros de pesquisa da Europa, incluindo o Robert Koch Institute, e os transformou em pessoas muito próximas. O virulogista do Robert Koch Institute disse em entrevista que vai dormir falando com Merkel e acorda com ligação dela, todos os dias. Ele virou quase o cara que decide a política alemã, neste momento. E o país foi um dos que deram a melhor resposta contra o vírus, ao menos nesta primeira fase.
Há mesmo uma segunda fase de avanço do vírus? Algum país já chegou nela?
Há, sim. E costuma ser pior. Esse é um medo. Em países mais isolados fica mais claro o que é primeira e o que é segunda onda, mas, nas grandes nações, como Brasil, China e Estados Unidos, as coisas são mais incontroláveis – justamente pela maneira como as pessoas se deslocam dentro de seus territórios. São esses países que precisariam ter comandos uniformes, presidentes engajados na luta contra o vírus. Se você não tem um comando central que diz claramente o que se deve fazer, baseado em dados científicos, fica muito difícil. Não tem como. É como ir para uma guerra sem um general. A derrota é só uma questão de tempo.
O Brasil será mesmo o epicentro da doença, como o senhor já chegou a prever?
O Brasil já está assumindo esse posto. Hoje dividimos esse papel com os Estados Unidos, dois países de dimensões continentais que têm líderes que não souberam lidar com a crise, Trump no início e Bolsonaro ao longo de todo o tempo. Esse nosso patamar de mil mortes por dia vai aumentar. O Brasil ainda vai bater muitos recordes nesta pandemia, no mínimo por duas ou três semanas. Vamos alcançar números muito altos, vamos viver algo que nunca imaginamos na história do Brasil. E isso, nas proporções que vamos ver, não era inevitável. Mesmo regiões que estão sofrendo menos, como o Sul, vão sofrer bastante, de maneira que nunca imaginaram.
Pesquisadores dizem que a pandemia chegou em um momento de retração mundial no invenstimento em ciência e saúde pública. O quanto isso é verdade?
Isso é muito verdade. Trata-se de um fenômeno mundial. Mas o Brasil vive isso com maior gravidade. A ciência no Brasil já estava em estado terminal. Quando comento com colegas de outros países que houve corte de verba de mais de 40%, ninguém acredita. Mas o drama é mundial, e inclui Estados Unidos e Europa. O sistema público de saúde do Reino Unido, que já foi o melhor do mundo, não está mais nem perto disso devido aos cortes orçamentários. Os britânicos tinham orgulho dele. Foi necessária uma crise sanitária desse tamanho para que se dessem conta do que havia acontecido. Trump desmontou a equipe de detecção e prevenção a pandemias dos Estados Unidos. Logo agora! A lição universal da covid-19 é que ciência e saúde pública têm de ser prioridade.
Como vamos absorver essa e outras lições da pandemia? Já dá para pensar nisso?
Olha, nos Estados Unidos, particularmente, estou curioso. O que está acontecendo lá é demolidor de um certo estado de espírito coletivo que eles têm. Nunca foram invadidos, têm essa ideia de soberania, sentem-se invencíveis. Desde a Guerra Civil, no século 19, não vivem batalhas em seu território. O 11 de Setembro (de 2001) foi traumático também por isso. Imagina agora, em que o número de óbitos se multiplicou.
Na área da saúde, os governos investem em pesquisa até certo ponto. Quando se fala de vacina, por exemplo, chega um momento em que é a indústria farmacêutica que precisa seguir investindo para que as pesquisas prossigam. Ou seja, se o mercado não se interessa, uma vacina fica para trás, como foi o caso da sars, há quase duas décadas. Isso não poderia ser repensado?
Sem dúvida. Essa é outra lição. O Estado russo, por exemplo, assumiu para si a ideia de desenvolver uma vacina, com o governo investindo muito dinheiro nisso. E a mesma coisa deve acontecer com a China. As prioridades da indústria farmacêutica podem não ser as mesmas da saúde pública – também foi preciso uma pandemia para nos darmos conta disso. Em momentos como este, o ideal seria que tivéssemos um grande consórcio de nações para desenvolvermos uma única vacina. Se não, como vai ficar? Um país vai ter, os outros, não? E o que tiver se isolará? Como vacinar todo mundo? A pandemia vai alterar toda a geopolítica mundial, e o ponto inicial dessa mudança é a batalha pela vacina. A Organização das Nações Unidas (ONU) deveria tomar a frente disso, porque, do jeito que está, sabe-se lá o que acontecerá.
Aproveitando a experiência de quem vive há 32 anos no Exterior: como está a imagem do Brasil lá fora neste momento de pandemia?
Horrível. Talvez quem esteja no Brasil não tenha a exata noção, mas a imagem do Brasil lá fora foi derretida. Não temos mais nada pelo que zelar. Já estávamos nesse caminho, e o coronavírus foi a pá de cal. O presidente Bolsonaro foi eleito por todos os grandes jornais europeus e norte-americanos como o inimigo número 1 do combate ao vírus. O (britânico) Guardian tem um lugar cativo para os absurdos que vêm do Brasil. Agressões a enfermeiros, carreatas pelo fim do isolamento, posts do presidente, quase todos os dias tem algo.
Bolsonaro representa os negacionistas do vírus. Eles não existem só no Brasil, certo?
Certo. É um fenômeno mundial. Tomara que, com o avanço do vírus, que infelizmente ainda tende a acontecer, isso mude. O que é particular do Brasil é o papel que o líder representa nesse contexto.
O senhor já disse recentemente, a partir de dados coletados pelo Monitora Covid-19, que a primeira quinzena de maio constituía só o início do pior momento da pandemia no Brasil. É isso mesmo? E quando isso pode passar?
É isso mesmo. E, neste momento, não há resposta de quando isso vai passar. Porque todas as curvas são ascendentes. Em uma perspectiva otimista, se conseguirmos frear o avanço do vírus, o fim de maio pode revelar alguma luz e, ali, poderemos fazer algum tipo de previsão. Se eu fizer algo antes, estarei sendo leviano. Agora é o momento de pensar em aumentar o confinamento. Não tem outro jeito. Estamos caindo para menos de 40% de isolamento, segundo os índices de medição. Isso é insuficiente. Temos de chegar a 65%, no mínimo. Esse tem de ser o foco. Só depois é que vamos começar a pensar em um novo momento, mais otimista.