Mulheres sobrecarregadas e homens desempregados: famílias brasileiras chegam a 2019 ainda em crise

De pé no meio da cozinha, Alessandra aperta os olhos para enxergar as letras pequenas. Ela segura o papel com as duas mãos e treme um pouco.

“Insônia, cefaleia, ideias suicidas…Nossa, você toma algo para ansiedade e pode ter ideias suicidas!”, ri, meio sem jeito.

Caixas com tarjas vermelhas e pretas estão enfileiradas sobre o micro-ondas. É dentro de uma delas que Alessandra guarda a bula.

“Mas você sabe, esse é o melhor ansiolítico que existe!”

Apesar dos efeitos colaterais, são os remédios que ajudam Alessandra, 45, a dormir, acordar e respirar durante crises de asma, bronquite e síndrome do pânico. Essas doenças apareceram há alguns anos, quando sua vida começou a mudar.

Em 2014, o marido de Alessandra deixou um emprego como gerente de logística e não conseguiu arrumar outro. Desde então, é o salário dela como agente de viagens que sustenta a casa, onde também mora uma de suas filhas, de 18 anos e desempregada. Responsável pelas contas e pela limpeza, sem carteira assinada, dinheiro no banco ou gastos que ainda possa cortar, Alessandra está cansada e doente. E é assim que ela e sua família chegam a 2019.

O amor na crise: com mulher responsável pelas contas, marido assume tarefas domésticas

A recente recessão vivida pelo Brasil foi a maior desde os anos 1980, quando o Comitê de Datação de Ciclos Econômicos, da Fundação Getulio Vargas (FGV), começou a medir as crises brasileiras. Em 11 trimestres, entre 2014 e 2016, o PIB do país acumulou uma queda de 8,6%. Nesse período, o desemprego chegou a atingir 14,2 milhões de pessoas e a renda per capita caiu 9,4%, o segundo pior resultado do século. Durante uma das crises mais longas de nossa história, muitas famílias passaram por transformações semelhantes às experimentadas por Alessandra.

Uma delas merece destaque, por influenciar com força as dinâmicas familiares: o protagonismo das esposas, grupo que não tinha salário ou cujo salário era secundário no sustento da casa. Na maioria dos casos, elas são as esposas ou companheiras, enquanto os maridos se identificam como “chefes de família”.

Um levantamento feito para a BBC News Brasil pelo professor Marcelo Neri, diretor do centro de políticas sociais da FGV, com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), indica que as esposas se saíram melhor do que os chefes de família durante a recessão. Elas tiveram aumentos expressivos de renda, horas trabalhadas e participação no mercado de trabalho. Nesta reportagem, o termo será usado no feminino já que 72,5% dos que ocupam esse papel são mulheres, de acordo com a Pnad de 2017. É importante ressaltar que muitas brasileiras também exercem a função de chefes em suas casas.

Os dados da Pnad mostram que, entre o segundo trimestre de 2015 e o segundo trimestre 2018, a renda das mulheres do casal cresceu 17,9% enquanto que a dos principais responsáveis pelo domicílio (cuja maioria é de homens) caiu 10,3%. O crescimento da renda do grupo das mulheres cônjuges também ultrapassou o dos jovens, os que mais sofreram com o desemprego – nesse período, a renda dos que se identificavam como filhos encolheu 9,6%.

O bom desempenho, no entanto, não é motivo de comemoração: em sua maioria, os rendimentos das mulheres não melhoraram a situação da família, mas apenas impediram que seus membros ficassem ainda mais pobres.

“A trabalhadora adicional entra no mercado para amortecer a queda de renda da família, como um colchão”, diz Neri.

“Ou seja: há um ganho individual, mas uma perda familiar.”

Na cozinha, enquanto se prepara para sair, Alessandra coloca potes de plástico com seu almoço e lanche da tarde dentro de uma bolsa de tecido. Depois de empilhá-los, equilibra uma banana sobre eles.

“Está na hora. Vamos?”

O relógio marca 6h15.

O retrocesso

As paredes brancas da casa estão descascadas, sem pintura há algum tempo. O varal no quintal está quebrado. Ao tirar o carro da garagem, Alexandre diz que vai tentar consertá-lo mais tarde.

Alessandra senta no banco do passageiro para o trajeto de uma hora até o trabalho, no centro de São Paulo. Ela fala sobre o que mudou nos últimos anos.

“Tem semana em que a gente não tem grana. Não tem. Se eu te falar que tem dez reais na carteira é mentira”, ela diz, olhando pela janela.

“A gente nunca foi extremamente consumista…Mas começamos a ir ao shopping já almoçados, para não gastar, e a pesquisar muito só para comprar um par de tênis. Vendemos carro, cortamos telefone fixo, TV…É apertado.”

O desemprego e a perda do poder de compra que ele traz geram sofrimento, diz a professora da Unicamp e presidente da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho Angela Araújo. Isso porque, ao longo do tempo, tais condições obrigam as famílias a repensarem até as pequenas escolhas: optar por roupas mais baratas e às vezes diminuir a quantidade de comida.

“A classe média e média baixa sofreram muito com a crise. As famílias não conseguiram manter o padrão de vida, que se tornou descendente. E a tendência ainda é essa: de queda.”

Alexandre, 49, trabalhava em distribuidoras de alimento há 20 anos quando, em 2014, depois de desentendimentos com colegas, pediu demissão. Ele tinha experiência, dinheiro guardado e, antes de procurar uma vaga, decidiu tirar alguns meses de descanso. Ao começar a enviar currículos, notou algo diferente. Os amigos também estavam desempregados, sua antiga empresa havia fechado e nas entrevistas, em vez dos dez candidatos habituais, 40 disputavam os cargos mais altos.

“Foi quando eu percebi que o mercado estava sumindo”, ele diz, dando de ombros.

“É muito estressante você não ter grana para fazer o que fazia”, Alessandra interrompe.

“A gente saia todo final de semana, né, Alê?”, ela vira para o marido enquanto o trânsito para na avenida. “A gente dava uma volta no sábado ou no domingo, ia comer fora. Agora deixamos de ter lazer…”

Na agência de viagens, onde ganha pouco mais de R$ 4 mil por mês, Alessandra manteve sua função. Seu salário, que então ajudava a pagar as contas, tornou-se o único da casa.

Contratam-se mulheres

Em períodos de crise, os empregadores preferem contratar ou manter mulheres em suas empresas, dizem professores entrevistados pela BBC News Brasil. Apesar de a taxa de desemprego ser tradicionalmente maior entre elas, durante recessões os empresários são guiados pela necessidade: mulheres têm salários menores do que homens e, em geral, aceitam condições de trabalho menos garantidas.

Em 2017, de acordo com a Pnad, os homens ganhavam, em média, 29,7% a mais do que as mulheres.

“Elas têm uma formação melhor, mais escolaridade, mas salários menores. Ganhar menos ou aceitar emprego em condições piores, sem carteira, é uma característica do emprego feminino que atrai as empresas. As empresas querem reduzir custos, se livrar das leis trabalhistas. É uma questão de sobrevivência”, diz a professora do Departamento de Economia da PUC Anita Kon.

As mudanças estruturais no mercado brasileiro foram fundamentais para permitir que mulheres como Alessandra se tornassem provedoras durante a crise, acrescenta a professora Angela Araújo.

Uma dessas transformações foi o crescimento, na última década, do setor de serviços de educação e saúde, onde elas são maioria. Desde o começo dos anos 2010, esse tipo de ocupação ultrapassou os serviços domésticos como a função que mais emprega brasileiras.

Por trás da expansão dos serviços, explicam os entrevistados, está a multiplicação de sistemas privados de educação e saúde – faculdades e clínicas particulares -, muitos deles contratantes de empresas terceirizadas. Por causa disso, os professores alertam que boa parte dessas vagas oferece condições precárias de trabalho.

Para a economista e professora da UFRJ Lena Lavinas, a flexibilização, impulsionada pela reforma trabalhista, também pode ter ajudado a entrada ou permanência das mulheres em seus cargos. Com a possibilidade de negociação direta entre patrão e funcionário e de contratos de trabalho intermitente com salários mais baixos, por exemplo, a resistência à contratação de mulheres – por receio de que engravidem ou faltem para se dedicar aos filhos – é menor.

Alessandra recebe como Pessoa Jurídica desde 2016. Ela pediu para ser mandada embora porque não conseguia mais pagar o colégio da filha caçula e queria ganhar sua rescisão para quitar as mensalidades. Sua chefe sugeriu que ficasse, mas deixasse de ter a carteira assinada. Hoje Alessandra recebe o salário sem descontos e passou a trabalhar mais – ligações e mensagens fora do horário comercial são comuns.

Se setores marcados pela presença feminina cresceram na última década, o mesmo não se pode dizer dos “masculinos”. A construção civil foi a campeã em demissões em 2017. Foram 104 mil vagas fechadas, como mostram dados do Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados). A indústria de transformação demitiu 20 mil pessoas.

Alexandre diz que já em 2014 percebia que seu setor não ia bem.

“Às vezes estourava em vendas e daqui a pouco não vendia nada. Antes de sair, vi que as empresas diziam que não dava para pagar a distribuição.”

Enquanto Alexandre dirige, Alessandra conta sobre quando deixou o emprego para acompanhar o marido em uma transferência. Então, seu salário era apenas um complemento.

“Uma vez fiquei fora do mercado por três meses e só depois comecei a procurar emprego. Quando a gente foi para o interior, fiquei parada mais de um ano”, ela diz.

“Falei pra ela ‘se quiser, trabalha, se não quiser, fica em casa’. Quando ela ficou desempregada, era diferente. Não era tão ruim…”, Alexandre continua a explicação, olhando pelo retrovisor.

As trajetórias profissionais das mulheres costumam ter um movimento de entrada e saída do mercado para se adaptar ao itinerário da família, explica a professora do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Juiz de Fora Ana Claudia Moreira Cardoso. E seria por isso que muitas não conseguem subir na hierarquia profissional e permanecem auxiliares no sustento da casa.

“Essas entradas e saídas também são uma maneira de manter a desigualdade, porque você não está dando as mesmas chances para os dois sexos. Elas perdem a oportunidade de construir uma carreira”, diz Cardoso, que estudou a vivência dos trabalhadores e os processos de negociação coletiva em seu doutorado.

Além dela, outros professores entrevistados pela BBC Brasil defendem que, apesar de consistente e representativa de uma luta por autonomia, a entrada das mulheres na força de trabalho aconteceu pela porta lateral.

Seus salários sempre foram inferiores aos dos homens e encarados como uma “ajuda”; elas eram e são maioria nos empregos de tempo parcial, para dar conta das tarefas domésticas; e as funções que ocupavam ainda se parecem muito com as ditas “atividades femininas”: o cuidado, em diferentes acepções.

“O maior espaço que encontram são as funções parecidas com as que já faziam no domicílio, que é o cuidado do outro: saúde, educação, serviços domésticos. Entende-se que mulheres são boas para cuidar”, diz Cardoso.

No entanto, mesmo com todas essas dificuldades, trabalhar tornou-se parte da identidade feminina, pondera a socióloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro Bila Sorj. Segundo ela, é improvável que mulheres que agora veem seus rendimentos tornarem-se tão importantes para a sobrevivência da família voltem a ficar em casa.

“Isso não regride porque elas realmente se percebem como trabalhadoras, como tendo uma participação no mundo público. A mulher considera que participar do mercado é um valor.”

Todas essas transformações mexem com as definições tradicionais de “chefes de família” e “cônjuges”.

“Ela é a única que põe um dinheiro em casa. Eu só ponho uns trocados”, Alexandre comenta, enquanto o carro se aproxima do centro de São Paulo.

“Ela virou a chefe da família”, ele diz, ao estacionar em frente a um dos prédios cinzas da rua da Consolação. Alessandra abre a porta, bolsa e sacola em mãos, seguida pelo marido. Na calçada, fumam um último cigarro.

Ela vai passar as próximas oito horas no escritório; ele será motorista para um aplicativo de táxi. É assim que tira seus “trocados”.

O motorista

Alexandre demorou a aceitar que ser motorista era sua única opção. Foram dois anos de currículos recusados até ser convencido a tentar.

“No começo eu não queria”, ele diz ao voltar para o carro. “Eu tinha um cargo de chefia e você ainda está em cima do pedestal: não tem mais dinheiro, mas se acha conde, duque…”

O telefone toca. Ele tem um novo passageiro.

De acordo com os professores entrevistados, a crise econômica e os altos níveis de desemprego que os brasileiros experimentam há anos são, claro, determinantes para o desânimo observado hoje. Mas eles ressaltam que há algo a mais nesse cenário: uma mudança profunda das vagas oferecidas, cada vez mais flexíveis e frágeis.

À recessão, dizem, soma-se o contexto da reforma trabalhista, texto aprovado em 2017 que regulamentou contrários temporários e intermitentes e permitiu a negociação direta entre empregadores e empregados. Para esses especialistas, o Brasil seguiu uma tendência mundial de fragilizar as contratações, tornando-as mais esporádicas e sem garantias.

O professor de sociologia do trabalho da Unicamp Ricardo Antunes afirma que essas transformações fazem parte do que é chamado de quarta revolução industrial ou indústria 4.0. Nela, estaria incluída a substituição, como motor da economia, da indústria – um setor de relações trabalhistas bem estruturadas – pelos serviços, onde essas trocas são mais flexíveis.

“A precarização é ainda mais intensa aqui porque a sociedade brasileira já nasceu sob a égide do trabalho escravo – só que hoje ele é de outro tipo. O empresário acha que só por dar trabalho é um benfeitor.”

Enquanto segue em busca de outros passageiros, Alexandre conta que hoje, em entrevistas de emprego, as condições oferecidas são diferentes das que estava acostumado: são muitas exigências para um salário menor.

“O que eles querem? Que você seja PJ (pessoa jurídica) e receba R$ 3 mil para montar toda uma operação de logística”, ele diz, enquanto o aplicativo apita.

“Chega num ponto em que você fala ‘beleza, eu vou’. Mas sei que esse tipo de coisa não dá certo…”

Empregos digitais

Diretamente implicadas nessa nova fase estão as plataformas digitais, acrescenta a professora Ana Claudia Moreira Cardoso. Os aplicativos de táxi usados por Alexandre, por exemplo, seriam um símbolo do tipo de relação trabalhista para o qual o Brasil estaria caminhando: virtuais e efêmeras.

“Muitas dessas empresas de plataforma digital tentam se vender como sinônimo de autonomia e liberdade, dizendo que o trabalhador vai ser independente. As pessoas compram isso mas, quando entram, percebem que é uma falácia porque, se querem ter rendimento, precisam trabalhar pra caramba. A liberdade cai por terra.”

“Hoje diminuiu até o ganho do motorista de aplicativo porque todo dia aumenta cem carros na rua”, Alexandre diz, dando de ombros.

Tudo o que ele ganha vai para compras básicas no supermercado.

“Para o cara fazer um bom dinheiro precisa trabalhar doze, catorze horas por dia”, diz.

Uma crise longa combinada a novas formas de encarar o trabalho seria a receita ideal para despertar um sentimento nos brasileiros: o medo.

Em junho do ano passado, o Índice de Medo de Desemprego da Confederação Nacional da Indústria (CNI) atingiu um dos piores resultados da série histórica, com 67,9 pontos. Calculado desde 1996, o indicador melhorou um pouco em setembro (65,7), mas ainda assim está muito acima da média histórica, de 49,7 pontos.

Dirigindo seu carro em direção à zona leste, onde prefere continuar o dia como motorista, Alexandre fala que aprendeu com a experiência do aplicativo. Ouvir os desabafos das pessoas lhe deu perspectiva sobre sua própria vida.

“Você vira meio que um psicólogo”, ele pondera, avançando sob os viadutos da Radial Leste.

“É uma terapia e tanto. Você percebe que não é o único que está ruim. Numa semana peguei uma gerente de RH que iria mandar dois mil funcionários embora.”

Ele entra em uma rua lateral e aponta para a direita.

“Olha isso, há uns meses não tinha morador de rua aqui. É como eu disse, sempre pode ser pior…”

Numa praça, folhas de papelão e barracas cobrem os canteiros. Um grupo de homens está sentado em roda, passando uma garrafa de vidro de mão em mão.

A sobrecarga

Quando Alexandre e Alessandra se reencontram, às 18h, dão um beijo rápido e fumam mais um cigarro em frente ao escritório, na República. Ainda é dia por efeito do horário de verão e uma luz amarela cai sobre os prédios do centro de São Paulo.

“Não gosto desse horário”, Alessandra diz, já dentro do carro. “Parece que estou fazendo algo errado, que não trabalhei.”

“Que besteira”, Alexandre ri. “Como foi lá?”

“Tudo bem. Hoje estou bem”, Alessandra responde, olhando pela janela enquanto eles avançam pelas ruas da Sé, cheias de homens e mulheres apressados.

“Aproveitamos esse momento para fazer piada”, Alexandre diz à reportagem, batucando com as mãos no volante.

“Senão, ninguém aguenta.”

Ele pede que Alessandra abra um vídeo no WhatsApp. Ela segura o celular e estende o braço em direção ao para-brisa, para que o marido consiga assistir. Com sotaque caipira, um YouTuber anuncia as “cinco dicas para você que é pobre”.

Com os olhos na tela, Alessandra ri, o rosto relaxado. Mas não é sempre assim.

Alexandre busca a mulher toda semana porque ela já teve crises de pânico e desmaiou no ônibus ao voltar do trabalho. Ela também chegou a passar mal dentro do carro.

Alessandra tira uma bombinha de asma da bolsa e aperta o tubo de plástico duas vezes, com o bocal entre os lábios.

“Ela tem uma farmácia aqui. Já virei sócio das farmácias do bairro”, Alexandre brinca.

“Não é só a pressão do trabalho, é toda a situação. Ela estava trampando que nem doida para colocar comida na mesa, fazia isso e aquilo, limpava e ainda tentava agradar”, diz, sacodindo a cabeça.

Além do trabalho fora de casa, mulheres sempre dedicaram mais tempo às tarefas domésticas do que os homens. Com muitas delas tornando-se as principais responsáveis pela renda no Brasil, a tendência à sobrecarga é inegável, dizem os entrevistados pela BBC.

Dados da Pnad Contínua de 2017 mostram que as mulheres dedicam, em média, 20,9 horas semanais a afazeres domésticos e no cuidado de parentes ou moradores, enquanto os homens gastam metade desse tempo: 10,8 horas.

“O que acontece e acontecerá ainda é uma sobrecarga, enquanto os homens não se convencerem de que é preciso dividir”, diz a professora Hildete Melo, da Universidade Federal Fluminense, que há décadas estuda mercado de trabalho e relações de gênero. “E agora, nesse cenário, a mulher trabalha ainda mais.”

Todas essas cobranças levam a um adoecimento que não é só físico, mas mental. A professora Ana Cardoso explica que transtornos como depressão, ansiedade e síndrome do pânico são mais comuns nos serviços, setor bastante feminino, enquanto que em postos identificados como masculinos, em fábricas ou construtoras, os danos físicos são mais frequentes.

“Se a gente pensar que estamos em uma sociedade na qual ainda não se reconhece o adoecimento mental como verdadeiro, nem pelo público, nem pelo Estado, até a doença delas têm menos valor.”

Há, no entanto, quem veja a crise como oportunidade de reverter padrões de comportamento.

“É mais frequente hoje você ter maridos que realizem tarefas ditas femininas porque estão desempregados: lavar roupa, cozinhar. Isso vem de um movimento duplo, que inclui a luta feminina e feminista, mas também o papel secundário que os homens começaram a ter em razão do desemprego”, diz o professor Ricardo Antunes, da Unicamp.

Foi isso que aconteceu com Alessandra e Alexandre. Às quartas, ele faz faxina.

“O Alê deu um salto nesse negócio de machismo, de orgulho”, Alessandra conta no meio do trajeto de volta, quando a noite já caiu.

“Ele aspira, passa pano, tira pó. Antes ele trabalhava que nem um louco e não tinha tempo, né. E a gente sempre teve quem ajudasse na casa. Essa mudança foi um pulo para nós dois”, ela sorri.

Quando o carro volta à garagem, na Vila Industrial, a rua está vazia, como no começo da manhã. Antes de entrar em casa, eles se apoiam no portão de ferro e fumam mais um cigarro.

Ali ao lado está o Subaru 1991 que Alexandre comprou há quatro anos, quando ainda estava empregado.

“Era meu sonho de consumo”, ele diz, o cigarro queimando entre os dedos.

Seu plano era reformar o carro, o que ele começou por conta própria, mas precisou interromper. Até o licenciamento deixou de pagar.

“Eu não tirava da garagem mesmo”, ele dá de ombros.

Apoiada no Subaru, Alessandra chama o marido.

“Lembra, Alê? Antes a gente costumava ir para o Guarujá no fim de semana só para sujar a bunda de areia e voltar.”

Alexandre sorri.

“Agora não dá mais”, ela diz.

Alessandra pega o saco de pão que vai servir de jantar e entra em casa. São 20h30.

A faxina

A manhã de quarta-feira está clara e silenciosa na Vila Industrial. É o silêncio das casas vazias: adultos no trabalho, crianças na escola, e uma ou outra senhora a cruzar a rua.

Alexandre aparece no portão de chinelos verde e amarelo, camiseta do Corinthians e bermuda surrada.

É dia de faxina.

Em 2016, quando o dinheiro que tinha guardado acabou e não havia emprego à vista, ele ficou preocupado.

Em meio a entrevistas frustradas, a preocupação virou agitação, que se transformou em raiva, desânimo e inércia, até desembocar numa depressão

“Eu apagava tudo quanto era luz, ligava o videogame e ficava lá sentado. Para mim, eu só dava despesa. Quando você perde tudo, sua autoestima vai embora”, ele diz, tomando um café preto em pé na cozinha.

“Em 2017, virei aquela norte-coreano: queria explodir o mundo.”

Alexandre falou em sair de casa, porque se sentia um estorvo para a família. Nesse meio tempo, Alessandra começou a apresentar sinais de síndrome do pânico. Sentia falta de ar, não conseguia ficar em lugares fechados, estava cansada o tempo todo. A cada fim de semana, mostrava-se mais lenta para limpar.

“Fiquei cego”, Alexandre diz, enquanto coloca o copo de café na pia, sobre o resto da louça suja.

“Me via como vítima, só que não percebia que Alessandra estava doente. Até que um dia nós sentamos e conversamos. Aí vi que estava tudo errado”, diz, apertando as mãos.

Ele segue para o quarto para fazer a cama. Agita o lençol de elástico, ajusta-o ao redor do colchão e passa a mão sobre o tecido para que fique liso. Sacode os travesseiros e então estende a colcha sobre tudo.

Estudiosos do tema apontam que a divisão de tarefas é um dos principais empecilhos para que homens e mulheres sejam mais iguais no mercado de trabalho. Em The Gender Revolution: Gender & Society (A Revolução de Gênero: Gênero e Sociedade, em tradução livre), a socióloga americana Paula England observa que as mulheres têm mais incentivos para arranjar empregos e adotar comportamentos antes tidos como masculinos, enquanto os homens são desestimulados – por questões financeiras e culturais – a assumir atividades femininas. Dessa forma, as transformações ocorreriam só de um lado: as mulheres saem para o mercado, mas os homens não dedicam mais tempo à casa.

Como os incentivos não mudam, as diferenças também não diminuem. De acordo com uma análise do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), entre 1995 e 2009, a porcentagem de pessoas que fazem atividades domésticas ficou estável: mulheres sempre em torno de 90% e homens oscilando entre 46% e 50%.

Enquanto encera o chão da sala, Alexandre conta que encarar a faxina foi difícil. E não apenas por que não sabia que panos de chão e toalhas não podem ser lavados juntos. Ele diz que foi complicado, como homem, assumir essas tarefas.

“Todo homem é machista”, ele explica, pingando o lustra móveis no piso de taco. “Me abalava que ela pagava tudo, até o cigarro. Mas o cara precisa entender que não estamos mais na década de 1940.”

Mas o caso de Alessandra e Alexandre é uma exceção?

A maioria dos entrevistados acredita que há, sim, uma melhora na divisão das tarefas, mas eles divergem sobre seu alcance e profundidade. Alguns dizem que as mudanças são pequenas e estão concentradas nas classes altas e nos centros urbanos, onde há mais diálogo sobre esses assuntos.

A expectativa de todos está nos jovens.

“Os homens mais jovens são uma esperança. Começamos a ter exemplos minoritários de maridos que cozinham, lavam louça, tomam conta de criança, isso já é evidente nas classes sociais mais altas. Nas mais baixas, ainda é difícil”, diz a professora emérita da UFRJ Alice Rangel de Paiva Abreu, que tem um longo histórico de pesquisa sobre gênero e trabalho.

Para Abreu, essas alterações tímidas estão ligadas ao debate sobre os direitos da mulher, mais presentes nas conversas do brasileiro.

O mesmo tom é adotado pela professora Ana Cardoso: em suas pesquisas, percebeu que jovens parecem querer construir uma relação mais igualitária com suas companheiras. Ela atribui essa percepção à maior presença das mulheres no mercado. Segundo Cardoso, quando a regra era a mulher ficar em casa e o homem sair para ganhar dinheiro era mais difícil que o marido a encarasse como igual. Mas, à medida que começa a tornar-se independente, ela desperta uma nova visão sobre si mesma e faz com que o homem a veja de forma diferente.

A filha mais velha de Alessandra e Alexandre vive com o namorado no centro de São Paulo. No apartamento que dividem com três gatos, Talita, de 24 anos, conta que seu companheiro não só faz sua parte na limpeza, como gasta mais tempo do que ele nessas atividades.

“No geral, tenho certeza que ele faz mais coisas do que eu. Já perdi as contas das vezes em que cheguei no trabalho e ele tinha limpado tudo sozinho.”

Futuro

Talita é professora de inglês e teve vários ofertas de emprego nos últimos anos. O mesmo não vale para a caçula da família, Ana, de 18 anos. Depois de terminar o colégio particular, cujas últimas mensalidades foram pagas com atraso, Ana não conseguiu passar na faculdade que desejava nem arranjar um emprego. Juntou-se, então, aos “nem-nem”, grupo de jovens que não trabalha nem estuda e já representam 23% do total dos brasileiros entre 15 e 24 anos, segundo pesquisa do Ipea.

Mas agora Ana prepara-se para estudar Economia numa faculdade onde será bolsista.

Cercado pelas cadeiras da mesa de jantar, que espalhou pela sala durante a faxina, Alexandre diz que a filha sempre quis ser economista. “Nunca mudou, você vê só.”

Ele suspira. “Mas já falei que elas precisam sair do país, não tem mais o que fazer aqui.”

As palavras que melhor definem a visão de futuro dos brasileiros, para a professora Ana Cardoso, são “falta de perspectiva”.

Há alguns anos, diz, acreditava-se que um curso superior seria suficiente para conseguir uma boa vaga. Tal crença não apenas caiu por terra, em razão dos altos níveis de desemprego, como a diminuição da renda tirou a possibilidade de estudo das classes mais baixas.

No caso dos chefes de família, Cardoso explica, a perspectiva é negativa porque quando a economia melhorar, sua inserção pode não acontecer via carteira assinada, mas por contrato temporário, e seu salário não deverá ser maior do que o recebido antes.

Duas noites antes, ao chegar do trabalho, Alessandra falava sobre o futuro quando Alexandre decidiu contar uma piada.

“Você sabe por que a esperança é a última que morre?”, ele disse.

“Porque ela é a primeira que vai embora!”

Alessandra deu um tapa no ombro do marido.

“Tiramos coisas boas desse momento, acredito que vai melhorar”, ela sorriu, antes de juntar-se a Alexandre na risada.

BBC

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