O Estado deve, sim, meter a colher
“É só denunciar”, dizem alguns, como se quebrar o ciclo da violência doméstica contra a mulher fosse o que há de mais simples no mundo. Entretanto, os números mostram que, ao contrário do que recomenda o ditado, a demora do Estado em meter a colher em brigas domésticas cobra um preço alto. Uma mulher que já foi vítima dessa violência tem dezessete vezes mais chances de ser assassinada em relação àquelas que não sofreram ou registraram agressões dessa natureza. Se a mulher registrou queixa em mais de uma ocasião, transforma-se num alvo ainda maior: tem trinta vezes mais chances de ser morta por seu agressor. As conclusões vêm de uma pesquisa realizada pelo Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp), da Universidade Federal de Minas Gerais, que teve apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento.
Intitulado Fluxo Judicial da Violência contra a Mulher e publicado em agosto, o trabalho mapeia padrões de agressões domésticas com o intuito de compreender melhor o fenômeno e auxiliar na formulação de políticas públicas para prevenir o problema. Os pesquisadores analisaram os índices da cidade de Belo Horizonte a partir de informações fornecidas pela Secretaria de Segurança Pública de Minas Gerais e pelo Tribunal de Justiça. Criaram, então, uma base de dados com os casos registrados entre 2013 e 2018 na capital mineira e estabeleceram modelos estatísticos complexos que permitiram uma análise mais detalhada de como a violência de gênero se desenvolve nos lares de BH. O grupo chegou a quatro conclusões importantes.
Em primeiro lugar, eles descobriram que os conflitos violentos não são casos isolados, já que se repetem e com intervalos cada vez menores entre uma agressão e outra. Em segundo lugar, notaram que existe uma relação entre vulnerabilidade socioeconômica e violência doméstica: algumas das áreas mais vulneráveis de BH tendem a exibir maior incidência de casos. A terceira conclusão é a de que a Justiça não vem se mostrando capaz de romper o ciclo de agressões em que autor e vítima estão inseridos, apesar dos avanços nos últimos anos na estrutura de criminalização. As mudanças na legislação, que começaram na década de 1990, têm a Lei Maria da Penha, promulgada em 2006, como marco principal dessa tendência. Paralelamente, o país assistiu à criação de juizados especializados e de novas delegacias da mulher.
Por fim, o estudo aponta a necessidade urgente de encarar a violência doméstica como parte de uma escalada gradativa de confrontos que tem grandes chances de culminar em feminicídio. “Eu alimento a forte convicção de que as conclusões da pesquisa se aplicam a outras regiões do Brasil. Falo isso porque trabalho há muito tempo com análise criminal, e os padrões dos mais diversos crimes costumam ser bastante regulares entre as cidades brasileiras”, explica Bráulio Silva, doutor em sociologia e membro do Crisp desde 2000. Ele também é o coordenador do estudo, iniciado no segundo semestre do ano passado.
“Essas análises, além de trazerem à tona um fenômeno que parece particular, porque ocorre no ambiente doméstico, demonstram que é preciso tratá-lo como um problema social muito grave”, prossegue. “Todos os atores do sistema de justiça criminal devem contribuir para interromper o ciclo de violência.” Silva afirma ser necessário pensar em políticas públicas nas quais as autoridades policiais acolham as vítimas e apurem suas queixas com diligência, o Ministério Público denuncie rapidamente os agressores e a Justiça aplique as penas devidas. “Convém ainda oferecer apoio assistencial e psicológico a cada um dos envolvidos no ciclo de agressões, inclusive os autores delas.”
De 2013 até o ano passado, houve 451 homicídios de mulheres em Belo Horizonte, uma taxa de 4,88 casos para cada 100 mil mulheres durante todo o período. Essas mortes ocorreram por razões diversas, não somente violência de gênero. A partir dessa informação, os pesquisadores procuraram os nomes das vítimas de homicídio na base de dados de violência doméstica, que abrangia episódios registrados entre 2013 e 2018. Das 451 mulheres assassinadas, pelo menos 67 (15%) haviam denunciado à polícia que sofreram violência doméstica. A taxa de homicídios específica para esse grupo se mostrou dezessete vezes maior que a geral e chegou a 84,9 assassinatos por 100 mil mulheres. O tempo médio entre o registro das agressões e a morte da denunciante foi de 306 dias.
A situação se revelou ainda pior quando a vítima sofreu violência doméstica repetidas vezes. Entre as mulheres que registraram duas ou mais ocorrências naquele período, 35 foram assassinadas. A taxa de homicídios desse grupo aumentou para 146,29 por 100 mil mulheres, o que corresponde a uma probabilidade trinta vezes maior de elas serem mortas em comparação às habitantes de Belo Horizonte em geral. Já o intervalo médio entre a última denúncia e o assassinato diminuiu. Foi de 149 dias.
Outro fato alarmante é o tempo de tramitação desses processos na Justiça. Após filtrarem os dados, os pesquisadores chegaram a 2.691 ações passíveis de análise. Destas, 232 resultaram em condenação (8,6%), 386 em absolvição (14,3%) e as demais (77%) não foram a julgamento até o término do estudo. Entre a denúncia da vítima às autoridades policiais e o julgamento do caso, decorreram em média 555 dias. O processo mais demorado levou 1.049 dias para ser julgado. A média de 555 dias acabou sendo bem maior que o intervalo médio entre a denúncia e o homicídio das denunciantes. Ou seja: muito provavelmente, quando o Judiciário desse uma sentença para o agressor, a vítima já estaria morta.
De todas as variáveis analisadas pelos pesquisadores, a de maior impacto sobre a chance de o agressor praticar novas violências é a sua absolvição. Nos casos em que o réu foi absolvido, verificou-se uma probabilidade 133% maior de ele voltar a agredir a mesma vítima. “É necessário um monitoramento muito rigoroso dos agressores, inclusive daqueles que passaram por tratamento psicológico, já cumpriram pena ou usaram tornozeleiras eletrônicas para se manterem longe da vítima. Os dados comprovam que o agressor não interrompe a prática de violência contra a mulher. Aliás, nos casos de reincidência, o tempo entre as agressões tende a diminuir e as chances de as vítimas serem assassinadas se tornam muito altas”, avalia Silva.
Ludmila Ribeiro, sub-coordenadora do projeto do Crisp-UMG e também doutora em Sociologia, aponta alguns caminhos para reduzir essas lacunas temporais entre denúncia e julgamento. Um deles se refere à urgência de informatizar a área criminal. “A título de exemplo, da forma como ocorre hoje em dia em Belo Horizonte, todas as apreciações no âmbito da justiça, por não serem informatizadas, são muito mais lentas e demoradas”, explica.
“Outro problema decorre do fato de que, nesses casos, valoriza-se muito pouco o depoimento da vítima. Há uma certa desvalorização desse depoimento e, quando existem muitas testemunhas envolvidas, a dificuldade para se colher o testemunho passa a ser outro entrave para o andamento do processo”, analisa. Todos esses aspectos fazem com que o avanço das leis em termos de criminalização da violência doméstica não se reflita necessariamente na redução da impunidade.
Os lares de Belo Horizonte presenciaram 116.232 episódios de violência doméstica entre 2013 e 2018, segundo os registros oficiais. Houve desde ameaças até lesões corporais e homicídios. Independentemente do tipo, a violência obedeceu a certos padrões. Aconteceram mais casos de outubro a dezembro e menos em junho e julho. O domingo foi o dia da semana com mais ocorrências e a sexta-feira, com menos. As agressões se concentraram principalmente entre o início da tarde e a madrugada, sobretudo nos finais de semana.
“Outro fator que merece destaque é a dispersão da violência doméstica pela cidade”, ressalta Silva. “Embora existam alguns pontos de BH onde as agressões prevaleçam, nos deparamos com registros de conflito em praticamente toda a capital.”
Boa parte das vítimas era do sexo feminino (95,1%) e parda (48,3%), tinha entre 35 e 44 anos (23,1%) ou entre 18 e 24 anos (17,9%), dizia-se solteira (44,5%) e declarava como grau de escolaridade o ensino médio (30,6%). Quase 60% delas definiam os autores das agressões como cônjuges/companheiros ou ex-cônjuges/ex-companheiros. Tais autores, por sua vez, eram geralmente do sexo masculino (90,1%) e pardos (43,5%), tinham entre 35 e 44 anos (27,8%), diziam-se solteiros (37,2%) e não haviam completado o ensino fundamental (29%).
Quanto ao tratamento dos casos de violência doméstica no Judiciário, a chance de condenação do agressor aumentava se ele e a vítima mantinham uma relação conjugal. Essa probabilidade, quando comparada a outros tipos de relacionamento (pais, avôs, primos, netos etc), era 94% maior nas situações em que os agressores eram cônjuges/companheiros das vítimas e 90% maior naquelas em que eram ex-cônjuges/ex-companheiros.
Apesar disso, o estado civil declarado pela vítima no momento da denúncia também influía no resultado do julgamento: a chance de condenação caía 32% quando ela se dizia casada ou em união estável, em comparação às mulheres que se apresentavam como solteiras ou divorciadas. Se a vítima permanecia com o agressor, portanto, era menos provável que ele fosse responsabilizado judicialmente pela violência. A cor da pele se mostrou outro fator de influência: caso autor e vítima se declarassem não brancos, a probabilidade de condenação do agressor era 61% maior do que aquela em que vítimas ou autores se declaravam brancos.
“Precisamos transmitir cada vez mais a mensagem de que a violência doméstica é um assunto muito sério, que a sociedade deve sempre debater. Não podemos simplesmente naturalizar o problema. É necessário acabar com a máxima de que, em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher. O Estado tem que meter a colher, sim — e o quanto antes, melhor”, conclui Silva.