O microcrédito é um engodo do neoliberalismo?

‘O microcrédito, basicamente, alimenta o tipo errado de empresas – microempresas informais e empreendimentos de autoemprego’
Apresentado como grande solução para a pobreza por meio do financiamento de empreendimentos individuais, o microcrédito, defendido pelo Banco Mundial e por instituições privadas gera autofagia nas comunidades carentes, agrava o problema que pretende resolver e é um engodo neoliberal, defende o professor de economia da Universidade de Juraj Dobrila, na Croácia, Milford Bateman.

“Para quem é rico na América Latina e odeia a ideia de que os pobres possam se tornar ‘empoderados’ e consigam eleger um governo que venha a tirar parte de sua riqueza por meio de impostos, é ótimo encarregá-los de resolver sua própria pobreza através de microempresas e sem intervenções do Estado”, dispara Bateman.

O especialista veio ao Brasil para participar do Fórum do Desenvolvimento, em dezembro, em Belo Horizonte. No evento, organizado pela Associação Brasileira de Desenvolvimento (ABDE), Banco Interamericano de Desenvolvimento e Organização das Cooperativas Brasileiras, Bateman concedeu com exclusividade a CartaCapital a entrevista a seguir.

CartaCapital: O microcrédito, na sua análise, não só não reduziu a pobreza, conforme prometeram o Banco Mundial e muitos economistas neoliberais, mas aprofundou-a e criou a armadilha da pobreza adicional. Como explicar isso?

Milford Bateman: Há muitos motivos, mas três são os mais importantes. Em primeiro lugar, Muhammad Yunus (ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 2006, pai do microcrédito e dos negócios sociais, fundador do Grameen Bank e de dezenas de empresas em Bangladesh) cometeu um erro muito básico ao assumir que a maneira de resolver a pobreza em Bangladesh e no restante do mundo em desenvolvimento era usar microcrédito para ampliar o fornecimento de itens e serviços simples necessários aos pobres.
Com esse suporte, um fabricante de cestas em uma aldeia, por exemplo, poderia ser seguido por muitos mais, pensou Yunus, e todos eles escapariam da pobreza vendendo cestas.

Em essência, Yunus acreditava que o fornecimento adicional de cestas que ele ajudava a aumentar com o microcrédito criaria demanda suficiente na comunidade para que todos pudessem vender suas cestas para seus vizinhos igualmente pobres e assim, criar um fluxo de renda com o qual escapar da pobreza.

No entanto, essa suposição de que “a oferta cria sua própria demanda” é, na verdade, uma das principais falsidades registradas na história econômica, conhecida pelos economistas como Lei de Say, completamente mal entendida por Yunus.

A realidade em geral é que em todas as comunidades pobres não é o fornecimento de itens ou serviços simples que é o problema, mas a falta de dinheiro (demanda efetiva) para realmente pagar por essas coisas.

Portanto simplesmente adicionar mais vendedores de cestas, comerciantes de rua ou vendedores de fast food para a economia local, com a ajuda do microcrédito, geralmente apenas toma demanda e clientes de microempresas existentes que já estão lutando para operar nessas áreas. O erro de Yunus se parece com o cometido por aqueles que durante muito tempo argumentaram que a fome foi causada por “falta de comida” e que “maior disponibilidade de comida” rapidamente remediaria o problema.

Esta visão de senso comum evidenciou-se como bastante errada quando o vencedor do prêmio Nobel de Economia em 1998, Amartya Sen, mostrou que o principal problema na criação da fome moderna (inclusive em Bangladesh) é, na verdade, o poder de compra limitado dos pobres que os impede de comprar alimentos, com frequência amplamente disponíveis em regiões assoladas pela fome. Numerosas novas microempresas ajudarão a fazer duas coisas:

1) deslocarão as microempresas existentes, de modo que novos empregos serão criados na nova microempresa abastecida com microcrédito, mas muitas vezes um igual número de empregos será fechado naquelas que já funcionavam no local. Só porque um vilarejo passa a ter muito mais cabeleireiros não significa que todos irão aumentar a quantidade de vezes que eles cortarão o cabelo e assim mantê-los todos no negócio.

2) Há a questão das saídas, que é quando as microempresas novas e existentes se fecham devido à falta de demanda. Sabemos que a saída é muito alta no Sul global, de modo que muitas microempresas vão à falência e seus proprietários saem perdendo em vários aspectos (garantias, investimentos, contatos sociais, reputação, etc.).

Agora, embora existam algumas pessoas que tornam suas microempresas bem sucedidas, e nós as vemos na publicidade das principais instituições financeiras e nos sites do Banco Mundial, o impacto líquido global do surgimento de muitas microempresas é quase igual a zero.

Dá a impressão de que uma economia local dinâmica está sendo criada, mas, de fato, a maioria dos pequenos empreendedores constata que é cada vez mais difícil a luta para sobreviver e o único meio de fazer isso é tomar clientes de seus vizinhos, ou então sair negócio e perder seu dinheiro, o que acontece com grande frequência.

Mas as agências de desenvolvimento e Muhammad Yunus só querem saber dos poucos casos de sucesso. Às vezes, como na África do Sul, depois do colapso do apartheid, o surgimento de inúmeras microempresas criadas por pessoas desesperadas pode, às vezes, levar a um colapso bastante dramático na média dos rendimentos.

O que acaba acontecendo é simplesmente a distribuição da pobreza entre todos os pobres de forma mais uniforme. É um objetivo cruel e inútil exigir que os pobres produzam algo na comunidade que na sua maioria não é necessário para escapar de sua pobreza, quando isso só criará um mercado ultracompetitivo onde preços e salários vão para baixo naquilo que foi chamado de “corrida para o fundo”.

No entanto, para quem é rico na América Latina e odeia a ideia de que os pobres possam se tornar “empoderados” e consigam eleger um governo que venha a tirar parte de sua riqueza por meio de impostos ou pior que isso, então é ótimo o pobre ser encarregado de resolver sua própria pobreza através de microempresas e sem intervenções do Estado, competir nos negócios e sobreviver ou, simplesmente, morrer. Se eles permanecem pobres, então as elites podem argumentar que talvez não queiram tentar escapar de sua pobreza – culpando, assim, os pobres pela pobreza, o que os neoliberais fizeram por muitos anos.

Como Yunus frequentemente alega, a principal razão de ter recebido tanto apoio financeiro do governo dos Estados Unidos e de fundações privadas estadunidenses é ter argumentado que “o microfinanciamento existe para ajudar a levar o capitalismo aos pobres”.

Se os pobres puderem ser convencidos de que agora são (micro) capitalistas, as elites esperam claramente que assim eles parem de se revoltar contra a enorme desigualdade, o subinvestimento e a exploração que todo economista sabe que realmente cria a pobreza.

Em segundo lugar, a longo prazo a única maneira real de criar empregos decentes e sustentáveis, desenvolvimento e crescimento é através de investimentos em empresas que operam em escala suficiente, podem implantar algumas tecnologias, são capazes de inovação, estão formalmente registradas e conseguem se conectar, vertical e horizontalmente, a outras empresas para compartilhar conhecimento, habilidades e tecnologias localmente.

Esse tipo de empresas, que são principalmente as pequenas e médias empresas formais, estão desesperadas por investimento de capital em toda a América Latina, porque desejam crescer e elas geralmente podem crescer.

Mas, como mostra o Enterprise Surveys, do Banco Mundial, nos países em desenvolvimento elas simplesmente não estão obtendo o investimento de que precisam! Por outro lado, as microempresas informais conseguem mais investimentos do que dão conta de gerir e é por isso que há tantos pobres que tomaram microcrédito e estão profundamente endividados.
Assim, o setor de microcrédito, basicamente, alimenta o tipo errado de empresas – microempresas informais e empreendimentos de autoemprego – enquanto o tipo certo, as PMEs formais, morre de fome.

Esta é uma das razões mais importantes pelas quais tantas economias locais da América Latina estão entrando em colapso sob o peso das empresas informais que não são impulsionadas pelo crescimento, ao mesmo tempo em que emergem cada vez menos negócios formais que podem ser estimulados pelo crescimento e reduzir a pobreza.

O modelo de microcrédito é, portanto, a longo prazo, o encaminhamento de países em desenvolvimento totalmente na direção errada! Em terceiro lugar, o microfinanciamento a partir da década de 1990 tornou-se um negócio com fins lucrativos e isso resultou em muitos desastres do estilo daqueles de Wall Street para os pobres, incluindo fraudes, quebras e exploração através de altas taxas de juros e comissões.

Agora temos uma situação em que os envolvidos na oferta do microcrédito como presidentes, gerentes seniores e investidores de instituições e empresas estão fazendo bilhões de dólares em salários, bônus, compartilham vendas, dividendos, ganhos de capital, etc., enquanto os pobres descobrem que o microcrédito não proporciona nenhum benefício real para as suas comunidades, como já mencionei.

O microcrédito é o novo instrumento financeiro subprime para o Sul global. Devemos lembrar que o crescimento dos empréstimos hipotecários subprime nos EUA depois de 1990 foi justificado pelo CitiGroup, Goldman Sachs e outros com base em que “eles ajudariam as minorias a ter acesso à habitação” e, apenas coincidentemente, essas instituições fizeram bilhões de dólares com essa atividade.

Da mesma forma, o crescimento do microcrédito tem sido justificado pelos seus fornecedores com base em que eles “querem resolver a pobreza”. Tal afirmação é tanto uma mentira transparente como uma alegação de Wall Street de que eles procuraram beneficiar os pobres fornecendo hipotecas de baixa qualidade.

CC: De que modo o microcrédito se transformou, segundo o senhor afirma, num obstáculo importante para o desenvolvimento econômico e social sustentável?

MB: Devido aos três problemas fundamentais acima mencionados, o microcrédito não pode funcionar. Muitos dos seus defensores agora aceitam isso. As enormes somas de dinheiro dispendidas para apoiar microempresas informais e empreendimentos de auto-emprego são dinheiro perdido que poderia ser empregado de maneiras muito melhores de ajudar a reduzir a pobreza.

Nós, nas economias desenvolvidas, não resolvemos grande parte da nossa pobreza maciça com o microcrédito, mas com um apoio financeiro de grande escala para as PMEs e as grandes empresas, junto a grandes investimentos em tecnologia e infra-estrutura, para criar o melhor ambiente possível em que essas empresas poderiam desenvolver, crescer e empregar mão-de-obra qualificada.

CC: Por que as microfinanças se encaixam bem na agenda neoliberal do mundo desenvolvido?

MB: O acordo do pós-guerra baseou-se na gestão da demanda keynesiana, que basicamente assegurava um emprego quase pleno e uma redução dramática da pobreza. Isso foi considerado necessário para recompensar aqueles que lutaram na guerra e desejavam conquistar a paz também.

Este importante objetivo exigiu a intervenção do Estado para assegurar o investimento nas empresas certas de modo a criar empregos decentes. Os neoliberais, no entanto, vêem o papel do estado ruim para sempre, independentemente das evidências em contrário. A ideologia central de Friedrich Hayek e Milton Friedman baseia-se no pressuposto de que a riqueza é criada apenas por indivíduos particulares e esforço próprio.

O microfinanciamento é a aplicação de tais ideias neoliberais na prática no Sul global para apoiar e celebrar a atividade individual e o esforço próprio.

Assim, o microfinanciamento não pode ser visto como algo ruim, pois isso invalidaria a crença central dos neoliberais de que somente os indivíduos criam riqueza e, além disso, não precisam do Estado para gerá-la.

Evidenciaria ainda que a riqueza é realmente criada pela sociedade e as instituições que ela estabeleceu e pelas quais votou enquanto um conjunto e não como indivíduos, o que poderia significar que a desigualdade é algo muito errado — se todos contribuímos para criar riqueza, por que só uns poucos a tomam para si?

CC: Por que é tão importante para o pensamento econômico dominante disseminar a ideia de que o microcrédito é mais relevante do que ele realmente é?

MB: Há dois motivos principais. O primeiro deles é como o microcrédito reflete a ideologia neoliberal, que ainda é, apesar do colapso em Wall Street e em outros lugares, dominante no mundo.

Se você reduz a importância do microcrédito, diminui também a importância do esforço empresarial privado pelos pobres e, portanto, você arrisca ainda que os pobres possam aspirar o comando do Estado e implantar todas as suas “capacidades coletivas” para melhorar sua posição. Isso é algo a que o governo dos Estados Unidos e o Banco Mundial resistiram de forma muito agressiva desde 1945 e antes disso, através da intervenção militar, golpes, subornos, etc.

O outro motivo é que o microcrédito agora é tão lucrativo para uma pequena elite financeira liderada por Wall Street que eles se recusam a permitir sua eliminação. Eles precisam manter essas estruturas para que elas possam maximizar os seus retornos.

Precisam ainda mostrar que “funciona” para manter os governos dos países em desenvolvimento de acordo com eles.

CC: O principal problema é o próprio microcrédito ou o nível de interesse e os preços sobre a renda dos pobres?

MB: O principal problema é, conforme mencionei, que o microcrédito não pode funcionar em pequenas comunidades pobres onde a pobreza é definida pela falta de poder de gasto. O microcrédito não pode criar desenvolvimento e crescimento no longo prazo porque ele banca e desvia quantidades maciças de dinheiro para apoiar totalmente as empresas erradas. O microcrédito tornou-se um negócio com fins lucrativos e pode ser usado para gerar enormes quantidades de valor que uma pequena elite captura.

Sim, as taxas de juros elevadas são um problema, como no Banco Compartamos no México, onde superam 90% e atingem até 195% em alguns produtos financeiros, mas o problema real é o próprio conceito de microcrédito, que simplesmente não funciona como uma intervenção de desenvolvimento na forma como querem os seus defensores.

Curiosamente, os últimos papers do Banco Mundial mostram que eles agora caminham no sentido de aceitar esta minha posição. Um documento de trabalho de Cull e Morduch, de novembro de 2017, reconhece que o microfinanciamento não funcionou.

Eles só conseguem defender sua existência contínua argumentando que, no entanto, ajuda a remediar os problemas de liquidez que os pobres têm. Um pequeno benefício para uma intervenção tão maciça, mas é tudo o que eles têm!

Outro artigo, de McKenzie e Paffhousen, daquele mesmo mês, finalmente aceita que a microempresa tem uma taxa de mortalidade muito alta e que, quando elas desmoronam, tendem a deixar os pobres em uma posição muito pior. Portanto alguns conseguem, mas muitos mais fracassam, como sempre argumentei, e essa alta taxa de insucesso agora está preocupando os economistas do Banco Mundial.

Carta Capital

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