Os horrores do regime militar: a farsa que se transformou na maior tragédia do Brasil

josegeraldoPor José Geraldo de Santana Oliveira*

Há séculos, o dia 1º de abril é considerado, em vários países, como sendo o da mentira. A versão mais conhecida para a origem desta pecha vem da França e remonta-se a 1582, século XVI, quando o Rei Henrique III adotou, por decreto, o calendário gregoriano, que estabeleceu o dia 1º de janeiro como sendo o primeiro do ano. Até aquela data, as festas comemorativas à chegada ao ano novo francês estendiam-se de 25 de março, data de seu início pelo calendário juliano, a 1º de abril. Com o novo calendário, este dia perdeu a condição de dia festivo e passou a ser o da data de uma festa que não havia mais.

No Brasil,  o dia 1º de abril tornou-se  o da mentira lá pelos idos do século XIX, a partir de um boato, nesta data, sobre a morte do imperador Pedro II.

No entanto, desde o ano de 1964, portanto há exatos 50 anos, o dia 1º de abril transformou-se no inapagável símbolo da maior tragédia que já se abateu sobre o país, pois que foi o dia do golpe militar, que durante os 21 anos seguintes infernizou e martirizou a nação.

O dia 1º de abril de 1964 representa para o Brasil o que a noite de São Bartolomeu representou para os protestantes franceses, em 1572, quando se iniciou o seu impiedoso massacre, pelos católicos, com o explícito apoio do Rei Carlos IX. Esse massacre teve duração de vários meses, culminando com a morte de milhares de protestantes indefesos.

Porém, há algumas diferenças entre a noite de São Bartolomeu e o golpe militar, perpetrado ao 1º de abril de 1964. Naquela, o alvo eram protestantes; a sua duração fora de meses; e o organizador fora o próprio Estado. Neste, o alvo foram os trabalhadores e todos quantos pugnavam pela liberdade e pela construção de um regime social menos desigual; a sua duração superou as mil e uma noites da lenda árabe de Sherazade, chegando a mais de 8 mil; e fora orquestrado e levado a cabo por mentirosos contumazes, civis, na maioria, grandes capitalistas e latifundiários, e militares, sendo executado e mantido a ferro e fogo, por estes, com o indecente apoio logístico daqueles, contra o governo de João Goulart, legitimamente constituído.

O golpe militar de 1964, de triste e sangrenta memória, representou para o povo brasileiro um período de logro e de terror, ou, como o jornalista mineiro Teófilo Otoni – principal redator do jornal “A Sentinela do Serro, de convicções politicas liberais exaltadas (democrata, na concepção de hoje) e uma das primeiras vozes republicanas do Brasil, nos idos do século XIX -, classificou o dia 7 de abril de 1831, data da abdicação do trono pelo Imperador Pedro I, como uma verdadeira jornada de logrados, “Journée des Dupes”, pois que, àquela época, como em 1964, traiu-se vergonhosamente o povo.

É bom que se diga às gerações que não vivenciaram tais dias de horrores desde o seu nascedouro que a quartelada de 1º de abril de 1964 representou o desfecho de uma sórdida trama, que já vinha sendo urdidas há anos, principalmente a partir da renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961, exatamente para impedir a posse de João Goulart, um democrata convicto, o que não era tolerado pelos militares e civis golpistas.

O historiador Hélio Silva, em seu livro “A Fuga de João Goulart 1962/1963” – Editora Três, 1998, página 142 -, registra:  “(…) Assim é que, desde a posse de João Goulart, que aceitaram a contragosto, os militares entraram, francamente, a conspirar contra o regime”.

Corrobora essa assertiva o manifesto do  marechal Henrique Lott aos seus colegas das Forças Armadas e ao povo brasileiro, logo após a renúncia de Jânio Quadros, assim exarado:

 “Aos meus camaradas  das Forças Armadas e ao povo brasileiro.

Tomei conhecimento, nesta data, da decisão do sr. Ministro da Guerra, marechal Odílio Dennys, manifestada ao Governador do Rio Grande do Sul, através do deputado Rui Ramos, no Palácio do Planalto, em Brasília, de não permitir que o atual presidente da República, dr. João Goulart, entre no exercício de suas funções e, ainda, de detê-lo no momento em que pise o território nacional. Mediante ligação telefônica, tentei demover aquele eminente colega da prática de semelhante violência, sem obter resultado. Embora afastado das atividades militares, mantenho compromisso de honra com a minha classe, com a minha pátria e com as suas instituições democráticas e constitucionais. E, por isso, sinto-me no indeclinável dever de manifestar o meu repúdio à solução anormal e arbitrária que se pretende impor à nação. Dentro desta orientação, conclamo todas as forças vivas da nação, as forças da produção e do pensamento, dos estudantes e intelectuais, operários e o povo em geral, para tomar posição decisiva e enérgica pelo respeito à Constituição e preservação integral do regime democrático brasileiro, certo, ainda, de que meus nobres camaradas das Forças Armadas saberão portar-se à altura das tradições legalistas que marcam a sua história nos destinos da pátria.”

É igualmente imperioso que se registre que os falsários de 1º de abril de 1964 contaram com o decisivo apoio do Congresso Nacional, tendo à frente o seu presidente, senador Auro de Moura Andrade, que, aos 2 de abril de 1964, de forma despudorada e claramente golpista, fez aprovar a declaração de vacância do cargo de presidente da República, não obstante a mensagem que, nessa data, fora-lhe encaminhada pelo então chefe do Gabinete Civil da Presidência da República, o saudoso professor Darcy Ribeiro, assim exarada:

“Brasília, 2 de abril de 964.

Senhor presidente,

O senhor presidente da República incumbiu-me de comunicar a Vossa Excelência que, em virtude dos acontecimentos nacionais das últimas horas, para preservar de esbulho criminoso o mandato que o povo lhe conferiu, investindo-o na Chefia do Poder Executivo, decidiu viajar para o Rio Grande do Sul, onde já se encontra à frente das tropas militares legalistas e no pleno exercício dos poderes constitucionais, com seu Ministério.

Atenciosamente,

Darcy Ribeiro – Chefe do Gabinete Civil”

Mesmo de posse dessa mensagem, o golpista Auro Moura Andrade, em sessão solene do Congresso Nacional, declarou, de maneira impudica e desavergonhada: “O sr. Presidente da República abandonou o Governo… A acefalia continua. Há necessidade de que o Congresso Nacional, como poder civil, imediatamente tome atitude que lhe cabe, nos termos da Constituição, para o fim de restaurar, na pátria conturbada, a autoridade do Governo, a existência do Governo. Não podemos permitir que o Brasil fique sem Governo, abandonado. Recai sobre a mesa a responsabilidade pela sorte da população do Brasil em peso. Assim sendo, declaro vaga a Presidência da República. E, nos termos do art. 79 da Constituição Federal, investido no cargo, o presidente da Câmara dos Deputados, sr. Ranieri Mazzilli. Está encerrada a sessão” – Hélio Silva, apud, página 153.

Este ato golpista, que serviu de senha para a confirmação dos farsantes no poder, maculou a história do Congresso Nacional e do Brasil por todo o sempre. O seu desfecho foi tão desastroso, que, ao final de 2013, o mandato do presidente João Goulart foi-lhe simbolicamente devolvido, pelo mesmo Congresso Nacional, agora, é claro, não mais sob a Presidência do serviçal da ditadura, Auro Moura Andrade.

Este ato simbólico de devolução póstuma do mandato do presidente João Goulart representa, por assim dizer, o lema dos inconfidentes, de 1789: “Libertas quae sera tamen” (Liberdade, ainda que tardia).

Passados exatos 50 anos da farsa de 1º de abril de 1964, que, repita-se, transformou-se na maior tragédia do Brasil, em todos os tempos cabe perguntar: o que ficou deste cruento período da história brasileira? O que há para ser lembrado?

Ficaram marcas indeléveis, de sangue, suor e lágrimas; mais de 1.500 intervenções em entidades sindicais, com a cassação e a perseguição de seus dirigentes, legitimamente eleitos; centenas de mortos, dentre os quais  o  estudante Edson Luiz, Manoel Fiel Filho e Vladimir Herzog, dentre outros, e de desaparecidos políticos, tais como Rubem Paiva e Honestino Guimarães, e muitos tantos outros; cassação de mandatos legítimos, como o do deputado federal Márcio Moreira Alves, que serviu de pretexto para o golpe, dentro do golpe, em 1968; a desbragada corrupção; o brutal endividamento público, interno e externo; o incomensurável retrocesso político; o lixo atômico, metaforicamente falando, do fechamento do Congresso Nacional, da supressão de eleições presidenciais até o ano de 1989, o  Ato Institucional N.5/1968, o Decreto N. 477/68, e incontáveis outros, tão letais quantos estes.

Quanto ao que comemorar, com certeza nenhum democrata convicto é capaz de apontar um só ato da ditadura militar que mereça aplauso; ao contrário, só os há aqueles que merecem desaplausos (repúdio), para parafrasear o magnífico romancista mineiro, Guimarães Rosa.

Porém, essa fatídica data não deve jamais ser esquecida, para que a atual e as futuras gerações possam, além de conhecer a pior fase da história brasileira, prevenir-se para que, em tempo algum, haja lugar para novo golpe, seja de que natureza for.

Aos farsantes de 1964 a 1984, o lixo da história; aos que tombaram na luta contra eles e ao povo brasileiro, o panteão.

*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee

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