Panelas vazias, ruas cheias
Paralisação ocorrida há 60 anos em São Paulo, conhecida como Greve dos 300 mil, lançou luz sobre dificuldades econômicas e iniciou uma nova organização do movimento sindical
Passeata na Av. São João, no centro de São Paulo
No final de março de 1953, uma comissão denominada Estudos e Combate à Carestia da Vida, em São Paulo, clamava por uma “solução imediata da situação de angústia e calamidade pública em que se encontram os trabalhadores e o povo em geral”. Estava para começar a chamada Greve dos 300 mil, movimento que uniu cinco categorias por quase um mês e representou o embrião de organizações intersindicais que dariam o tom dali em diante, pelo menos até 1964. Não era pouca gente: a população da cidade em 1950 era de 2,1 milhões. Mais do que o resultado econômico em si (basicamente, 32% de reajuste, ante uma reivindicação de 60%), foi também um desafio à legislação antigreve da época. E o questionamento sobre indicadores de custo de vida começaria a dar corpo a um instituto de pesquisas dos próprios trabalhadores, que surgiria dois anos depois.
Eram tempos difíceis. Na década de 1950, como lembra o pesquisador Murilo Leal, havia inicialmente escassez de produtos básicos – talvez ainda consequência do pós-guerra – e posteriormente uma alta da inflação. No final daquele período, observa no livro A Reinvenção da Classe Trabalhadora (1953-1964), “o abastecimento popular não estava plenamente regularizado e apresentaram-se novas dificuldades decorrentes da corrosão dos salários”.
“Essa greve é o marco de um processo de conquista de legitimidade”, diz Leal, professor de História do Brasil na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Ela desafia a legislação que vem do final do Estado Novo, com o exercício do direito de sair à rua, da mobilização. Conquista esse direito na prática.” A Constituição de 1937, criada sob influência do Estado Novo, a ditadura varguista, instituía a Justiça do Trabalho para dirimir conflitos e era dura, para dizer o mínimo, na definição de greves. Em seu artigo 139, estabelecia: “A greve e o lock-out são declarados recursos antissociais nocivos ao trabalho e ao capital e incompatíveis com os superiores interesses da produção nacional”.
Segundo Leal, o movimento teve dois componentes básicos. O primeiro, o pedido de aumento salarial para as categorias (metalúrgicos, têxteis, gráficos, marceneiros e vidreiros). “Havia também a reivindicação que vai marcar as greves de todo aquele período, que é o congelamento de preços dos gêneros da cesta básica.”
Reorganização
O pesquisador observa que o país passava por certo momento de “descompressão”, após um período de perseguição sistemática aos sindicatos. Depois de um processo de reorganização sindical – “mais dentro da fábrica”, aponta Leal –, o governo Dutra interveio em centenas de entidades em 1948. De volta ao poder em 1950, Getúlio Vargas encontra um movimento sindical esvaziado. E inicia “uma abertura tênue”, que vai dando seus passos. Em 1952, o presidente extingue a exigência do atestado de ideologia – a CLT vedava a eleição em entidades de representação profissional daqueles que tivessem “ideologias incompatíveis com as instituições ou os interesses da Nação”. Em meados do ano seguinte, nomeia João Goulart para o Ministério do Trabalho.
O pesquisador Hélio da Costa, do Instituto Observatório Social, vê na greve de 1953 “a grande retomada do movimento sindical depois de um período de repressão do governo Dutra” e com alguma distensão promovida por Vargas. E o movimento, segundo ele, de certa forma “atravessa” os sindicatos, já que tem como base a organização nos locais de trabalho, com comissões de greve e de salários. Um dos trabalhadores organizados na Elevadores Atlas, por sinal, era um jovem de 20 anos ligado ao Partido Socialista chamado Paul Singer, hoje secretário de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego.
Comunistas
Socialistas e comunistas lideravam o movimento. Costa cita nomes como Antônio Chamorro, “o Lula da época”, e Carlos Marighella. Em biografia sobre o líder comunista publicada no ano passado, o jornalista Mário Magalhães lista outro militante, que se tornaria conhecido no meio esportivo: “João Saldanha, o Souza, foi o pombo-correio que transmitiu as instruções de Marighella aos sindicalistas do PCB em 1953.”
Costa lembra ainda que, nesse período, o sindicalismo entra na rota dos líderes políticos, de várias tendências, tornando-se “objeto de disputa não só da esquerda, mas também ao centro e à direita”, com a maioria tentando criar suas bases sindicais. Mas muitos adotam posturas “hesitantes” em relação ao movimento. “Essa atitude vai permear os anos 50 e 60: ora dialoga, ora negocia, ora, por pressão de empresários, vai reprimir os trabalhadores”.
Segundo o pesquisador, um dos legados da greve dos 300 mil foi a articulação entre os sindicatos, que resultou, por exemplo, no Pacto de Unidade Intersindical, o PUI. “De certa forma, é uma ruptura da estrutura sindical e suas limitações. O movimento sindical dá um salto de qualidade organizativo”, observa. Posteriormente, surgiria o Pacto de Unidade e Ação (PUA), criado já no governo João Goulart, e o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), entidade de cúpula que reuniria os principais líderes sindicais do período – mas teria vida curta, devido ao golpe de 1964.
Antes disso, e na sequência dos movimentos iniciados em 1953, o movimento sindical criaria no final de 1955 um instituto de estudos e pesquisas, em contraponto aos formuladores de índices econômicos da época, considerados suspeitos. “O Dieese faz parte dessa rearticulação e da reivindicação dos trabalhadores de ter uma entidade em que confiassem, que fosse uma referência”, afirma Hélio da Costa. Para Murilo Leal, a criação do Dieese surgiu a partir de uma “aliança com economistas e outros intelectuais por uma outra verdade sobre o mundo do trabalho”. Foi um “movimento de contra-hegemonia”, define.
Da Rede Brasil Atual