Plataformas digitais transformam o tempo de trabalho e provocam mudança nos valores da sociedade

O advento de novas tecnologias digitais impacta fortemente sobre os mais diferentes aspectos da experiência humana – e o mundo do trabalho é um dos universos que vivencia mais intensamente essas transformações. Entre tantas mudanças, uma das mais profundas certamente incide sobre a relação em torno do horário de trabalho. Antes um dos pilares do chamado estado de bem-estar social, a jornada fixa está cada vez mais esvaziada, na medida em que se consolida um imaginário em torno de formas menos formais e supostamente flexíveis de vínculo. Um fenômeno diretamente conectado ao uso de aplicativos, em uma gestão algorítmica do trabalho que faz as pessoas trabalharem mais, por mais tempo, em horários indesejados – tudo isso enquanto acredita estar fazendo as próprias escolhas.

Em conversa com o Democracia e Mundo do Trabalho em Debate – DMT, o Doutor em Economia Social do Trabalho e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Cássio da Silva Calvete, explica boa parte dos mecanismos que atuam nesse cenário em transformação. Em sua visão, essa nova forma de gestão da força de trabalho atinge as três dimensões fundamentais do tempo de trabalho: a extensão, a intensidade e a distribuição. Sempre no sentido de exigir mais de trabalhadores e trabalhadoras, ao mesmo tempo em que produz uma força de trabalho disponível às empresas de aplicativo em tempo integral, vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana.

O ponto de partida para essa entrevista é o artigo “Tempo de trabalho nas plataformas digitais: o suprassumo do tempo do trabalhador”, produzido por Calvete no contexto de uma pesquisa de pós-doutorado na Universidade de Oxford, na Inglaterra. Devido às dificuldades surgidas no contexto da pandemia de Covid-19, o estudo segue inconcluso. A pesquisa conta com o apoio da CAPES.

DMT – No passado, o horário fixo de trabalho era uma exigência dos empregadores para ter controle sobre a atuação do empregado. Atualmente, essa situação parece ter mudado, e aumenta o interesse em uma relação mais difusa entre o tempo de trabalho e o de não-trabalho. Quais são os mecanismos que geram essa mudança?

Cássio da Silva Calvete – Em aulas, eu costumo dizer que há algumas bandeiras que mudam de mãos. A jornada rígida de trabalho é uma dessas bandeiras. O capital adotou essa bandeira a partir do início da segunda revolução industrial, na forma do “five dollars a day” do Ford. Ele paga cinco dólares por dia em um período no qual se pagava, em média, dois dólares, mas exige a jornada rígida: entrar no trabalho às oito, fazer uma pausa para almoço ao meio dia, retornar às duas e trabalhar até às seis da tarde. De início, o trabalhador não queria essa jornada, ela surgiu como exigência do capital. Mas passado um século, depois de um período em que o trabalhador se habitou e a sociedade se adaptou a uma jornada mais rígida e à existência de um local de trabalho – porque o fordismo tinha muito disso, de lugares distintos para o trabalho e o lazer – surgem leis que vão limitando a jornada de trabalho, limitando a hora extra e inclusive regulando a intensidade desse trabalho. Temos regulação de pausas para lanche, trocas de função, não pode trabalhar de madrugada, não pode trabalhar sábado e domingo…

Na crise do modelo fordista, lá nos anos 1970, há uma menor lucratividade do capital, uma queda da produtividade, e o capital tenta se adaptar, e passa a buscar formas de romper com essa rigidez. A essa altura, já temos uma sociedade capitalista avançada, o consumo é um elemento importante. Já nos anos 1990 começamos a ter o banco de horas, a possibilidade de trabalhar aos domingos, trabalhar de madrugada, a terceirização da atividade meio, coisas que vão flexibilizando a jornada. Como o trabalhador já tinha conquistado horários de descanso, jornada de horas bem estabelecidas, férias etc, ele agora não quer essa jornada flexível. Mas o capital quer, porque ele sente a necessidade de fugir dessa regulação da sociedade fordista, da sociedade organizada em torno do estado de bem estar social, que tem como um de seus pilares as relações de trabalho. Os autores falam em terceira e em quarta revolução industrial: a terceira seria entre os anos 1970 e 1990, com o chamado toyotismo, e a quarta seria a atual. Eu ainda tenho dúvidas, e penso que se trata da mesma revolução, que se iniciou nos anos 1970 e se aprofundou agora. Isso a história nos dirá, daqui uns trinta ou quarenta anos teremos essa resposta.

Seja como for, você começa esse movimento de flexibilização para estender a jornada e intensificá-la. Um processo que, no Brasil, teve começo com o modelo neoliberal dos anos 1990, sofreu uma pausa nos governos Lula e Dilma e depois, com o golpe e o governo Bolsonaro, se aprofundou. No mesmo ano em que Michel Temer assume, se faz uma reforma trabalhista extremamente profunda – muito mais do que a que se fez nos anos 1990 – porque se mexeu em todo o Sistema Nacional de Relações de Trabalho – e o governo Bolsonaro mantém esse processo em andamento.

DMT – O que temos vivenciado no Brasil seria, então, uma espécie de segunda etapa nesse processo, se a gente fizer um comparativo com regiões como a Europa e os EUA?

Cássio da Silva Calvete – Na verdade, eu não diria isso. O que a gente percebe é que cada país tem o seu momento, porque é uma luta de classes, e em determinados momentos a classe trabalhadora tem certo poder para barganhar, depois essa capacidade de barganha diminui e o capital avança, e esse processo é distinto de país a país.

No Brasil, essa terceira revolução industrial, digamos assim, começa tardiamente. Quando esse processo começa no mundo, nos anos 1970, a gente vive uma ditadura militar que, ao invés de apostar em mudanças mais profundas, termina o processo de implementação do modelo fordista. Nos anos 1980, a gente vive uma enorme crise de hiperinflação, enquanto o mundo experimenta um momento de intensas transformações tecnológicas. Iniciamos os anos 1990 com crise, com o impeachment do presidente Collor. Em 1994, com o Plano Real, acontece uma grande aceleração das inovações tecnológicas, das mudanças sociais que o mundo já vinha fazendo, e o Brasil acompanha essas mudanças para o bem e para o mal. No governo Lula, essas mudanças para o mal são freadas até certo ponto, em especial as que pioram as relações de trabalho. Há algumas perdas, alguns ganhos, mas no final é um empate. Com o impeachment de Dilma, essas mudanças para o mal se aceleram. Se formos olhar para o mundo…

Peguei três estudos, de três autores diferentes. Um deles analisou 110 reformas trabalhistas nos anos 2000. Outro estudo analisou 130, e o terceiro, 150. Então, o mundo inteiro está fazendo reforma trabalhista. E eu não gostaria de usar a palavra “acompanhar” nesse caso, porque, se digo que essas reformas são para “acompanhar” o avanço tecnológico, dou a entender que é um processo necessário, e eu não acredito nisso. A decisão sobre como será conduzido e organizado esse processo está sempre em disputa. O que acontece neste momento é que o capital está com maior poder hegemônico, o pensamento neoliberal está dominante. Então, as reformas que estão vindo, e que acompanham a evolução tecnológica, são reformas em favor do capital.

Em janeiro de 2019, a Suprema Corte da Califórnia definiu que os trabalhadores entregadores e motoristas teriam, a princípio, vínculo empregatício, pelo menos até que o empregador mostrasse o contrário e provasse que não havia subordinação. A gente olha pelo mundo e há uma disputa enorme no Judiciário em torno disso, os legislativos de alguns países já consagraram esse vínculo, outros decidiram contra isso. A Califórnia tem um peso muito simbólico nesse sentido, porque é na Califórnia que se localiza o Vale do Silício, o berço dessas empresas (de tecnologia baseadas em aplicativos). Isso seria uma derrota enorme para essas empresas. O que aconteceu? Em novembro, junto com as eleições dos Estados Unidos daquele ano, vários estados fizeram plebiscitos, e um plebiscito na Califórnia – sobre o qual essas empresas de aplicativos fizeram um lobby muito forte e jogaram fortunas – foi deliberado que os motoristas e entregadores não são empregados. Para o capital e para as empresas de plataforma, essa é uma conquista importantíssima, que vai se refletir em outras decisões mundo afora.

DMT – Isso nos leva a falar um pouco sobre a importância da retórica para que haja sucesso nessa apropriação do tempo do trabalhador. Ouve-se muito que, com os aplicativos, por exemplo, o trabalhador pode fazer o seu próprio horário – mas, ao mesmo tempo, ele se vê forçado a ficar disponível por períodos maiores, horários nos quais não trabalhava antes… O quanto essa retórica atua para prejudicar o trabalhador e, ao mesmo tempo, convencê-lo de que ele está fazendo as próprias escolhas?

Cássio da Silva Calvete – A retórica tem um peso fundamental. Aqui no Brasil, nos anos 1990 já se ouvia falar muito disso, com recursos retóricos que têm um peso enorme, como, por exemplo, “colaborador”. Esses dias mesmo, eu estava assistindo um programa de televisão que entrevistava alguns empresários, e todos eles usaram o termo “colaboradores”. Não há empresário hoje, no Brasil, que não use esse termo para se referir a seus trabalhadores. “Colaborador” soa mais leve do que “empregado”, tem um sentido mais voluntário, de alguém que está no mesmo nível do empregador, e não é nada disso.

(Isso atua) inclusive em uma esfera mais profunda, em uma mudança de valores na sociedade. De uma sociedade fordista, que tinha valores de longo prazo, a gente passa para uma sociedade de valores de curto prazo, que traz muita conexão com o capital financeiro e o seu investimento nas empresas de tecnologia. Nesse mundo de valores de curto prazo, há algumas palavras que passam a ter conotação positiva. “Flexibilização”, por exemplo. “Rigidez” é uma palavra que, na sociedade de hoje, tem uma conotação negativa. Eu brinco com meus alunos, perguntando se preferem ter um namorado ou namorada rígida ou flexível. Todo mundo prefere que seja flexível. Então, perceba a conotação positiva que está associada a essa palavra: se perguntasse para os pais dessas pessoas, eles certamente escolheriam um namorado ou namorada rígida, que seguisse carreira no Banco do Brasil, que fosse professora durante toda a vida, que não mudasse de valores no meio do caminho. É a ênfase nos valores de curto prazo, o gosto pelo risco: ‘poxa, você não se arrisca nunca, tem que assumir riscos, é bom para você’. Nos anos 1970 não, você tinha que ser metódico, correr riscos não era visto como uma coisa boa. E essas mudanças de valores dependem decisivamente do papel da retórica.

DMT – Algo que também se aplica nesse discurso de “controlar seu próprio tempo”, não?

Cássio da Silva Calvete – Exatamente. Quando a gente vai ver a rotina desses trabalhadores para aplicativos, a média horária de trabalho deles está acima das 9 horas diárias. Algo em torno de 70% deles trabalham seis ou sete dias por semana. Agora, se você olhar pela perspectiva da empresa, ela tem trabalhadores disponíveis 24 horas por dia, sete dias por semana. O trabalhador, individualmente, não é imposto a trabalhar o tempo todo, mas a empresa tem funcionários que cobrem todo o calendário. E como é possível que a empresa tenha essa multidão de trabalhadores disponível? Porque não há custo, não há obrigações trabalhistas. Ela pode “contratar”, ou aceitar, trabalhadores indefinidamente.

DMT – Temos verificado, e o senhor menciona isso em seu artigo, a apropriação pelas empresas também do tempo de lazer do trabalhador, que acaba abastecendo bases de dados e, a partir disso, gerando mais valor. Ou seja, o trabalhador não dá apenas seu horário de trabalho para a empresa, mas a empresa também usa o tempo do empregado fora do serviço para gerar mais-valia. Como funciona isso?

Cássio da Silva Calvete – Na distribuição do tempo do trabalhador, existe o horário de trabalho, o horário dedicado ao trabalho – que soma o tempo de transporte, uma eventual qualificação profissional, coisas assim – e o tempo que fica a serviço do capital, que é basicamente o período em que o trabalhador está consumindo. Na atualidade, o tempo de descanso também é dedicado ao capital, mesmo que esse trabalhador não esteja engajado no consumo. Há uma frase, no documentário O Dilema das Redes, que diz: ‘se você não está pagando pelo produto, você é o produto’. Se você está navegando pela internet, por exemplo, eles estão tentando pegar seus dados e informações para formar grandes perfis de consumidores e vender para as empresas. E não é apenas vender a sua informação enquanto pessoa, embora também o seja, mas de todas as pessoas que tenham um perfil semelhante ao seu. Você é um jornalista, por exemplo, e em algum momento vão usar as informações associadas ao seu perfil para tentar vender uma máquina fotográfica ou um gravador de voz. E daqui a pouco vão conseguir vender, porque o seu gravador vai ficar velho, vai estragar, e aí vai reforçar o aprendizado de que pessoas com o seu perfil se interessam por gravadores.

Aproveitando isso, uma coisa que me causa um certo incômodo, e que acho importante discutir, é que se fala que estaríamos voltando a um modelo de pagamento por peça. Eu discordo. A gente vai no Marx, que é o primeiro a falar sobre salário por peça ou por tarefa, e ele coloca claramente que há um forte vínculo entre essa modalidade e o salário por tempo. Esse trabalhador por peça vai ganhar algo próximo ao salário do trabalhador por tempo. É claro que há embutido aí uma intensificação do ritmo de trabalho: como ele trabalha por peça, vai acabar produzindo um pouco mais do que o trabalhador por tempo e ganhar a mesma coisa, ou produzir a mesma quantidade e receber um pouco menos. Mas tudo isso estará balizado pelo trabalho por tempo, que servia como referência. Isso tudo está bem claro em Marx. Só que, hoje, isso é completamente diferente, o trabalho por peça não está mais balizado pelo pagamento do trabalho por tempo. Pelo contrário, está muito distante deste. Comparem o que ganha um motorista de Uber, hoje, com o que ganhava um taxista antes de surgir o Uber. É impossível, a diferença é muito grande, simplesmente não há comparação. O entregador de aplicativos ganha muito menos do que ganhava um motoboy. O trabalhador de microtarefas nas plataformas de crowdworking não tem nenhum parâmetro de comparação. Por isso, penso que é um equívoco falar em salário por peça, porque antes havia um vínculo e hoje não existe mais. Na verdade, você avilta os salários, está pagando cada vez menos.

DMT – O senhor estabelece uma ligação entre as mudanças na jornada de trabalho e a psicologia dos jogos, a partir de uma gestão algorítmica. Poderia nos explicar, em termos gerais, essa conexão?

Cássio da Silva Calvete – Sempre que estudo tempo de trabalho, eu tento levar em conta suas três dimensões: intensidade, extensão e distribuição. Toda medida, seja ela legislativa ou de gestão, tem foco majoritariamente em uma dessas dimensões, mas necessariamente acaba tendo impacto sobre as três. Temos, por exemplo, uma distribuição de prêmios (nos aplicativos): se você cumprir um certo número de corridas em um determinado tempo, você vai ganhar um plus, receberá um prêmio, e isso cria no trabalhador a disposição de trabalhar mais. Com um ardil embutido: suponhamos que eu, você e a Virgínia temos que fazer oito corridas cada um para ganhar o prêmio. Eu e a Virgínia já fizemos sete corridas, mas você fez quatro: para quem o algoritmo vai jogar a próxima corrida? Não será nem para mim, nem para ela, porque nós vamos cumprir a meta, vamos atingir as oito corridas. O algoritmo vai fazer com que demore mais tempo para que façamos a última corrida, mas, se você estiver com o carro do nosso lado, aguardando, o aplicativo vai jogar a próxima corrida para você. Vai, portanto, estender a minha jornada a partir de um controle do algoritmo.

Outra questão que fica muito clara no trabalho de microtarefas é que você começa com as piores tarefas, ou as de remuneração pior. Isso vai fazer com que você tenha que cumprir muitas tarefas ruins, para que possa, mais tarde, cair nas de remuneração mais interessante: quanto mais tarefas você faz, mais você recebe tarefas melhores. Isso faz com que você estenda a jornada, como forma de ter uma quantidade maior de melhores tarefas. Outra estratégia é oferecer tarefas quando você está terminando de cumprir outras: o motorista do Uber está terminando uma corrida e recebe uma nova tarefa, antes de encerrar a que está em andamento. Então, se está no horário em que ele deseja voltar para casa, por exemplo, e ele recebe uma nova tarefa, ele nem tem muito tempo para decidir o que fazer e acaba, muitas vezes, pegando mais uma corrida.

Quanto mais rapidamente você executar suas tarefas, maior a chance de você ser melhor avaliado e, em consequência, receber tarefas melhores e em maior quantidade. E um último aspecto, que nem dá para dizer que seja uma técnica de gestão, mas que impacta a jornada de trabalho, é a baixa remuneração. Na verdade, esses trabalhadores por plataforma geralmente não organizam o próprio trabalho por jornada de trabalho, mas sim por remuneração, planejando ganhar tanto por dia. Na medida em que a remuneração vem baixando, para atingir aquele valor que foi auto-determinado, torna-se necessário trabalhar mais. E por que a remuneração vem baixando? Porque, com a crise e a recessão aumenta o desemprego e cada vez mais pessoas estão se inscrevendo nas empresas plataformas, mais gente está ofertando trabalho para as empresas plataformas e, como há mais oferta de mão de obra a remunerção cai. Caindo a remuneração o trabalhador tem que aumentar muito a jornada de trabalho, porque há mais gente aderindo pelo desemprego e pela recessão, e quem já está na plataforma oferta mais horas de trabalho para ganhar o que planejava.

Também é preciso levar em conta algo talvez até mais pesado: que o pagamento por tarefa remunera apenas o trabalho imprescindível… Na verdade, estou procurando a melhor palavra, porque nem mesmo “imprescindível” descreve bem o que ocorre. Porque há tarefas que são imprescindíveis e não são remuneradas. Quando um motorista de Uber se desloca para pegar um passageiro, isso é algo imprescindível que não é remunerado pelas plataformas. Quando ele estaciona o carro para o passageiro descer, e o passageiro se atrapalha para tirar o cinto ou porque está carregando uma mala, é um tempo imprescindível na tarefa do motorista e que não é remunerado. Estou pensando aqui, e ainda não achei a exata palavra…

DMT – O mínimo que precisa ser pago para que haja o convencimento do trabalhador em realizar a tarefa, talvez?

Cássio da Silva Calvete – É, talvez isso. Esse pagamento, portanto, elimina o que o era uma luta lá do fordismo, do taylorismo, que era a diminuição dos chamados tempos mortos. Isso acabou, não há mais tempos mortos. Porque é isso, se remunera apenas o mínimo necessário para convencer a pessoa a trabalhar. Muitos não sabem fazer o cálculo, e isso é uma particularidade dos trabalhadores de home office como um todo, mas é algo muito presente em trabalhadores de plataforma: há indicativos de que 50% deles não sabem calcular quanto tempo eles, de fato, trabalham. Dos que conseguem calcular, eles dizem que 30% das tarefas que eles realizam acabam não sendo remuneradas. Então, há uma intensificação do trabalho e também há a extensão e pagando pouco.

Uma outra estratégia técnica, que aí mexe com a distribuição da jornada de trabalho, é a tarifa dinâmica. Ela vai remunerar melhor trabalhos de madrugada, que é quando as pessoas deveriam estar dormindo e restaurando suas forças; vai remunerar melhor sábado e domingo, quando as pessoas gostariam de estar com as suas famílias mas acabam indo trabalhar; trabalho em dias de chuva, que antigamente se verificava aquele problema dos taxistas sumirem em dias de chuva, agora a tarifa dinâmica faz a pessoa ir trabalhar. Ela corre mais risco de acidentes, enfrenta um trânsito pior, mas como remunera melhor, ela vai. A tarifa dinâmica tem essa capacidade de distribuir melhor a jornada, fazendo com que, na ótica da empresa de plataforma, ela tenha trabalhadores disponíveis 24h por dia, sete dias por semana.

DMT – Sem contar que, com a quantidade crescente de pessoas optando pelo trabalho a partir de aplicativos para ter uma ocupação, há uma oferta bem maior de serviço e a tarifa dinâmica se torna bem menos frequente.

Cássio da Silva Calvete – Os dados mostram que os trabalhadores de aplicativos em São Paulo, durante a pandemia (em 2020), trabalharam muito mais, inclusive porque foram considerados como atividade essencial, e ganharam menos. E é óbvio que isso aconteceria, porque há muito mais gente trabalhando (com aplicativos), a oferta é muito maior e a tarifa dinâmica cai. Aí a pessoa chega de madrugada para trabalhar porque ganharia mais, acaba não tendo o acréscimo de remuneração da tarifa dinâmica porque muita gente está trabalhando no mesmo horário, mas aí a pessoa já está lá, já dormiu durante a tarde para poder trabalhar durante a madrugada…

DMT – De que forma a sociedade contribui para que essa fragilidade continue? Quero dizer, as pessoas pegam o Uber porque é mais barato, cada vez menos gente faz uso de táxi, e isso faz com que mais motoristas se submetam a más condições de trabalho, por exemplo. Há uma forma de sensibilizar a sociedade sobre essa situação, de mobilizar uma atuação de forma a diminuir essa precarização?

Cássio da Silva Calvete – Isso é uma consequência dos valores individualistas e imediatistas da nossa sociedade. Para o indivíduo é bom pagar pouco, mas aí essa pessoa não percebe que a roda não gira: o motorista vai ganhar pouco, vai comprar menos e o negócio no qual o passageiro trabalha – no comércio, vamos dizer – vai vender menos também. E mesmo se o passageiro parar para pensar ele vai perceber que não é justo pagar tampouco por aquela corrida. No entanto, temos que ter presente que esse passageiro também ganha pouco… é o tal do cobertor curto.

DMT – Digamos que as plataformas acabam trazendo, entre aspas, uma “solução” para um problema, e que é identificada como tal pela população?

Cássio da Silva Calvete – Sim, os preços da corrida de táxi eram elevados. E isso porque era um setor que não era bem regulado. Não poderia ter os barões do táxi, a lei era que cada pessoa tivesse uma bandeira de táxi e deveriam ter mais táxis rodando. Essa má regulação continua com o Uber. Vejamos um exemplo: quando acontece um acidente com um ônibus e a imprensa toda fala que não tinha fiscalização adequada, que era uma empresa clandestina – aí eu pergunto, qual a diferença disso para o Uber e outras empresas do setor? Não há fiscalização. A pessoa viaja num carro, dá cinco estrelas e não sabe se o pneu está careca, se os freios estão funcionando… Ela só sabe se o motorista foi simpático, se ganhou balinha ou uma garrafinha d’água e se ele deixou você no lugar desejado. Quando se entra em um táxi, apesar dos pesares, o passageiro sabe que o freio vai estar bom, porque o veículo foi fiscalizado. A gente está falando de uma nova organização da sociedade, que está se moldando. Então, voltando à pergunta, em que medida a sociedade é responsável? Eu diria 100%. É uma luta de classes.

Cerca de 70% dos motofretistas, no Brasil e na Espanha, são contra a carteira assinada. Não é como se desejassem o laissez-faire, a selva: eles querem alguma regulamentação, querem seguro-saúde, remuneração mínima, mas não querem carteira assinada. Em parte – e essa é a minha visão particular sobre o tema – cooptados pelo discurso de que são colaboradores, empreendedores, essa retórica toda, mas em parte porque esse cenário ainda é novo e eles ainda não se deram conta de que, em algum momento, vai ter que trocar de moto, trocar de carro, que vai chegar em uma idade em que não vai conseguir trabalhar 12 horas por dia. Os impactos negativos ainda não bateram tão fortemente – mas já começaram a bater, porque a gente vê movimentos grevistas associados a esses trabalhadores, já teve o Breque dos Apps, greve interncional dos motoristas da UBER,, começam a surgir líderes políticos e esforços de organização. Mas a ficha, em geral, ainda não caiu. O imaginário ainda supera a realidade.

DMT – É possível falar, então, em uma tendência de exacerbação, de que esse quadro vá se tensionar por um tempo considerável ainda?

Cássio da Silva Calvete – Olha, sou um otimista. Eu sempre procuro terminar as minhas colocações com algo positivo, ou então prefiro não falar nada (risos). Acho que estamos em um momento de disputa muito forte. Se vamos ter alguns anos de piora, se a melhora vem amanhã ou daqui cinco anos, eu não saberia dizer. Mas acredito que já estivemos em situação pior, que o auge do neoliberalismo foi antes da crise de 2008. Naquele momento, não existia questionamento, era quase dogmático. Nos anos 1990 tivemos aqueles dois livros, que valeram muito mais pelo título do que pelo conteúdo, O Fim da História (de Francis Fukuyama) e O Fim do Emprego (de Jeremy Rifkin), e se acreditava muito nisso no começo dos anos 2000: o capitalismo triunfou, o paraíso está no neoliberalismo. Acho que a crise de 2008 traz o questionamento disso para o centro dos debates, e nisso nós estamos hoje em uma posição bem melhor do que estávamos no início dos anos 2000.

A tecnologia tem um papel importante nessas transformações a favor do capital, porque é uma novidade. Até hoje há essa disputa: elas chamam a si mesmas de empresas de compartilhamento, empresas mediadoras, porque, em sua origem, elas eram. Se você compartilha uma carona, compartilha um quarto vago na sua casa, não há o que ser regulado, porque não há exploração de trabalho. Só que, no começo dos anos 2010, há um aporte de capital significativo nessas empresas, e elas perdem esse caráter de compartilhamento, passam a ser empresas exploradoras de mão de obra, com fins lucrativos e visando ao lucro. Só que até explicar isso para a sociedade, para os juízes, para o legislativo que elas não são mais empresas de compartilhamento – e elas fazendo propaganda que é sim são de compartilhamento, que atuam para um mundo melhor, que vai diminuir congestionamento e poluição… A tecnologia abre uma cunha na legislação, e até entender que ela explora trabalho, que há extração de mais-valia, que ela intensifica o regime de trabalho etc, leva um tempo.

Eu mesmo demorei para perceber que plataformas como o Uber eram uma exploração do trabalho pelo capital, não foi algo que eu tenha compreendido de imediato. Quando eu estava percebendo que o Uber era uma forma de exploração do trabalho, eu tinha um aluno que virou motorista da plataforma por cerca de um mês, para fazer um trabalho para a disciplina que eu leciono. E a conclusão dele era de que o motorista do Uber era autônomo. Eu então já estava convencido de que era um trabalhador subordinado, e balancei, porque era um estudo bom, de qualidade. Eu mesmo, que estudo o mundo do trabalho há muito anos, que já trabalhei no movimento sindical, demorei para perceber: imagina quem não reflete, não pensa a esse respeito, apenas vive isso?

O discurso dominante aponta para os grandes benfícios que os avanços tencológivos vão trazer para a sociedade, no entanto pouco se fala dos efeitos perversos que os mesmos trazem. É evidente que não podemos e nem devemos frear o desenvolvimento e o surgimento de novas tecnologias. No entanto também é notório que caso a sua forma de utilização seja definida única e exclusivamente pelas “leis de mercado” as grandes empresas plataformas e os grandes operadores do mercado financeiro serão os principais beneficários dessas conquistas, enquanto a grande massa de trabalhadores e a maioria da população terá que lidar com seus efeitos maléficos.

Urge que a sociedade se organize para impedir os efeitos deletérios que podem até mesmo serem mais impactantes que os benfícios alcançados pelo desenvolvimento tecnológico, a regulação publica nunca foi tão necessária.

DMT – E estamos nos aproximando desse momento, na sua visão? De um momento em que, após compreender esses impactos dessa tecnologia no mundo do trabalho, a classe trabalhadora e suas entidades representantes estejam mais preparadas para agir a respeito?

Cássio da Silva Calvete – Eu acho que a gente está chegando nesse momento, porque as pessoas estão se organizando. Já existe movimentação de caráter sindical, temos o surgimento de forças políticas conectadas com essa disputa. Certamente há partidos políticos que já estão disputando esses líderes, a própria CUT está tentando entender como chegar nos motofretistas, já compreendeu que não pode ser nos mesmos moldes (tradicionais), porque eles estão rejeitando.

Voltando à previdência, nós temos um sistema previdenciário que é todo baseado no assalariamento, que está diminuindo. Então você precisa decidir o que vai fazer com a previdência: vamos acabar com ela, não temos mais previdência como política social? Porque é uma alternativa, defendida por muitos – o Paulo Guedes, por exemplo, defende, para sermos bem explícitos. Continua sustentando a previdência pelo assalariamento? Olha, está complicado manter assim, porque os níveis de assalariamento só caem. Ou quem sabe sustenta ela de outra forma, via imposto sobre as empresas? Vamos tirar do faturamento das empresas de tecnologia, das empresas que empregam mais, de onde vai sair esse novo imposto? Todas essas são possibilidades, e estão em disputa. Sou otimista, acho que o neoliberalismo já foi mais forte e que a consciência de classe já foi pior. Verdade que já foi melhor, também, mas já caiu no fundo do poço e se recuperou um pouco. E acho também que a estrutura sindical levou um tempo para entender o que está acontecendo, mas também está se organizando.

E há uma coisa que eu acho importante deixar clara. Às vezes acontece aquela ameaça: “ou o trabalhador aceita essa miséria ou a empresa vai quebrar, não vai ter emprego”. A sociedade não pode admitir que uma empresa só seja economicamente viável superexplorando a força de trabalho. Se aumentar salário vai fazer a empresa quebrar, então que quebre, deixa quebrar. Não é isso o capitalismo? Se não é competente para funcionar e pagar um salário digno, quebra. A gente não pode se submeter a essa ameaça. Mas eu acredito que a sociedade vem evoluindo, dá um passo para trás e depois dois passos para a frente. Aos poucos, vamos avançando.

Democracia e Mundo do Trabalho

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