Política Externa dos Estados Unidos no governo Biden: é possível um retorno ao passado?
O mesmo erro que Trump cometeu ao prometer aos norte-americanos uma volta ao passado, fazendo retornar aos Estados Unidos empresas e empregos que foram exterminados pela globalização e pela chamada 4ª Revolução Industrial, Biden pode cometer se quiser que os Estados Unidos voltem a ocupar no mundo a mesma posição que ocupavam até o final do século passado.
O mundo unipolar com os Estados Unidos como única potência hegemônica foi um subproduto passageiro do fim da Guerra Fria que definitivamente ficou no passado. A política isolacionista de Trump certamente contribui para acelerar a perda de relevância mundial dos Estados Unidos, mas não foi a causa principal. Muito antes de Trump assumir a presidência, em 2016, a posição dos Estados Unidos no mundo já era contestada, dentro e fora do país. Dentro pelos efeitos desiguais da globalização e o custo das intervenções externas e fora pela contestação das potências emergentes à dominância americana no período pós-guerra.
A ascensão da China à condição de grande potência, o retorno da Rússia ao cenário geopolítico global e o crescente distanciamento entre Europa e Estados Unidos são fenômenos que remontam pelo menos ao início deste século.
Biden já anunciou mudanças importantes na política externa americana como o retorno dos Estados Unidos ao Tratado de Paris sobre mudanças climáticas e à Organização Mundial da Saúde (OMS). É possível também que os Estados Unidos abandonem a política exclusivista com relação às vacinas da Covid-19 e adira ao consórcio Covax liderado pela OMS cujo objetivo é tornar as vacinas acessíveis a todos os países, inclusive os mais pobres. O retorno dos Estados Unidos ao Acordo Nuclear com o Irã, costurado no governo Obama, também é uma possibilidade. Não se descarta que Biden volte a indicar os juízes americanos para o órgão de apelação da Organização Mundial de Comércio (OMC), permitindo assim que o órgão volte a funcionar. Tudo isso são boas notícias. Afinal, o mundo, cada vez mais globalizado, enfrenta desafios comuns, como as mudanças climáticas, as pandemias, os fluxos migratórios, a fome mundial, a proliferação de armas nucleares, o protecionismo no comércio global, entre outros, que não têm como ser resolvidos sem a mais ampla cooperação internacional.
O retorno dos Estados Unidos a essas iniciativas e até mesmo sua liderança são notícias alvissareiras. Entretanto, outras iniciativas consideradas têm um potencial tão desestabilizador quanto as próprias políticas do governo Trump, uma vez que estão em desacordo com a ordem mundial multipolar emergente. Uma delas é a ideia de construir uma ampla coalizão de países “democráticos” para enfrentar a “ameaça chinesa”.
Em artigo publicado no número de março/abril de 2020 da revista americana Foreign Affairs, intitulado “Porque a América deve liderar de novo”, Biden afirmou que os Estados Unidos precisam ser duros com a China, pois se deixada à vontade ela continuará roubando a tecnologia e a propriedade intelectual dos Estados Unidos e das empresas americanas, continuará a oferecer subsídios para dar vantagens injustas para suas empresas estatais para dominar as tecnologias e indústrias do futuro.
Segundo o agora presidente eleito dos Estados Unidos, a forma mais efetiva para enfrentar esse desafio é construir uma frente unida dos aliados dos Estados Unidos para confrontar os comportamentos abusivos da China e as violações dos diretos humanos, mesmo que os Estados Unidos procurem cooperar com Pequim em questões nos quais seus interesses convirjam, como as mudanças climáticas, a não proliferação de armas nucleares e a segurança sanitária global.
Segundo Biden, os Estados Unidos representam sozinhos um quarto do PIB global e, somado às democracias aliadas, pode dobrar essa força e isso dar-lhes-ia alavancagem para definir as regras do jogo em tudo, do meio-ambiente, ao trabalho, comércio, tecnologia e transparência, de forma que elas reflitam os interesses e valores democráticos. Desse modo, segundo ele, a China não poderá ignorar mais da metade da economia mundial,
A leitura que o partido Democrata faz sobre a questão chinesa, portanto, é que o erro de Trump não foi ter identificado a China como um “competidor estratégico”, mas o fato de querer enfrentá-la sozinho, ao mesmo tempo em que atacava seus aliados tradicionais, nomeadamente a União Europeia, o Japão e a Coréia do Sul. De acordo com essa leitura, o governo Biden deveria construir uma ampla coalizão internacional em torno dos Estados Unidos para forçar a China a mudar sua política interna e externa.
Caso Biden caminhe nessa direção, dificilmente terá sucesso. Primeiro porque nem todos os governantes que antagonizam a China são necessariamente democráticos e nem todos que são democráticos antagonizam a China. Segundo porque o que move a todos, com exceção de alguns fósseis da guerra fria, são interesses puramente econômicos. Nesse caso, essa coalizão anti-China seria apenas um simulacro para disfarçar o desejo americano de manter-se indefinidamente como potência hegemônica global. Isso não pode dar certo.
Os Europeus têm lá suas desconfianças em relação à China, mas tampouco desejam que a Europa retorne à condição de protetorado americano que marcou a relação transatlântica no pós-guerra. A Alemanha tem seus próprios interesses e vê a China como importante parceiro comercial. O mesmo ocorre com outros países europeus que aderiram à Iniciativa Cinturão e Rota (BRI na sigla em inglês), como Itália, Grécia, Espanha e Portugal.
O ultimatum dado pelos Estados Unidos a Portugal, por conta do projeto de renovação do porto de Sines, em parceria com os chineses, dentro do portfólio de projetos da Iniciativa Cinturão e Rota irritou o governo português e é um bom exemplo de como as coisas poderão não andar como pretendem os Estados Unidos.
O porto de Sines, localizado a 100 quilômetros ao sul de Lisboa sempre foi cobiçado pelas potências estrangeiras por sua importância geoestratégica. Romanos, Visigodos e Mouros estabeleceram povoamentos ao longo de seu porto de águas profundas. Foi dali que Vasco da Gama partiu para construir o império marítimo de Portugal, no século 15, criando as colônias portuguesas em Goa, na Índia, e em Formosa e Macau, na China, tendo devolvido esta última aos chineses apenas em 1999.
Sines é o porto da Europa continental mais próximo das bacias de xisto dos Estados Unidos na costa leste e está na mesma direção do Canal do Panamá. As empresas americanas querem expandir o terminal de gás natural líquido do porto para aumentar suas exportações de gás para o continente, o que reduziria a dependência da Europa em relação à Rússia. O embaixador dos Estados Unidos em Portugal, George Glass, afirmou que o investimento proposto pelos Estados Unidos iria converter Sines na “Singapura do Ocidente”. Mas os portugueses optaram pela parceria com a China. Os chineses vão ali construir um megaporto de contêineres. Trata-se de um projeto de €640 milhões que terá um papel chave na Iniciativa Cinturão e Rota, da qual Portugal faz parte desde 2018.
O embaixador americano “alertou” as autoridades portuguesas que o porto chinês de contêineres iria afetar a “visão” dos Estados Unidos sobre o desenvolvimento do porto e que os portugueses precisariam escolher entre seu “aliado” histórico, os Estados Unidos, e os parceiros econômicos chineses. Os comentários pesados do embaixador americano não foram bem recebidos pelo governo e pela imprensa portuguesa. O Presidente Marcelo Rebelo de Sousa respondeu que era “uma óbvia questão de princípio que em Portugal, aqueles que decidem o seu destino são os representantes eleitos pelos portugueses e só eles.” O episódio português é apenas um exemplo dos muitos conflitos que poderão surgir caso o futuro governo Biden insista na política de dividir o mundo entre amigos e inimigos dos Estados Unidos e da China.
A assinatura, neste mês de novembro, do mega acordo comercial da Ásia, o Regional Comprehensive Economic Partnership (RCEP), envolvendo a China e outros 14 países asiáticos, entre eles os países da ASEAN (Associação das Nações do Sudeste Asiático) mais Japão, Coréia do Sul, Nova Zelândia e Austrália, foi outro duro golpe nas pretensões norte-americanas de isolar a China no leste e sudeste da Ásia.
Esse bloco de 15 países, articulados pela China, cobre 30% da população mundial, 29,3% do PIB global e 27,4% do comércio mundial. Responde por 70% do comércio mundial de circuitos integrados. A Índia foi o único grande país da região a ficar fora do bloco, por receio de ter sua indústria local afetada negativamente.
Em um momento em que se fala em desacoplamento dos Estados Unidos da China e de reorganização das cadeias globais de suprimento, a formação desse bloco pode afetar seriamente os interesses dos Estados Unidos na região. As cadeias globais de suprimento tendem a se estabelecer em áreas de livre comércio. Quanto maior a integração comercial entre os países da Ásia, mais as cadeias globais de suprimentos centradas na China, Japão e Coreia do Sul tenderão a se regionalizar, em prejuízo de fornecedores de fora da área, cujas exportações podem estar sujeitas a tarifas de importação mais elevadas.
No caso específico do RCEP, serão eliminadas nos próximos anos tarifas sobre 91% das mercadorias comercializadas entre os membros. No caso do Japão, por exemplo, o número de produtos não tarifados enviados para a Coreia do Sul aumentará de 19% para 92% e para a China de 8% para 86%. A indústria automobilista japonesa deverá ter grandes ganhos uma vez que o acordo eliminará as tarifas sobre quase US$ 50 bilhões em peças automotivas enviadas para a China.
O problema é que os Estados Unidos estão acostumados há décadas a definir o espaço que a China poderia ocupar no mundo. Isso vem desde a IIª Guerra, quando o General MacArthur tentou negociar um acordo entre Mao Tsé-Tung e Chiang Kai-shek para encerrar a guerra civil que levou os comunistas ao poder e passou pela Guerra da Coréia, pela questão de Taiwan, das ilhas Diaoyu (Senkaku para os japoneses) até a admissão da China na OMC. A questão é que a China se emancipou e não precisa mais pedir licença para os Estados Unidos para projetar globalmente seus interesses.
Os Estados Unidos estão frente a um dilema: o que fazer com a China? Sua primeira reação tem sido contê-la, tal como fizeram com a antiga URSS, mas isso não é possível. Diferentemente da antiga URSS, a China está ligada por mil laços à economia americana e mundial. A disputa dos Estados Unidos com a China não é ideológica, mas essencialmente econômica.
A única solução possível para não precipitar o mundo em um novo conflito global é aceitar a presença da China como um novo polo de poder global, tal como a Rússia, o Japão e a União Europeia e estabelecer uma política de cooperação competitiva, como propôs Fu Ying, ex-embaixador e vice-ministro das relações exteriores da China, em artigo recente no jornal New York Times (24/11/2020). Segundo o ex-diplomata chinês, “Ambos os governos têm agendas domésticas pesadas para atender, e mesmo se a competição entre a China e os Estados Unidos for inevitável, precisa ser bem administrada, cooperativamente. É possível que os dois países desenvolvam uma relação de “coopetição” (cooperação + competição) abordando as preocupações uns dos outros”.