Programas sociais e os mitos da direita

Por César Locatelli, no site Carta Maior:

“A inclusão da população carente, nos governos do PT, foi feita pelo consumo.”
“O Bolsa Família é um cartão de
débito.”
“FHC é o pai do Bolsa
Família.”
“Milton Friedman é o avô do Bolsa
Família.”
“Como famílias são negligentes com a educação e a
saúde.”
“O Bolsa Família promove o aumento da taxa de fecundidade das famílias pobres.”

“O Bolsa Família promove o efeito preguiça, o não
trabalho.”
“Os programas sociais não cabem no orçamento do
governo.”
Como máquinas publicitárias do serviço, muito bem remunerado, da direita conservadora são muito eficientes na criação e na divulgação de
mitos. Especialmente em um dos sentidos da termo trazido pelo dicionário Houaiss: afirmação fantasiosa, inverídica, que é disseminada com fins de dominação, difamatórios, propagandísticos, como guerra psicológica ou ideológica. O dano é anoto, aponta Tereza Campello, quando “a ideia vendida pela direita é comprada pela esquerda”.

O mito que mais se encaixa nessa qualificação é que, nos governos Lula e Dilma, a inclusão da população mais se carente deu pelo consumo. A ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome não concorda que essa seja a característica fundamental das políticas dos governos petistas.

É evidente que quem tem fome precisa de segurança alimentar e tem que consumir alimentos, mas a atuação esses governos, lembra ela, foi muito além. E cita como exemplo o saneamento: “em 13 anos, 48 milhões de pessoas, entre os 38 milhões de negros, passou a ter acesso ao esgoto ou fossa séptica. Isso representa quase uma Argentina”.

O Bolsa Família conquistou reconhecimento mundial: a ex-ministra conta que, durante sua gestão à frente do Ministério, recebeu mais de 200 visitas de delegações estrangeiras interessadas em conhecer o programa. Os bons resultados devem à associação do programa com ações no saneamento, na saúde, na educação, no acesso à energia elétrica e à água, alicerçado na rede de proteção e complementação de benefícios instituídos pela Constituição de 1988.

É isso que Tereza Campello vai demonstrar ao longo de sua aula para o curso Decifrando o Economês e Desmontado o Mito da Austeridade Fiscal, promovido pelo Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé.

Mito: a inclusão da população carente, nos governos do PT, foi feita pelo consumo

Um dos estudos citados pela ex-ministra trata da desnutrição em crianças. Foram acompanhadas 360 mil crianças de 2008 a 2012 e um dos resultados mais importantes foi a redução do seu déficit de estatura. Em 2008, 17,5% das crianças do grupo, entre 0 a 5 anos, apresentavam estatura inferior à media para a idade. Esse percentual foi se reduzindo nos anos seguintes do estudo e, em 2012, as crianças acompanhadas, então com idades entre 4 e 9 anos, mostravam 8,5% de déficit de estatura. Em outras palavras, a desnutrição crônica, que é verificada pela baixa estatura para a idade, caiu pela metade no período pesquisado.

“Na experiência recente do Brasil, essa determinação [social da saúde e nutrição das crianças] é evidenciada na avaliação das principais causas atribuíveis para a redução da desnutrição crônica em crianças menores de cinco anos de idade, que destacam os impactos do aumento da educação materna, do aumento da renda familiar, da expansão do acesso à saúde e do aumento da cobertura do saneamento básico”, diz o estudo Resultados, avanços e desafios das condicionalidades de saúde do Bolsa Família.

Não é plausível afirmar-se que o aumento da educação materna, aumento da renda familiar, expansão do acesso à saúde e aumento da cobertura de saneamento básico componham uma “inclusão pelo consumo”.

Mito: o Bolsa Família é um cartão de débito

É verdade que o Bolsa Família, que basicamente é um programa de transferência de renda com condicionalidades, complementa a renda de 14 milhões de famílias, num universo de 46 milhões de pessoas. Entretanto, é igualmente verdade que acompanha a matrícula e a frequência escolar de 17 milhões de crianças e adolescentes e que 9 milhões de famílias são acompanhadas na saúde.

A ex-ministra ressalta que as condicionalidades, ao contrário de se caracterizarem por uma função punitiva, foram projetadas visando a inclusão e o acesso a direitos. Quando o beneficiário não tinha acesso a escolas ou a serviços de saúde, caia a exigência do cumprimento das condicionalidades, ao mesmo tempo em que se alimentava a cadeia de informações para suprir aqueles serviços básicos na região carente.

Tereza Campello revela, por exemplo, que a alocação geográfica do Programa Mais Médicos se deu baseada nos mapas onde os beneficiários do Bolsa Família não conseguiam cumprir as exigências de consultas, vacinações etc. por falta do serviço de saúde na região.

Entre os fundamentos do Programa Bolsa Família estão as parcerias com estados e municípios, a operação de um cadastro único e sua sustentação no Sistema Único de Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, na rede de educação, na rede de bancos públicos. Ao mesmo tempo em que se apoiava nessas redes, o programa contribuía para o fortalecimento delas próprias. O Bolsa Família só pode ser visto como complementar à rede de proteção social, defende ela.

O Programa Bolsa Família, definitivamente, não se restringe a um cartão.

Mito: FHC é o pai do Bolsa Família

Fernando Henrique Cardoso ocupou a presidência de 1995 a 2002 e criou o Bolsa Alimentação e o Vale Gás no final de 2001, possivelmente com os olhos voltados para a eleição de 2002. A meta, do governo Lula, de não provocar descontinuidade para os beneficiários dos programas existentes deu ao PSDB a oportunidade de dizer que o Bolsa Família era criação de FHC.

Diz a ex-ministra em seu memorial Desenvolvimento, Inclusão Social e Intersetorialidade: do orçamento participativo ao Brasil sem Miséria:

“Na sua origem, o Programa Bolsa Família (PBF) tinha também o propósito de evitar a descontinuidade em relação aos programas preexistentes e garantir aos que recebiam benefícios de transferência monetária, a qualquer título, fossem preservados. É importante esclarecer que os programas existentes, quando da criação do Bolsa Família, foram criados em 2001 e 2002 e tinham pouco tempo de funcionamento.

É o caso do Bolsa Escola criado em meados de 2001; do Bolsa Alimentação, criado no último trimestre de 2001; e do Vale Gás, criado no último dia útil de 2001, mas que só começa a funcionar em fevereiro de 2002, em pleno ano eleitoral. Remontar os cadastros gerou, portanto, um trabalho muito maior que se tivéssemos partido do zero, mas evitou que as famílias fossem prejudicadas.

As famílias pobres ou extremamente pobres migraram para o CadÚnico e passaram a integrar o Bolsa Família. As famílias fora de perfil, ou seja, com renda superior ao limite do PBF, foram mantidas no cadastro. A consolidação deste mosaico de cadastros e sistemas exigiu que praticamente fossem refeitos todos os registros de cada família, uma vez que a maioria dos dados previamente levantados não apresentavam informações mínimas sobre a família.

Desta consolidação, surgiu a primeira base de transferência do PBF com 3,6 milhões de famílias. Ou seja, o PBF já nasceu com escala, abrangência nacional e gerou impacto praticamente imediato, pois trata-se de recursos transferidos automaticamente e que chegam às famílias todos os meses. Esta é uma das características que marca esta experiência. A pobreza e a desigualdade no Brasil afetam milhões e combatê-las exigiu medidas de impacto. Não podíamos nos dar ao luxo de investir em demorados projetos pilotos de testes focalizados em alguns municípios.”

Ou seja, Programa Bolsa Família nasceu com quase 4 milhões de beneficiários, não foi um desses programas piloto que ganham notoriedade na imprensa mundial, mas que tem alcance extremamente reduzido.

Mito: Milton Friedman é o avô do Bolsa Família

“Não. Ele defendia o oposto do que nós defendemos”, assinala enfaticamente Tereza Campello.

Ela explica que a solução de Friedman, líder da Escola de Chicago e principal idealizador do neoliberalismo, era voltada a um estado mínimo com tudo privatizado: vales (vouchers) seriam fornecidos para a população que compraria serviços no mercado privado de saúde, de educação, de alimentos etc.

A pandemia mostrou de modo inquestionável o que a ausência de um sistema universal de saúde pode provocar: “gente morrendo em casa nos Estados Unidos por não ter dinheiro para entrar nos hospitais privados”, salienta a ex-ministra.

O Bolsa Família foi criado para aliviar a pobreza e a fome, mas também para incluir crianças na educação e reduzir a evasão, além de ampliar o acesso à saúde, principalmente para crianças e gestantes, serviços públicos garantidos pela Constituição de 1988.

O Bolsa Família é absolutamente incompatível com o estado mínimo.

Mito: as famílias são negligentes com educação e saúde

Além do aumento de 50% nas consultas de pré-natal, uma diminuição de 14% no índice de crianças que nascem prematuras e a taxa de 99,5% de vacinação das crianças, Tereza Campello revela outra importante evidência dos resultados positivos da integração dos programas Bolsa Família e Saúde da Família:

“Na minha opinião, uma das mais fortes evidências até o momento sobre a importância do Programa Bolsa Família está nos estudos sobre a expressiva redução da mortalidade infantil entre as crianças de famílias beneficiárias, em especial quando associados o Bolsa Família e o Programa de Saúde da Família, resultado publicado originalmente na revista The Lancet. A mortalidade infantil causada por diarreia recuou em 46% e a causada por desnutrição em 58%.”

Não se pode tomar a absoluta falta de recursos por negligência.

Mito: o Bolsa Família promove o efeito preguiça, o não trabalho

O Bolsa Família já foi acusado de promover rupturas nos laços familiares, por favorecer que mulheres se libertem de condições familiares de opressão e violência. Outras duas acusações comuns são de promover incentivo para a família ter mais filhos e promover a preguiça, o não trabalho.

“O que ocorre no Brasil, ao contrário, é uma queda generalizada da fecundidade, observada em todas as regiões e faixas de renda, sendo mais intensa entre os mais pobres no período atual”, revelam estudos sobre a taxa de fecundidade brasileira.

Uma revisão de diversas pesquisas sobre a oferta de trabalho, realizada por técnicos do Ipea, conclui:

“Se for possível extrair uma grande conclusão dos estudos resenhados acima, é que os PTRCs [Programas de Transferência de Rendas Condicionados] possuem impactos pequenos sobre o mercado de trabalho, e que alguns destes impactos, como a redução da jornada de trabalho das mães e o aumento na probabilidade de trabalho para certos grupos, são positivos.

Do ponto de vista das políticas públicas, pode-se afirmar, com muito embasamento, que não existe constatação empírica que sustente a hipótese de que haveria um efeito renda maior do que um efeito substituição (fenômeno que recebeu a alcunha de “efeito preguiça”), no caso destes programas.”

Muito ao contrário do “efeito preguiça”, os estudos mostram um “efeito criança da na escola”.

Mito: os programas sociais não cabem no orçamento do governo

“A pergunta correta é quanto custa não fazer essas políticas sociais”, reformula Tereza Campello

A FAO – Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura – entende que uma pessoa está em insegurança alimentar quando lhe falta acesso regular a comida nutritiva e confiável para seu crescimento e desenvolvimento normal e para uma vida ativa e saudável.

A ex-ministra mostrou números assustadores da insegurança alimentar no país: 116,8 milhões de brasileiros, ou 55,2% da população do país, estavam em insegurança alimentar em 2020, de acordo com dados da Rede PENSSAN.

A insegurança alimentar havia declinado de 35%, em 2004, para 23% em 2013 e voltou a subir, em 2017, para 37% e para 55,2%, em 2020. Deste grupo de pessoas, 9% encontravam-se em insegurança alimentar grave, ou mais claramente, passavam fome. Esse número mais que dobrou desde 2013, quando representava 4,2% da população.

Ao comentar os números da insegurança alimentar, Tereza Campello alerta que estamos correndo o risco de perder uma geração: quatro meses de fome na infância tem custos muito altos, custo de saúde, custo de criatividade, custo intelectual.

Estudo do Ipea demonstra que:

“Além de apoiar a superação da pobreza e promover igualdade, o Programa Bolsa Família gera, em curto prazo, maior expansão do produto interno bruto (PIB) do que qualquer outra transferência social, a um custo fiscal baixo para padrões internacionais e com benefícios de longo prazo sobre a capacidade das pessoas para gerar renda.

Quando comparam os efeitos multiplicadores de sete transferências sociais sobre agregados macroeconômicos no curto prazo, nas situações em que a oferta reage a todo incremento da demanda, constatam que o PBF é, por larga margem, a transferência com maiores efeitos sobre o PIB, que aumenta R$ 1,78 a cada R$ 1,00 adicionado ao PBF.

Ou seja, nessas condições, um gasto adicional de 1% do PIB no PBF, que privilegia as famílias mais pobres, gera aumento de 1,78% na atividade econômica – e de 2,40% sobre o consumo das famílias –, bem maior que o de transferências previdenciárias e trabalhistas crescentes de acordo com o salário do beneficiário.”

“O Bolsa Família custa apenas 0,5% do PIB”, ex-ministra. Para uma comparação sobre a ordem de grandeza desse gasto (ou talvez fosse melhor trocar a palavra gasto por investimento) lembremos que o custo de juros no Brasil, que está no menor valor dos últimos anos, representou, nos últimos 12 meses terminados em abril de 2021, 3,68% do PIB ou 293 bilhões de reais, segundo o Banco Central. Assim, mesmo no momento de baixa histórica da taxa de juros no Brasil, o gasto do Governo Federal com juros é mais de 7 vezes superior ao do Bolsa Família.

Assim, um cada 1 real investido no Bolsa Família, o PIB cresce 1 real e 78 centavos e o consumo cresceu 2 reais e 40 centavos. “É possível e é sustentável”, conclui Tereza Campelo.

Blog do Miro

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