Redução da jornada de trabalho e renda básica universal e incondicional podem romper com a escuridão da economia do lucro e o “sistema de morte”
Entrevista especial com Cesar Sanson e José Roque Junges
O discurso do Papa Francisco aos movimentos populares, realizado no dia 16 de outubro, ainda continua ecoando. Na fala, o pontífice destacou mais uma vez que é necessário sufocar os discursos populistas que geram a intolerância e individualismo. Esse segundo, aliás, também está no centro de um pensamento que se baseia na meritocracia e de uma economia à serviço do lucro e da vantagem. Ele provocou a adoção de duas medidas como caminho: “o rendimento básico universal – RBU – é uma possibilidade, a redução da jornada de trabalho é outra”.
Para os professores Cesar Sanson e José Roque Junges, o diagnóstico feito por Francisco de que vivemos uma catástrofe econômica e social, com ligação direta com uma crise ambiental, é preciso. “Está em curso um ‘sistema da morte’, palavras do papa. Sendo ainda mais claro, embora o papa não explicite, a locomotiva descontrolada [usada por Francisco como metáfora no discurso] é o capitalismo em toda a sua selvageria”, aponta Cesar. “O abismo e a tragédia a que nossa economia está levando é, primeiramente, social pelo descarte da maioria da população, e também por um descarte da natureza, no fundo porque reduz a natureza a commodities que produzem lucro”, observa Roque.
Para Cesar, depois desse diagnóstico, a questão é pensar em como parar essa locomotiva. “Desconfio que o próprio Papa, embora não o diga, não acredita que isso seja possível. A descontrolada locomotiva do capitalismo caminha para o descarrilamento e junto com ela levará a humanidade”, analisa, em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Cesar ainda considera Francisco “um pouco ingênuo” ao considerar que a economia precisa ter um rosto. Para o professor, isso é impossível enquanto essa for uma economia de mercado.
Assim, considera “bem mais certeiro, porém, quando sugere iniciativas ao menos para mitigar o desastre da destruição da sociedade do trabalho, como o ‘salário universal’ e a ‘redução do horário de trabalho’. Aqui o papa se coloca na vanguarda do debate mundial, se mostra mais à esquerda que parte considerável do movimento operário-sindical e dos partidos progressistas”. Roque também concorda, mas destaca que essa não é uma solução definitiva. “A solução é uma mudança total do sistema, em que, por exemplo, não haja uma identificação entre emprego e trabalho. O que deve ser valorizado é o trabalho, esse deve ser o modo de as pessoas poderem sobreviver, o que não significa simplesmente o emprego”, analisa, em entrevista com respostas enviadas via áudios de WhatsApp.
O professor Roque também considera que a economia de mercado é destrutiva e analisa como a “função” originária da economia foi sendo corrompida e passando a ter como único objetivo o lucro. Por isso, acredita que o grande desafio ético e moral seja reconstruir uma ideia de comum. “É necessário chegar a um comum construído na hospitalidade chegando a um diferente”, acrescenta. E para ele, caminhos bem claros para isso estão nas reflexões de Francisco presentes em duas encíclicas: Laudato Si’ e Fratelli Tutti. “Se a ciência e a religião não se deixarem pautar por esses valores que o papa aponta nessas duas encíclicas, se não têm consideração por essas duas bases, terão uma ética que não serve para refletir muito a crise civilizatória que estamos vivendo e o abismo da crise ecológica que estamos vivendo”, resume.
Cesar Sanson é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, atuando tanto na docência quanto na pesquisa com as temáticas Sociologia do Trabalho e Sociologia do Brasil. Possui graduação em Filosofia e História pela Pontifícia Universidade Católica – PUC-PR, com especialização em Economia e Trabalho pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Um dos parceiros do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, ainda possui mestrado e doutorado na área da sociologia do trabalho pela UFPR. Entre suas obras publicadas, destacamos os livros O trabalho nos clássicos da sociologia: Marx, Durkheim, Weber (São Paulo: Expressão Popular, 2021) e Trabalho e Subjetividade. Da Sociedade Industrial à Sociedade Pós-Industrial (Natal: UFRN, 2014).
José Roque Junges possui graduação em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC-RS, especialização em História do Brasil Contemporâneo pela Unisinos, mestrado em Teologia pela Pontificia Universidad Catolica de Chile e doutorado em Teologia Moral pela Pontificia Università Gregoriana de Roma, Itália. Atualmente é professor das disciplinas de bioética no curso de medicina e professor/pesquisador do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da Unisinos. Entre os livros mais recentes publicados, destacamos (Bio) Ética Ambiental (São Leopoldo: Unisinos, 2010); Bioética Sanitarista: desafios éticos da Saúde Coletiva (São Paulo: Loyola, 2014); Epistemologias da Bioética: Ensaios de Hermenêutica crítica (São Leopoldo: Unsinos, 2021).
Confira as entrevistas.
IHU – No seu pronunciamento no IV Encontro Mundial de Movimentos Populares, o Papa Francisco fala que “chegou a hora de travar a locomotiva, uma locomotiva descontrolada que nos está a conduzir ao abismo.” Qual o significado deste discurso?
Cesar Sanson – A locomotiva descontrolada nomeada pelo papa, trata-se, segundo ele, dos “grupos financeiros e organismos internacionais”, das “grandes empresas extrativas – mineiras, petrolíferas e do agronegócio”, das “grandes empresas alimentares que ficam com o pão dos famintos”, dos “fabricantes e traficantes de armas”, dos “gigantes da tecnologia” que para ganhar mais dinheiro fazem vistas grossas às mentiras e a manipulação política e por aí vai. Em suma, aqueles que colocam o lucro acima de tudo.
O significado desse discurso: está em curso um “sistema da morte”, palavras do papa. Sendo ainda mais claro, embora o papa não explicite, a locomotiva descontrolada é o capitalismo em toda a sua selvageria. A questão: “é possível parar essa locomotiva”? Desconfio que o próprio papa, embora não o diga, não acredita que isso seja possível. A descontrolada locomotiva do capitalismo caminha para o descarrilamento e junto com ela levará a humanidade.
A questão: “é possível parar essa locomotiva”? Desconfio que o próprio papa, embora não o diga, não acredita que isso seja possível. A descontrolada locomotiva do capitalismo caminha para o descarrilamento e junto com ela levará a humanidade – Cesar Sanson
José Roque Junges – No discurso do Papa Francisco ao Encontro Mundial de Movimentos Populares, ele afirma que a economia que nós temos vai nos conduzir para o abismo e é necessário travar essa locomotiva descontrolada, que é nossa economia. De que o papa está falando aqui, em específico, quando fala de abismo? Podemos interpretar isso em dois sentidos:
1) A economia que conhecemos, capitalista, nos está levando a um abismo social, porque é uma economia que considera uma grande maioria da população como descartável porque está fundada no mercado. Assim, só há interesse em quem participa dos mercados e todas as outras pessoas são descartáveis, o que, evidentemente, leva à tragédia social que estamos vivendo. E, no caso do Brasil, essa tragédia ainda está sendo aumentada com a fome. Nos últimos 50 anos, nunca tivemos tanta fome no país como agora e isso vem de uma economia que está fundada nesse descarte de uma maioria da população que não interessa.
2) O outro sentido, o outro abismo a que somos levados, é o ambiental e ecológico, porque a economia que conhecemos não leva em consideração os limites que a natureza coloca. Isso porque reduziu a natureza a recursos naturais e nunca consegue conceber a natureza como um fundo que nos oferece as condições para a vida. Por isso, temos todas essas questões da crise ambiental e toda mudança climática que estamos vivendo, uma outra tragédia que se acresce a tragédia social.
Essa tragédia ambiental é fruto dessa redução da natureza apenas como recurso para tirar proveito econômico desses recursos. Assim, o abismo e a tragédia a que nossa economia está levando é, primeiramente, social pelo descarte da maioria da população, e também por um descarte da natureza, no fundo porque reduz a natureza a commodities que produzem lucro.
No caso do Brasil, essa tragédia ainda está sendo aumentada com a fome. Nos últimos 50 anos, nunca tivemos tanta fome no país como agora e isso vem de uma economia que está fundada nesse descarte de uma maioria da população que não interessa – José Roque Junges
IHU – O pontífice ainda fala em “dar rosto” à economia. Como chegamos a uma economia desumanizada? Como analisa a proposta de Francisco de uma renda básica universal e redução de jornadas de trabalho para assegurar emprego e renda a todos?
Cesar Sanson – A economia já começa desumanizada. Karl Polanyi, acerca do surgimento da economia de mercado, a caracteriza como uma “catástrofe que transforma homens e mulheres decentes numa malta de mendigos”; Marx, falando da economia, afirma que é constitutiva a ela a produção da miséria; até Adam Smith reconhece e alerta que o mercado tem forte tendência para cometer abusos. É possível dar um rosto à economia? Aqui, me parece que o papa é um pouco ingênuo. A economia de mercado nunca terá um rosto, ou se preferirmos, o rosto da economia é o rosto da morte, da fome e da destruição.
É possível dar um rosto à economia? Aqui, me parece que o papa é um pouco ingênuo. A economia de mercado nunca terá um rosto, ou se preferirmos, o rosto da economia é o rosto da morte, da fome e da destruição – Cesar Sanson
Bem mais certeiro, porém, é quando sugere iniciativas ao menos para mitigar o desastre da destruição da sociedade do trabalho como o “salário universal” e a “redução do horário de trabalho”. Aqui o papa se coloca na vanguarda do debate mundial, se mostra mais à esquerda que parte considerável do movimento operário-sindical e dos partidos progressistas. O papa avançou nesse debate. Em 2015, num encontro com operários de uma grande siderúrgica em Gênova, afirmava que apenas o trabalho importa. Agora, ele reconhece que o capitalismo, em função até mesmo da evolução das forças produtivas, exauriu a possibilidade de que todos tenham um emprego.
José Roque Junges – Podemos dizer que isso já começa na própria concepção de economia, porque a economia, no seu sentido etimológico, oikonomos, significa a boa norma da casa. Que casa é essa? A casa social e a casa ambiental. Então, a economia deve se reger pela boa norma da casa, mas a economia se transformou numa crematística; cremata, em grego, significa riqueza. Assim, a economia deixou se pautar pela boa norma da casa e passou a se pautar, por obra do capitalismo, em criar lucro, riqueza às custas justamente das pessoas e da natureza.
Essa economia só pode estar desumanizada porque ela se afastou daquilo que é o próprio objetivo de porque existe a economia. E hoje isso está ainda mais agudizado pelo capitalismo financeiro, que substituiu o capitalismo industrial. O capitalismo industrial ao menos produzia bens para as pessoas. O capitalismo financeiro é simplesmente abstrato e está fundado apenas em capital rentável. Essa economia só pode ser desumanizada e ela realmente está nos levando ao abismo.
A economia deve se reger pela boa norma da casa, mas a economia se transformou numa crematística; cremata, em grego, significa riqueza. Assim, a economia deixou se pautar pela boa norma da casa e passou a se pautar, por obra do capitalismo, em criar lucro, riqueza às custas justamente das pessoas e da natureza – José Roque Junges
Renda básica e redução das jornadas
A proposta do papa de renda básica universal e redução das jornadas de trabalho seria uma forma de a economia voltar a ser uma boa norma da casa. A casa está caindo no abismo social e ecológico. Um caminho para principalmente evitar a tragédia social que vivemos em nossa casa social seria uma renda básica para todos e a redução das jornadas de trabalho. Para isso, nós deveríamos, aos poucos, caminhar nesse sentido. Isso porque a sobrevivência das pessoas a partir da economia capitalista sempre dependeu mais do emprego. Quer dizer que as pessoas têm que ter emprego para poder sobreviver. Mas, como sabemos que não vai mais ter emprego – ao menos dentro da concepção de emprego que tínhamos – para todos, é necessário chegar a essas duas propostas do papa, que seria um outro modo de as pessoas sobreviverem.
Se esse caminho seria uma solução definitiva? A solução é uma mudança total do sistema, em que, por exemplo, não haja uma identificação entre emprego e trabalho. O que deve ser valorizado é o trabalho, esse deve ser o modo de as pessoas poderem sobreviver, o que não significa simplesmente o emprego. Mas creio que a renda básica e a redução das jornadas são um caminho para deixar de simplesmente identificar o trabalho como emprego e nós chegarmos a uma valorização sempre maior daquilo que é o trabalho, que é uma condição humana de todos.
IHU – Como trazer esse debate da Renda Básica e redução de jornadas para o Brasil de hoje? E tens percebido essa preocupação aparecer nos programas dos possíveis candidatos à Presidência em 2022?
Cesar Sanson – Esse debate circula pelo Brasil, mas é frágil. O debate sobre a redução da jornada de trabalho já foi mais forte entre nós, particularmente nos anos 1980. Hoje, não se fala mais nisso. Aparece em documentos das centrais sindicais, etcétera e tal, mas se transformou apenas em retórica. Não se acredita efetivamente que seja possível reduzir a jornada de trabalho numa sociedade altamente desindustrializada. Aliás, o que vemos é o aumento da jornada de trabalho quando observamos o fenômeno da uberização. Mas, a perversidade agora é que esse aumento brutal do tempo de trabalho é comandado pelos próprios trabalhadores e não pelos patrões.
A economia política, porém, mesmo aquela oriunda da academia progressista, olha com desconfiança essa proposta. Ela acredita ainda que o melhor é o retorno do pleno emprego a partir de um projeto desenvolvimentista de corte keynesiano. A pergunta é: é possível ainda isso? – Cesar Sanson
A ideia do “salário universal”, ou “renda básica mínima ou universal”, tem crescido entre nós, particularmente a partir dos movimentos sociais. A economia política, porém, mesmo aquela oriunda da academia progressista, olha com desconfiança essa proposta. Ela acredita ainda que o melhor é o retorno do pleno emprego a partir de um projeto desenvolvimentista de corte keynesiano. A pergunta é: é possível ainda isso? O pleno emprego não retornará, ou se retornar, voltará em sua versão precarizada, sem direitos e com renda insatisfatória, o que já está acontecendo.
Sobre esses temas entrarem no debate eleitoral de 2022, não há chances. A redução da jornada de trabalho já foi esquecida e a proposta da renda básica universal entrará no debate em sua forma apequenada, via Bolsa Família, iniciativa boa, mas bem distante da ideia de um “salário universal”. Falta ousadia aos nossos políticos de esquerda.
IHU – De que forma essa “provocação de Francisco” fornece outras chaves para uma outra teologia moral?
José Roque Junges – Creio que, principalmente com a Encíclica Fratelli Tutti, o papa coloca uma questão fundamental para nossa civilização, que é a reconstituição do comum. A modernidade foi sempre desconstruindo o comum que tínhamos até então, que era um comum comunitário, tradicional, que foi sendo sempre mais desconstruído para que apareça o indivíduo e um indivíduo que consome, que participa do mercado. Essa concepção individualista moderna está na base de toda essa tragédia e do abismo que estamos vivendo.
O desafio para a teologia moral e para a ética em geral seria que nós reconstituíssemos o comum. Esse é o principal desafio da crise civilizatória que vivemos. Mas, reconstituir o comum, segundo o Papa Francisco, em Fratelli Tutti, significa um comum pautado pela hospitalidade. Portanto, não é um comum “comunitarista” como pensam os “comunitaristas” anglo-saxões, a partir de um comum comunitário fundado nas tradições culturais, religiosas, nas tradições linguísticas e nas raciais. Esse comunitário está ultrapassado e não é solução porque ele é discriminatório e não é movido pela hospitalidade.
Seria necessário constituir um comum em nossa sociedade e isso não está dado, o velho comunitarista não nos interessa e ele é o problema. Ele é hoje a causa de muita discriminação, de muitos movimentos que vão na linha de direita e que não concebem, por exemplo, a vinda de estrangeiros, de imigrantes porque isso põe em xeque esse próprio comum comunitarista tradicional.
E esse outro comum se constrói pelos valores da hospitalidade e da humanidade e não simplesmente da nacionalidade. O populismo que vivemos hoje, pautado pela nacionalidade, é uma parte dessa tragédia que vivemos. Então, é necessário chegar a um comum construído na hospitalidade chegando a um diferente. Esse é o princípio fundamental que deve fundar também uma nova teologia moral.
Se a ciência e a religião não se deixarem pautar por esses valores que o papa aponta nessas duas encíclicas, se não têm consideração por essas duas bases, terão uma ética que não serve para refletir muito a crise civilizatória que estamos vivendo e o abismo da crise ecológica que estamos vivendo – José Roque Junges
IHU – Que ética podemos apreender nas entrelinhas do discurso do pontífice? Quais os impactos dessa ética em campos tão modernos, como o científico e o religioso, por exemplo?
José Roque Junges – É um discurso pautado muito pela Fratelli Tutti e também pela outra encíclica ecológica, a Laudato Si’, que representam os dois grandes desafios de nossa crise civilizatória. É o desafio social, que consiste no descarte de uma grande maioria da população e também a crise ambiental e ecológica movida pela questão da mudança climática e tantas outras pela redução da natureza como estoque de recursos para valorização econômica.
Enquanto não levarmos em consideração na ética e numa ética construída sobre essas duas bases, a social e a ambiental, como objetivos máximos para responder a questão da crise civilizatória que nós vivemos e o abismo em que estamos – seguindo valores postos na Fratelli Tutti e que têm a hospitalidade como valor fundamental, e a Laudato Si’, que tem como valor principal que a natureza não está simplesmente a serviço dos humanos e sim que todos os seres vivos têm um valor intrínseco –, os campos modernos do científico e religioso vão ser problemáticos porque serão ideologizados.
O científico será ideologizado por tudo aquilo que nós vivemos hoje no Brasil, que é uma mentalidade anticientífica. Isso vem da ideologização da ciência e também da religião à serviço de valores que justamente estão na base desse abismo e dessa tragédia dessa crise civilizatória que vivemos. Se a ciência e a religião não se deixarem pautar por esses valores que o papa aponta nessas duas encíclicas, se não têm consideração por essas duas bases, terão uma ética que não serve para refletir muito a crise civilizatória que estamos vivendo e o abismo da crise ecológica que estamos vivendo.