Sinpro/RS: Educação e cultura de massa

Por José Luís Ferraro

Educação e cultura de massa: “Não importa quem é o professor ou quem são os alunos. Todos passam a ser coisas no interior do apagamento das relações humanas de uma educação convertida em relação de consumo: da e para a massa”.

Sem dúvida, o século 19 foi uma época de ouro para o pensamento ocidental. Não apenas pela explosão do conhecimento científico – marcado principalmente pela organização das ciências de base empírica, como as ciências naturais e a matemática –, mas pelo legado filosófico que impulsionou a história.

E, por extensão, os campos intelectual e epistemológico modernos, cujos reflexos, na contemporaneidade, não poderiam estar mais vivos.

Os impactos do pensamento filosófico, sobremaneira dos autores filiados à vertente crítica, são úteis às práticas de desconstrução conceituais que visam questionar tanto a moral, quanto o ethos como efeito de uma época – produto de um sistema de disposições valorativas vigente e determinante à subjetivação.

Educação e formação

Neste contexto, a educação como fenômeno humano vinculado à ideia de formação, também se converteria em objeto possível de uma analítica ético-moral.

E assim o fez Friedrich Nietzsche, quando se referiu à educação estatal que abandonara a ideia de formação como ascese – elevação espiritual, erudição – para concentrar-se na técnica, como àquela que fomenta a moral de rebanho.

Afinal, o que importa, agora, é a produção de uma massa de trabalhadores; momento em que o senso comum passa a ver a escola tão somente como a grande agência do saber-fazer.

Karl Marx, contemporâneo de Nietzsche e outro expoente da filosofia alemã poderia ir conceitualmente ao encontro do sentimento nietzschiano em relação a uma educação que na esteira dos séculos 20 e 21 seria sequestrada pelos modos de racionalidade capitalista e (neo)liberal.

Os conceitos marxianos de reificação e de fetiche da mercadoria, por exemplo, corroboram a percepção de Nietzsche em relação ao que se desenharia para uma educação do futuro.

Commoditie

Se a reificação corresponde a uma espécie de alienação pela “coisificação” de atividades produtivas que passam a ser compreendidas pelo viés econômico, de troca, passando a ser automatizadas (a relação do professor como trabalhador da educação, que mediante pagamento de salário como contraprestação reproduz suas aulas em situação cada vez mais precarizada de trabalho, por exemplo); o fetiche da mercadoria está na transformação do processo educativo, da própria docência em commoditie.

Logo, não importa quem é o professor ou quem são os alunos – não interessa quem é o outro, a alteridade da relação educativa.

Todos passam a ser coisas no interior do apagamento das relações humanas de uma educação convertida em relação de consumo: da e para a massa.

Cultura de massa

Um século mais tarde, Theodor Adorno, Max Horkheimer e Walter Benjamin, filósofos da Escola de Frankfurt, também poderiam se juntar à problematização.

Adorno e Horkheimer pela referência que fazem à indústria cultural (que, posteriormente, será retomada pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu); Benjamin, por sua vez, a partir do ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, publicado em 1936.

Se para Adorno e Horkheimer a indústria cultural marca a origem da cultura de massa – relacionada ao advento de tecnologias de difusão e aos acontecimentos no âmbito da reprodução artística –, será Benjamin a aprofundar a discussão que abre espaço para pensarmos sobre o valor de uma obra de arte.

Mais especificamente, sobre o valor que sua reprodução adquire em face à promoção de uma desvinculação do sentido da obra e do trabalho do artista em termos políticos, de sua relação com o espaço-tempo em que foi concebida, com o seu “aqui” e “agora”.

A reprodução como interdição da aura estabelecida no momento da concepção da obra pelo artista.

Da moral de rebanho, passando pela reificação e pelo fetiche da mercadoria, até a indústria cultural e à reprodutibilidade da obra de arte como efeitos da sociedade capitalista, o que há de comum é um desejo de massa: educar, atender, prover a massa.

Sob o domínio da imagem

A massa como em José Ortega y Gasset; uma categoria homogênea esteticamente marcada por sujeitos que podem pertencer a quaisquer classes sociais que vulgarizam a cultura sucumbindo ao domínio da imagem.

Sujeitos acríticos a quem pouco importa a tradição, a história, a erudição.

Uma massa que escolhe não opinar até que alguém consiga fazê-la mudar de ideia – não pelo uso da razão, mas por meio de uma estratégia de convencimento ancorado em um tipo de comunicação assertiva e específica.

Uma comunicação eficaz porque coincide com um sistema simbólico empobrecido, endógeno e compartilhado entre a própria massa – atualmente personificado pelo personagem do “tio do pavê” no churrasco de domingo; que rasga elogios a um presidente que usa caneta esferográfica barata e come pão com leite condensado enquanto faz piadas homofóbicas.

Massificação da educação

A grande questão neste ponto é perceber que aquilo que é acessível à massa depende do que Bourdieu definiu como habitus: um sistema de repertórios que serve como uma espécie de filtro que nos permite vislumbrar uma semiótica das relações sociais; incluindo-se aí as educacionais.

É em face disso que não se pode esperar que o brasileiro médio não defenda a atrocidade de um projeto como o do homeschooling, por exemplo. Afinal, esse sujeito é a personificação do homem-massa de Ortega y Gasset, desprovido da codificação necessária à compreensão do habitus.

Em outras palavras, um indivíduo sem repertório, incapaz de decodificar e problematizar acontecimentos posicionando-se criticamente – “um tipo de homem feito de pressa”.

Enfim, se nos perguntássemos o que há de comum nas referências conceituais destes pensadores ao campo educacional, a resposta seria a massificação da educação – pelo menos, por dois fatores, entre tantos outros possíveis, que nos últimos tempos têm se sobressaído pela disponibilidade – pela banalização de sua oferta.

Me refiro aos cursos a distância com a gravação de aulas reutilizadas/recicladas (a mesma aula editada de maneiras diferentes, para distintos cursos e em períodos de tempo contabilizados em anos); e a venda de planos de aula prontos com foco em professores da educação básica com a promessa de livrá-los da burocracia do planejamento escolar.

Ambos consistem na quintessência da massificação.

Seja na utilização de aulas gravadas, seja na venda dos planos de aula, uma coisa é evidente: a aula como acontecimento, tal qual preconizada por Gilles Deleuze está com seus dias contados – e não é de hoje.

No caso da educação, a reprodutibilidade benjaminiana relacionada à arte transcendeu a técnica alvejando a dimensão técnico-intelectual.

Os professores deixam de ser autores em um cenário educativo cada vez mais pautado por relações impessoais e desconectadas do tempo presente – diluídas na e pela massa – em atendimento à lógica de mercado que transformou escolas e universidades em empresas.

Ferramentas de mercado

Seguindo a cartilha de um modus operandi que lhes é peculiar, essas universidades/empresas espalharam tecnocratas em todos os níveis da gestão educacional embrutecida pelo rigor de normas que, supostamente, regem “boas práticas” da governança e do compliance.

Não passam de eufemismos convertidos em instrumentos de caça às bruxas a partir do recrudescimento das avaliações institucionais e do crescente protagonismo dos canais de ouvidoria, que transparecem menos a ideia de um dispositivo inquisidor e mais a ilusão da democratização corporativa.

Sob o verniz da “inovação”, esses termos funcionam como máscaras para tecnocratas que pouco sabem de educação nas escolas em que atuam e menos ainda sobre ensino, pesquisa e extensão fora da ficção dos planejamentos estratégicos nas universidades.

Nesse cenário aterrador, a massificação da educação prevalece à luz de um sistema competitivo e meritocrático.

A massa é o grande alvo de um mercado que, ao decompor suas características, tende a ser assertivo por meio de uma comunicação persuasiva pautada no convencimento e na extorsão.

É neste contexto – em que se decidiu abrir mão da educação em troca da excessiva bajulação às ferramentas de mercado – que ocorre a pauperização dos processos de ensino e aprendizagem.

Isso vale dizer também dos espaços institucionais, cada vez mais hostis aos professores sobre os quais se decidiu exercer um controle excessivo em nome da preservação de uma racionalidade de massa que normaliza o apagamento das subjetividades e dá às costas à tradição acadêmica: uma racionalidade que afeta a consciência de um significativo número de gestores educacionais que no interior da lógica da massa repetem o mantra de que ninguém é insubstituível. Será?

José Luís Ferraro é doutor em Educação, pesquisador e professor universitário. Bolsista Produtividade do CNPq.

Do jornal Extra Classe, do Sinpro/RS

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