Sinpro/RS: Justiça condena escola que demitiu professor por crítica ao desperdício de água em Uruguaiana
Demissão ocorreu após crítica ao racionamento de água em Uruguaiana só para a população urbana – um dos inúmeros casos de assédio e violência contra professores acusados de "doutrinação" no ensino privado
O juiz Gustavo Jaques, da 2ª Vara do Trabalho de Uruguaiana, condenou a Sociedade Meridional de Educação Some, mantenedora do Colégio Marista Sant’Ana, de Uruguaiana, a indenizar o professor Ronan Moura Franco por danos morais.
O professor foi demitido da instituição após fazer uma postagem em sua conta pessoal do Twitter na qual criticava o desperdício de águapor latifundiários no município de Uruguaiana, que é um dos principais produtores de soja e arroz da região Oeste do Rio Grande do Sul.
Na sentença, de 6 de agosto, o juiz rejeitou o pedido de condenação por demissão discriminatória, mas entendeu que o professor sofreu danos morais ao ser afastado. Com isso, o judiciário associou a demissão a um gesto de represália por parte da gestão escolar contra a livre manifestação de Franco.
O colégio foi condenado ao pagamento de R$ 30 mil e mais R$ 4,5 mil de honorários de advogados.
O professor informou que irá recorrer. “Seguiremos em outras instâncias na tentativa de que a justa condenação por demissão discriminatória aconteça, assim como os valores sejam ajustados, conforme os danos que tive”, ressaltou.
Esse foi um dos quatro casos mais graves de assédio denunciados ao Núcleo de Apoio ao Professor Contra a Violência (NAP), mas existem situações em que o professor não quis se manifestar. Em dois deles, os docentes foram demitidos. Mantido pelo Sindicato dos Professores (SInpro/RS) , o serviço de apoio contra o assédio e a violência implícita ou não contra professores do ensino privado vem recebendo cada vez mais denúncias.
De acordo com a diretora do sindicato e coordenadora do NAP, Cecília Farias, não são raros os episódios em que conteúdos de aulas ou posicionamentos mais firmes geram acusações infundadas de “doutrinação” e até afastamentos. Além de se caracterizar como assédio, situações como essas são uma violação aos direitos e à liberdade para dar aulas inerente à docência. Na maioria dos casos, E sem o amparo da gestão escolar na maioria das vezes.
Desperdício de água em Uruguaiana
O episódio que gerou a demissão do professor ocorreu no início de janeiro. Localizada a 130 quilômetros de Porto Alegre, na fronteira fluvial com a Argentina e o Uruguai, Uruguaiana está entre os maiores produtores de soja, arroz irrigado e outras monoculturas que consomem grandes quantidades de água em suas lavouras.
A atividade consome grandes quantidades de água nas lavouras em uma das regiões mais castigadas pela seca. Mas ao contrário dos produtores, é a população quem paga a conta do desperdício de água. No verão de 2022, a prefeitura de Uruguaiana fez um chamamento pelas redes sociais, mas resolveu não mexer com o latifúndio. As mensagens convidavam a população urbana a racionar o consumo de água.
Diante da contradição gritante, o professor resolveu ironizar a situação com uma postagem: “Bom dia, pobres. Já economizaram água hoje para um latifundiário poder irrigar sua lavoura de soja?”. A mensagem irritou pessoas influentes na cidade e se iniciou uma campanha de cancelamento do professor pelas redes sociais. “Eu estava de férias e passei a ser alvo de ataques pessoais feitos por produtores que pressionaram a escola a me afastar, relata Ronan – ele conta que também recebeu muito apoio dos seus alunos e das famílias que não compactuaram com a violência.
Omissão e violência
Formado em Licenciatura em Ciências da Natureza, com especialização em Neurociência aplicada à Educação, Mestrado em Ensino de Ciências e doutorando em Educação em Ciências, Ronan leciona atualmente na rede municipal de educação de Uruguaiana.
Ele ressalta que, nos autos do processo, o Colégio Marista Sant’Ana, de Uruguaiana, negou a relação entre a manifestação do professor e a demissão, mas admitiu que houve pressão dos pais. Segundo o representante da direção declarou ao juiz, a escola resolveu afastar o professor “como forma de resguardar o autor de situações e de reações de grande número de pais que se manifestaram publicamente e/ou diretamente ao colégio, por se sentiram atacados e ofendidos com a postagem”.
“Nas audiências, demonstramos que a parcela de pais que se sentiu incomodada não representa nem 10% dos meus cerca de 200 alunos. A escola não apresentou qualquer registro que documentasse as reclamações que acarretaram a minha demissão, inclusive seus representantes e testemunhas afirmaram ser “meia dúzia” ou “ um ou dois” nas palavras deles”, contesta o professor.
Ele afirma que foi desconsiderado nessa avaliação ao não ser ouvido. “O que me revolta é que a escola tratou, durante o processo, toda a violência que sofri, em que tive minha imagem vilipendiada, fui ofendido e agredido nas redes sociais como uma “comoção” dos pais supostamente ofendidos pela postagem, nunca como uma agressão ou violência”, questiona.
A instituição não quis se manifestar.
Assédio na rede privada
Ronan acredita que a demissão dele foi a imposição de um castigo no qual a escola se protegeu e se eximiu do debate e do diálogo, cedendo e assumindo uma postura autoritária, antidemocrática.
Ele revela que os ataques e a demissão agravaram um quadro de ansiedade com crises contínuas e depressão.
“Precisei de acompanhamento rigoroso e de alteração de medicação, conforme parecer psiquiátrico anexado ao processo. Além disso, foi afirmado por parte da escola, que eu estaria pleiteando uma “loteria jurídica”, desdenhando e ironizando o que por lei foi comprovado como meu direito”, relata.
Para o professor, sua experiência demonstra a urgência de um debate sobre o assédio a que os educadores estão expostos, especialmente nas escolas privadas, e entende que essa realidade requer um posicionamento por parte dos gestores.
“Espero que essa importantíssima condenação, seja um primeiro passo para que outros professores sejam indenizados e, principalmente, que estas escolas que se dizem cristãs e com valores humanísticos, mas que colocam interesses mercadológicos valorando a educação somente como um serviço, sendo os professores a parte mais frágil e descartável desse contexto, paguem, sejam condenadas e que suas condenações reverberem, encorajando e empoderando professores e professoras a buscarem por seus direitos, por justiça”, aponta.
Negacionistas do aquecimento global
Em abril, uma aula do ensino médio virou polêmica e cancelamento do professor de biologia Enrico Blota, da escola Mario Quintana, de Pelotas, que usou dados científicos para demonstrar em sala de aula a relação entre a produção de carne e arroz e o efeito estufa.
A aula era preparatória para as provas do Programa de Avaliação da Vida Escolar (Pave), que serve de vestibular para acesso à Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
“Usei um exemplo em aula de que para um quilo de carne chegar à nossa mesa está envolvido como um todo, desde a produção até a chegada, o consumo 15 mil litros de água. Este dado é facilmente encontrado no Google. É científico e de domínio corrente”, relatou o professor.
Uma menção à contribuição do gado para o efeito estufa desencadeou a reação de um aluno filho de dirigente do sindicato rural da região que fotografou a aula e fez postagens nas redes sociais acusando o professor de “doutrinação”.
O proprietário e fundador da escola Mario Quintana, Carlos Valério, que também é professor, não defendeu a liberdade de cátedra do colega, como seria de se esperar. Ao contrário, ele se juntou a pais de alunos e entidades ligadas ao agronegócio e mandou publicar uma nota no Diário Popular, acusando Blota de ter cometido “um grande equívoco em sala de aula”.
Iluminismo e as trevas
Em março, uma professora foi demitida por uma tradicional escola privada de Porto Alegreapós acusações de “doutrinação” disseminadas em redes sociais por alunos que não gostaram de uma explanação em sala de aula sobre a histórica exclusão das mulheres do mundo do trabalho e da educação – do Iluminismo até a atualidade.
A professora de ciências humanas que foi demitida supostamente por pressão da família do aluno é socióloga, pedagoga, doutora, mestre e licenciada em história. Ela lecionava na instituição desde 2019. Em um ataque de fúria, o estudante acusou a professora de críticas a Bolsonaro.
“O desligamento foi uma questão política. As agressões e pressões de alunos e de pais contra professores sempre foram uma realidade e a escola nunca se posicionou”, enfatiza ela, que concedeu entrevista com a condição de anonimato.
Papel das escolas
As escolas precisam assumir que o seu papel não é de neutralidade frente a assuntos contraditórios e/ou sensíveis, mas que são problemas sociais e impactam diretamente a vida dos estudantes, afirma Ronan.
“Não se assumindo de forma político-partidária, mas tendo coerência de abordar fatos, vida real, não fantasiar a realidade para agradar aqueles que se incomodam com a desestabilização do status quo, historicamente construído com a exploração da classe trabalhadora”.
Espaço de divergências e aprendizado
Para Cecília Farias, diretora do Sinpro/RS e coordenadora do Núcleo de Apoio ao Professor Contra a Violência (NAP), que acompanha casos de violência implícita ou não no ambiente de trabalho, é importante que as gestões não vitimizem nem acusem o corpo docente de posicionamentos ideológicos em decorrência de conteúdo de aulas.
“O professor não pode incitar os alunos a pensar como ele, mas questões como a demanda de água pelas monoculturas, agrotóxicos, meio ambiente ou a supremacia masculina ao longo da história desde o Iluminismo são questões históricas, não de opinião. Aquilo não está relacionado a partidos políticos ou posições políticas”, ressalta.
De acordo com a dirigente, a escola, além de trabalhar novas aprendizagens, deveria ser o espaço de excelência na discussão e reflexão de temas, inclusive quando houver discordância de ideias. “É com diálogo que o aprendizado se torna potente. No entanto, o professor é obrigado e emudecer quando há pensamentos conflitantes, porque a sociedade desaprendeu a divergir com argumentos e com respeito”, enfatiza.
Autonomia para demitir
Em nota, o sindicato das instituições de ensino privado disse apenas que as escolas têm autonomia para demitir preferiu não opinar sobre liberdade de cátedra e os casos de assédio a professores cada vez mais frequentes nas escolas.
“O Sinepe/RS respeita a autonomia nos aspectos de gestão, tanto administrativo-financeiros, quanto nos aspectos ligados ao projeto pedagógico e regimento escolar das instituições associadas. Nestes documentos, que foram aprovados pelos órgãos e autoridades competentes, estão escritos os princípios e normas que regem suas atividades, tanto pedagógicas quanto administrativas. Portanto, compete à escola tomar suas decisões à luz de seus documentos”, afirma Oswaldo Dalpiaz, presidente eleito da entidade. Dalpiaz é mestre em filosofia da educação pela PUCRS e também conselheiro do Conselho Estadual de Educação (CEEd-RS).