Sinpro/RS: O garimpo ilegal de ouro sustenta o sistema financeiro
São cada vez mais borradas as fronteiras entre a mineração “legal” e o garimpo clandestino que devasta o meio ambiente e avança sobre terras protegidas
Por Gilson Camargo
A obsessão do governo federal em ampliar as fronteiras da mineração a pretexto de explorar as riquezas minerais de forma sustentável que demonstra o alinhamento com interesses do capital internacional, coincide com o avanço do garimpo ilegal na Amazônia.
No Rio Grande do Sul, eleito por bancos canadenses e australianos como novo marco da mineração, existem mais de 5 mil requerimentos para pesquisas e 166 projetos em andamento, a maioria deles com potencial de destruição do Bioma Pampa.
Esse o contexto do Painel A mineração: impactos ambientais e sociais, realizado na quinta-feira, 19, na programação do Sinpro/RS Debate sobre meio ambiente que iniciou na terça-feira enfocando as queimadas e o desmatamento.
O debate virtual sobre mineração foi apresentado pelo diretor do Sinpro/RS, Marcos Fuhr, tendo como painelistas o jornalista e membro da coordenação nacional do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), Márcio Zonta, a advogada com atuação em direito ambiental Patrícia da Silveira Tavares, e o geólogo Rualdo Menegat, professor do Instituto de Geociências da Ufrgs e doutor em Ecologia de Paisagem. A mediação e a interação com o público contou com os diretores do Sindicato, Flávio Henn e Cecília Farias.
Quem ganha com a nova corrida do ouro
Márcio Zonta iniciou sua explanação lembrando que o Brasil está no centro de um aumento da demanda global pela mineração de ouro, minério de ferro e uma série de outros minerais, devido ao desenvolvimento de novas tecnologias, da indústria bélica e da desvalorização das moedas. “A mineração na Amazônia e no Rio Grande do Sul têm em comum a intervenção mundial que visa as reservas minerais do país”.
De todos os minerais expoliados pelo capital transnacional na Amazônia, ele destacou a mineração de ouro e de minério de ferro na região de Carajás, que tem uma das maiores jazidas do mundo. De 2010 a 2020, 50% dos pedidos de mineração na América Latina foram referentes à pesquisa de ouro. “Teve um avanço das transnacionais em relação ao ouro do mundo muito por conta dessas demandas. Esse avanço encontrou barreiras na América Latina. No Brasil, sobretudo na Amazônia, devido à legislação que protege áreas de preservação ambiental e indígenas, entre outras onde não se pode minerar, e porque vários conflitos surgiram e frearam esses processos”.
Transnacionais apelam à ilegalidade
Diante das barreiras impostas pela legislação e pela resistência dos povos da região, as transnacionais recorreram à exploração ilegal. “Em se tratando de ouro na Amazônia, não sei se há diferença entre a exploração legal e ilegal, até pela forma como é contabilizada a saída desse ouro”, apontou.
Em Santarém, dados do Ministério Público Federal (MPF) e da Polícia Federal considerados subnotificados, destacou o jornalista, mostraram que entre 2015 e 2018, o Brasil teve um prejuízo de R$ 70 milhões de ouro contrabandeado.
“Estima-se que saíam por volta de 650 quilos de ouro ilegal do país. Na Bacia de Tapajós, que é mais emblemática, embora haja mais de 450 pontos de garimpo ilegal na Amazônia brasileira, havia uma estimativa de extração de 30 toneladas por ano de maneira ilegal, ou mais de R$ 4,5 bilhões não declarados ao governo brasileiro, ou seja seis vezes mais do que o chamado ouro legal retirado na mesma região”.
Grilagem, queimadas, garimpo e genocídio
O palestrante estabeleceu as conexões entre a ocupação ilegal de terras públicas e a destruição da floresta pelo garimpo na região.
“Em 2019, dos 9 mil focos de queimadas na Amazônia, 5 mil ocorreram em áreas indígenas com incidência mineral, ou seja, que têm potencialidade de mineral e um nível de pesquisa. Parte dessas áreas estão vitimizadas pelo processo das queimadas que nós sabemos são criminosas, seja pelo avanço do agronegócio, seja da mineração. Hoje, 80% dessa atividade ilegal ocorre em áreas de conservação e indígenas”, denuncia.
A disputa pelo ouro que comanda o garimpo ilegal na Amazônia coincide com os crimes socioambientais. “Há uma corrida pelo ouro, mas há uma destruição ambiental e do indigenato brasileiro concomitante a essa corrida do ouro”, constata.
No rastro da mineração, trabalho escravo e exploração sexual
Além do desmatamento, das queimadas, da invasão de terras públicas e violência contra as populações indígenas expulsas de seus territórios, a mineração na região inclui no seu “pacote de impactos” o despejo do mercúrio em larga escala, o avanço da grilagem de terras e o trabalho escravo. “Conforme vai avançando, o garimpo vai juntando uma massa de trabalhadores escravos, implica no tráfico de pessoas para trabalhar de maneira forçosa nessas regiões, na exploração sexual infantil, sobretudo com as vilas ao redor desses garimpos ilegais, indígenas, quilombolas, ribeirinhos e a disseminação das mais variadas doenças”.
Para onde vai o ouro
O ouro brasileiro compõem a remessa de ativos financeiros que regula o sistema financeiro mundial. Segundo Zonta, o garimpo ilegal cresceu 60% na Amazônia durante a pandemia e tem uma ligação direta com o sistema financeiro. “Ele é esquentado pelo próprio Banco Central brasileiro, que depois envia para as instituições financeiras. O ouro expoliado da Amazônia à custa do ambiente e das populações da floresta vai para o coração financeiro, na avenida Paulista, em São Paulo, com toda essa problemática que nós estamos colocando”.
Bancos, corretoras e distribuidoras de títulos de valores mobiliários e os bancos centrais de várias partes do mundo se beneficiam do esquema, aponta. O próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, declarou que parte desse ouro vai para a reserva cambial brasileira. “Os estoques dos bancos centrais nos últimos 20 anos alcançaram seu patamar máximo, além da menor parcela que vai para a confecção de joias. Então há uma tentativa de regulação do sistema financeiro mundial em crise com o ouro das amazônias latinas, o caso brasileiro é o mesmo da Colômbia, do Equador, da Venezulela, do Peru”.
A riqueza que sustenta o capital vem dos grotões
A mineração impôs uma nova ordem econômica no país, segundo o painelista. “Estamos vendo uma nova reconfiguração no capitalismo no interior clássico. Em agosto, a exportação de commodities de Canaã dos Carajás. Há 15 anos essa cidade era um assentamento rural e com o projeto da Vale virou uma cidade do dia para a noite, assim como Paraupebas, uma vila indígena de Marabá que hoje tem 300 mil habitantes. Quando a Vale instala o projeto Carajás, aldeias viram cidades-caos, monstruosas”, relata.
Em agosto deste ano, exemplificou, essas duas localidades bateram as exportação de commoditiesdos dois campeões nacionais de exportação de ferro, São Paulo e Rio de Janeiro. “Há uma combinação entre o atrasado e o moderno. A riqueza que sustenta o capital do mundo não está saindo mais de centros que tinham industrialização, até porque o país primarizou a economia ao patamar neocolonial, de exportação de matéria prima. Por isso, somos campeões de exportação, entre eles os bens naturais como o minério de ferro”.
Milícias garimpeiras e altos investimentos
A extrema-direita, na figura do presidente Jair Bolsonaro e sua equipe acirrou a mineração ilegal com a implantação de milícias garimpeiras na Amazônia. “São verdadeiras milícias. Colocam fogo em carro do Ibama, ameaça indígenas, invade terras. Isso tudo foi acirrado pelo próprio governo federal. Por isso, a corrida do ouro encontrou no colo do Bolsonaro uma área ampla de atuação acabou de vez com o garimpo clássico”.
Nesse contexto, disse, a mineração “formiga” ficou no passado.
“Não é mais como Serra Pelada. Estamos falando de um negócio na Amazônia brasileira que movimenta 500 mil pessoas e que para iniciar precisa ter um capital entre R$ 500 mil e R$ 2 milhões, tem que construir pistas de pouso clandestinas, precisa de operadores de maquinário, seguranças. Para se ter uma ideia, uma retroescavadeira, que a Hyundai vendeu em Itaituba 600 unidades em 2019, custa entre R$ 500 mil e R$ 1 milhão cada. Olha aí uma sinergia entre a mineração chamada ilegal com o mercado legal, uma transnacional sul-coreana vende uma retroescavadeira para você destruir a Amazônia tirando ouro dessa forma”.
O plano de regulamentação da atividade ilícita apesentada por Bolsonaro à Agência Nacional de Mineração “representa o colapso do ponto de vista dos povos indígenas, dos povos das florestas, da própria floresta”.
Logística pronta
No Rio Grande do Sul, quem está por trás dos projetos de mineração são os bancos canadenses e australianos, que ao prospectarem o mapa da mineração no mundo, elegeram o estado como nova fronteira mineral. Com vantagens sobre a Amazônia.
“Tanto no RS quanto na Amazônia há uma grande disputa pelo território nacional brasileiro, que vai justamente entrar em conflito com o campesinato nacional. Há uma tentativa do Estado brasileiro, manipulado por esse bloco mundial e que fornece o aparato militar necessário, de chegar a uma era de plena mineração em área indígenas, de preservação, as margens de Porto Alegre, mas isso vai ganhando adeptos na sociedade ao plantar uma ideia dentro de uma guerra cultural de plena mineração”.
No caso gaúcho, ao contrário da Amazônia, onde foi necessário abrir 900 km estrada de ferro, construir hidrelétricas para fornecer o que era preciso para desenvolver o capital, o aparato logístico já está pronto, há a malha ferroviária, as estradas e os portos, concluiu.
Avanços e retrocessos da legislação
Em seu painel, a advogada Patrícia da Silveira Tavares apesentou uma análise normativa, citou a evolução da legislação e os impactos socioambientais na legislação brasileira e no cenário internacional em relação à mineração – marcada pela exploração do ouro e também dos metais ferrosos que produziram os crimes de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais.
Ao ratificar o Acordo de Paris, o Brasil assumiu uma obrigação voluntária, uma contribuição nacionalmente determinada, que recuperaria florestas devastadas e reduziria o desmatamento ilegal. Em relação ao tratado, o governo brasileiro não menciona a mineração, mas foca na proteção à floresta, sobretudo a Amazônica, e na preservação de áreas ambientais que constam da listagem do Ministério do Meio Ambiente como prioritárias: proteção às unidades de conservação e também aos povos indígenas, contextualizou.
Mudanças climáticas, o mito do visionário cego
A questão ambiental, frisou a palestrante, não pode ser dissociada da economia. “No início de 2020 foi publicado o relatório Cisne Verde, que reúne bancos centrais do mundo inteiro, mencionando que pensar economias a longo prazo, proteger as nossas finanças, isso implica rever a forma como exploramos a nossa matriz energética, em preserva e respeitar os direitos humanos. Isso tudo está num relatório de um organismo internacional que congrega o Banco Central. Então não é uma ideologia, uma plataforma de esquerda. Na verdade, é uma tendência mundial da economia e não seguir essa regra vai estar prejudicando a proteção do próprio planeta”, constata.
Assim como na mitologia grega, “nós temos o nosso Tirésias (o mito do clarividente cego de Tebas), que é o painel intergovernamental das mudanças climáticas, formado por cientistas do mundo inteiro que vêm denunciando e anunciando verdadeiros desastres ambientais que estão acontecendo agora. A ciência integra esse contexto das previsões e gera essas consequências para construirmos uma nova economia”, sinalizou.
Nova lei do garimpo, o descontrole
Ela destacou que a Lei 7.805, de 1989, mudou o conceito de garimpo de uma concepção de trabalho individual como em Serra Pelada para a exploração a partir da Permissão de Lavra Garimpeira (PLG), que não impõe limitações à metodologia empregada ou ao dano ambiental, nem controla o que é extraído.
Em 2020, o MPF publicou o manual da mineração, no qual arrola as ações civis públicas ajuizadas no período anterior ao atual governo e relata a concentração de permissões de lavra garimpeira a áreas no Amazonas com uma dimensão de 600 km. “Na resolução do Conama que trata da mineração, a lavra garimpeira não passa por um estudo prévio de impacto ambiental porque é considerada, a priori, como baixo impacto. Isso é uma aberração, é criminoso, pois estamos assistindo ao uso de maquinários caríssimos que revelam uma organização empresarial e não artesanal”, compara.
Povos indígenas contaminados com mercúrio
Além disso, não há controle sobre o uso de mercúrio na mineração. “O Brasil ratificou a Convenção de Minamata, que propõe a redução do uso do mercúrio nas mais diversas atividades e objetos. E no entanto não há controle do uso do mercúrio no garimpo”. O Instituto Osvaldo Cruz e outros fizeram avaliação sanguínea de várias tribos, entre as quais os Ianomamis, e os índices de mercúrio no sangue estão muito acima do que é tolerado segundo a OMS, citou.
“Nessas áreas onde se realiza a mineração também há o garimpo ilegal e hoje a grande discussão do próprio Ministério Público é que pode ser que a atividade legal esteja sendo laranja do garimpo ilegal, porque as notas fiscais não coincidiam”. Além da evasão, não há relação entre dano e compensações. “Temos a evasão de capitais. E não está sendo efetivamente cobrada a Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (Cfem). Sabemos que a degradação é enorme, então, no mínimo essa contribuição deveria ser usada para tentar mitigar os efeitos danosos”.
Garimpo em terras protegidas
A legislação brasileira veta a lavra garimpeira em terras indígenas. Mas o presidente da República apresentou no início desse ano o Projeto de Lei 191/2020 que permite o garimpo e a atividade empresarial minerária nessas áreas protegidas. “Isso está causando uma repercussão negativa mundial até entre aqueles países que assinaram o Acordo de Paris, porque implica em devastação da floresta, na violação dos direitos humanos, na destruição de um grupo étnico que está intimamente relacionado à proteção da floresta”, acrescentou.
Ela cita o caso da demarcação da reserva Raposa Serra do Sol, no qual o STF interferiu para assegurar a limitação de atividades econômicas relacionadas aos usos e costumes daquele grupo étnico.
Em nota técnica, o MPF exigiu no contexto do projeto 191 que fossem ouvidos os povos indígenas e o Congresso, além de realização de uma consulta prévia livre e informada na Convenção 169 da OIT, sobre a inclusão do componente indígena nos estudos prévios de impacto ambiental.
Os crimes da Vale, em Minas
Patrícia afirmou que os crimes da Vale em Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais, resultaram em avanços na legislação de proteção socioambiental no país, a exemplo da Lei (14.066/20) das Barragens. “Essa nova lei proíbe a barragem a montante e prevê como medida mitigadora a elevação das multas para R$ 1 bilhão, a necessidade dos planos de emergência, etc.”. A advogada destacou, no entanto, que das 391 barragens relacionadas pela Agência Nacional de Mineração, 39 entregaram seus laudos atestando que não asseguram a segurança e solidez desses reservatórios de rejeitos e sete não entregaram os documentos, dentre as quais a de Barão dos Cocais, apontada nesta semana como uma das barragens com risco de colapso no estado.
“Nós estamos vivendo uma crise do poder de polícia no Brasil em termos ambientais e não vai ser diferente na questão minerária”, resumiu a painelista, lembrando que o RS criou em 2017 uma política estadual do carvão. Essa nova política que, entre outros impactos, afeta o clima da região, foi implantada sem a realização de audiências públicas para debater as consequências de uma decisão que transforma o RS em um estado minerador. A maioria dos projetos de mineração no estado foram judicializados por falta de transparência, omissão do componente indígena e outras irregularidades. “Um ponto em comum de todos esses projetos de mineração é justamente a falta de ouvida de comunidades tradicionais ou indígenas. No caso da jazida Guaíba, foi apontada a existência de mais de um aldeamento indígena que não foram apresentados no estudo prévio”, ressaltou.
A mineração acima da vida
“O direito minerário é extremamente agressivo. Na legislação não existe menção a direitos humanos, a meio ambiente, a não ser a recuperação da áreas degradada. A Lei das Barragens inaugura uma visão mais respeitosa das comunidades tradicionais e populações tradicionais por conta desse desastre ambiental, muda o centro de valores da legislação. Mas, de fato, a prática minerária, se formos ler a partir dos casos concretos, ela é de utilidade pública e parece estar blindada, acima de outras atividades, outros valores, inclusive a proteção da água e do clima para as presentes e futuras gerações, e dos modos tradicionais de viver. No caso do RS, acima da proteção do Bioma Pampa, porque esses projetos se concentram em áreas relevantes para a proteção desse ambiente natural”, alertou.
Mina Guaíba, ameaça à saúde e ao ecossistema do estado
Em sua explanação, o geólogo Rualdo Menegat, professor do Instituto de Geociências da Ufrgsdemonstrou graficamente os potenciais danos socioambientais do caso específico da Mina Guaíba.
“Um pretenso projeto que pretendem instalar bem aqui perto de nós, uma hipótese que nós não queremos e que, se concretizada, representa impactos locais, regionais e planetários. O lado escuro do carvão”, classificou.
O professor lembrou que a região de Porto Alegre é o encontro das paisagens do sul da América do Sul e uma síntese das paisagens do RS para onde convergem espécies vegetais e a fauna de todas as do país e do continente. “Há um patrimônio hídrico protegido que deságua no Guaíba”.
Menegat destacou que o carvão é muito agressivo ao meio ambiente e à saúde. “Uma tonelada de carvão gera um custo no sistema de saúde de 9,5 dólares e esse projeto pretende extrair 166 milhões de toneladas. Esse custo não está incluído no custo da mineração”.
Se fossem considerados todos os custos dos impactos que a mina vai produzir, sublinhou, o carvão extraído não seria um bem mineral. “O bem mineral é aquele que ao ser extraído gera riqueza. Esse carvão não vai gerar riqueza, ele vai gerar danos irrecuperáveis e impagáveis e nós sabemos isso porque na literatura e na experiência mineira mundial não existe mineração de carvão limpa. Precisamos dizer não a esse projeto, porque ele traz problemas sérios e coloca a capital gaúcha como refém ao atentar contra a qualidade de vida na região”.