Sinpro/RS: Pandemia abriu caminho para plataformas e mercantilismo
Educadores enfrentam um dilema: por um lado defender o distanciamento como forma mais segura para combater a pandemia, de outro a adesão inevitável aos modelos híbridos de educação com viés comercial
Por Flavio Ilha
A pandemia do novo coronavírus escancarou um dilema em educadores preocupados com a qualidade e segurança do ensino, oferecido principalmente na educação básica: como defender o distanciamento social e, ao mesmo tempo, valorizar práticas que não transformem alunos e pais em reféns da tecnologia?
Por um lado, manter as atividades suspensas e pensar no ensino a distância é o mais seguro neste momento; mas, por outro, abre caminho para a ascensão de propostas vinculadas ao viés financeiro das instituições, já que tecnologia e as plataformas digitais envolvem investimentos quase sempre vultuosos. Um exemplo: a pandemia colocou no centro do debate o grupo Eleva Educação, do bilionário Jorge Paulo Lemann.
O conglomerado, cujo controle acionário está nas mãos do fundo Gera Ventura – que tem Lemann como único dono –, estuda a possibilidade de realizar uma IPO (oferta da ações em bolsa de valores para capitalização) de até R$ 1,5 bilhão como forma de se preparar para o futuro da educação a distância. Criado em 2013, o grupo tem hoje 80 mil alunos em 130 escolas próprias espalhadas em 11 estados e Distrito Federal. Já é a maior holding de ensino básico no país – e segue crescendo.
O pulo do gato de Lemann
Pode parecer pouco diante do vasto universo de crianças e adolescentes em idade escolar no Brasil, mas o pulo do gato de Lemann nem é exatamente esse: além do contingente de escolas próprias, o Eleva tem cerca de 150 mil alunos que estudam em “escolas parceiras” usando o sistema Plataforma de Ensino. O método próprio usa termos como “treinamento”, “benchmark”, “marca” e “meritocracia” para reforçar a tese de um ensino conteudista e com foco em formação de lideranças. E a estratégia empresarial segue a cartilha das universidades mercantilistas: aquisições.
“Lemann está investindo em escolas de alta performance, com educação bilíngue em tempo integral e direcionadas à elite do país, com objetivos políticos, para a formação de lideranças políticas em nível nacional”, sustenta o professor Sérgio Martins, da PUCRJ. Presente nos principais mercados brasileiros, como Rio, São Paulo, Brasília e Minas, o grupo cobra cerca de R$ 5 mil de mensalidade e emprega consultoras – ao invés de pedagogas – para formular suas políticas.
O pedagogo Roberto Leher, reitor da UFRJ, associa a movimentação do grupo Eleva à agenda neoliberal brasileira, especialmente no que se refere às distintas formas de se encarar a inclusão nos meios digitais. Para ele, trata-se de um projeto de educação básica em que a classe dominante define forma e conteúdo do processo formativo das crianças e dos jovens brasileiros.
“Vários dos grandes grupos econômicos do país, bancos, empreiteiras, setores do agronegócio e da mineração, perceberam quanto é estratégico ditar os rumos da educação que surgirá no Brasil pós-pandemia. E fazem isso como uma política de classe, atuam como classe que tem objetivos estruturados, um projeto, concepções claras de formação, de modo a converter o conjunto das crianças e dos jovens em capital humano”, observa Leher.
Controle de mercado e agenda liberal
Nunca é demais lembrar que Lemann, além de dono de escolas, também controla marcas como Burger King, AB Imbev (maior conglomerado de cervejarias do mundo) e Lojas Americanas. Desde o final dos anos 1990 Lemann investe em formação de lideranças políticas por meio da Fundação Estudar. Em 2018, o empresário ajudou a eleger cinco ex-bolsistas para a Câmara dos Deputados.
O gerente de expansões do grupo, Leandro Ballarin, disse por e-mail à reportagem do Extra Classe que o Eleva sempre está atento a “marcas que possam agregar” conteúdo à proposta pedagógica do grupo. “Esse é um mercado bastante pulverizado e que certamente apresenta boas oportunidades. O mercado, atualmente, está passando por um momento de consolidação e certamente iremos continuar com nossa política de aquisições”, sustenta.
Convertendo pessoas em capital
Nesse sentido, a tecnologia joga um papel estratégico na hora de converter pessoas em capital. A diretora da Associação Brasileira de Ensino a Distância (Abed), Lana Paula Crivelaro, considera um erro essa aposta. “EaD não é apenas tecnologia digital, computador de última geração. O ensino a distância pode e deve se dar também com materiais analógicos, ainda mais em nosso cenário de desigualdade, e, principalmente, com engajamento entre escola, estudantes e famílias”, diz a especialista.
Crivelaro defende a manutenção do distanciamento, mas com formas “criativas” para enfrentar a ausência das aulas presenciais. “Muitas professoras e professores, por falta de orientação, estão só transpondo suas aulas expositivas em vídeo. O aluno presencial já não aguenta mais esse modelo, imagina a distância. Hoje eles querem construir seu conhecimento. E os professores precisam se comportar como mediadores, e não como expositores de conhecimento”, afirma.
Também acha que, ao invés de centrar a discussão em ter ou não acesso à internet, em ter ou não equipamentos de última geração, as escolas deveriam aproveitar o momento para reunir conteúdos diversos (“matemática com história, por exemplo”), propondo questões interdisciplinares com métodos interativos por telefone, como programas de mensagens.
Ensino híbrido ganha forças
“Esses aplicativos podem ser usados para o compartilhamento de orientações sobre atividades educativas, vídeos gravados por professores, contatos com pais. Existem muitas opções para que todas as crianças, independentemente da faixa etária e de terem ou não um computador, acessem educação a distância. Mas é preciso criatividade, organização e colaboração neste momento de crise”, argumenta.
É nesse cenário que ganha força o conceito de ensino híbrido, que vem sendo paulatinamente apropriado por propostas de cunho eminentemente tecnológico – como a Eleva Educação. Por esse modelo, a sala de aula passa a ser um complemento das atividades on-line: boa parte dos conteúdos é transmitida por meios eletrônicos, o que significa um desafio extra especialmente na rede pública de ensino.
Tecnologia como diferencial
O coordenador da plataforma Trilhas Pedagógicas EaD, Matheus Borré, aposta na tecnologia como diferencial para a adoção do ensino híbrido. “A pandemia escancarou uma demanda que já era discutida há muito tempo, de readaptar as escolas, na volta do ensino presencial, a um novo cenário, mais próximo da tecnologia e das formas de comunicação dos alunos. O assunto tornou-se urgente, embora de forma geral esses processos de renovação já fossem uma tendência”, defende. O Trilhas é uma plataforma ligada ao método de ensino desenvolvido pela Eleva.
O modelo apresenta quatro métodos de hibridismo que podem ser adotados, entre eles a sala de aula invertida, conceito no qual os alunos se dedicam a determinados temas em casa ou presencialmente, com a ajuda da tecnologia, e as discussões e exercícios são realizados em sala de aula. Há também estratégias de “rotação”: o professor monta estações de trabalho ou laboratórios com diferentes objetivos de aprendizado e os alunos vão passando por cada posto. É possível realizar adaptações para que os estudantes concentrem-se em assuntos que têm menos facilidade.
VANTAGEM COMPETITIVA – Segundo Borré, instituições privadas de ensino que contam com mais autonomia em sua gestão podem usar essa “vantagem competitiva” para testar, verificar e comprovar processos e ações e, em seguida, “compartilhar os resultados com o ensino público”. Ou seja, a estratégia é compatibilizar a rede pública com o formato digital do modelo privado de ensino. “É uma colaboração entre os dois sistemas”, defende.
Perfeição inovadora ou oportunidade de mercado
Mas a anunciada “perfeição inovadora” do ensino híbrido, na visão da doutora em Educação pela PUCSP, Katya Braghini, traz em si a ação de um “truste”, que passa a qualificar o que é boa e má educação. Para a especialista, trata-se de mais um mercado em ascensão que, diante da pandemia e da supressão emergencial do ensino presencial, tem ganhado força rapidamente nos planejamentos pós-pandemia no Brasil.
“Empresas, coligadas ou não, se associam para oferecer soluções essenciais ao funcionamento da educação híbrida e, junto a esse primeiro movimento de cartel, são criadas outras necessidades pedagógicas: ferramentas de aprendizagem, tutoriais, aulas pré-moldadas, aplicativos de smartphones, entre outros. A compatibilidade entre produtos se torna uma necessidade pedagógica e pode ser vista em vários exemplos atuais que se amparam nos discursos dessa nova educação, seja apresentada na forma escolarizada ou não”, critica.
A especialista identifica uma preparação de terreno para o que chama de “discursos salvadores” da educação. “São receitas prontas de sucesso, no melhor do estilo fast-food. Nesse caso, a importância do professor atuante e reflexivo é cada vez mais diminuída, assim como a importância do planejamento de aula. Automatiza-se o processo de ensino e atribui-se o papel de aprender única e exclusivamente ao aluno já que todas as ferramentas foram disponibilizadas a ele. A impressão que fica é que basta a escola se equipar e todos seguirem o método escolhido para que a educação avance”, completa.