Ensino domiciliar é mais um instrumento de privatização da educação
A escola tem importância na convivência social e democrática e na proteção da criança e do adolescente. Despojar o estudante disso é destituí-lo do próprio direito à educação
Por Madalena Guasco Peixoto*
Há quase duas semana começou a tramitar no Congresso Nacional o Projeto de Lei 2401/2019, que altera o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, para instituir o ensino domiciliar no âmbito da educação básica.
A intenção inicial do Ministério da Educação era editar uma Medida Provisória até o dia 15 de fevereiro, mas, adiado, o PL, assinado por Jair Bolsonaro no último dia 11, acabou se tornando um dos marcos dos cem dias do governo empossado.
Aliás, durante esse tempo, a única competência que ficou explícita foi a gana em servir aos interesses do mercado da educação. Tanto é assim que, no meio das tantas trapalhadas do ex-ministro Ricardo Vélez Rodríguez à frente da pasta, se há algo em que ele mostrou foco foi em acelerar o credenciamento de novas universidades em 70% nos primeiros meses deste ano.
A educação domiciliar traz consigo diversos retrocessos e perigos: fere o direito à socialização, essencial para o desenvolvimento socioafetivo de crianças e adolescentes; deixa crianças que sofrem abuso de qualquer natureza dentro de suas casas à mercê de seus abusadores; compromete o desenvolvimento intelectual dos estudantes, uma vez que esse é associado ao desenvolvimento social; representa mais uma medida de desprofissionalização do professor, substituindo um profissional com formação universitária e pedagógica obrigatória de no mínimo quatro anos por qualquer pessoa e/ou manual de aprendizagem.
A assinatura do projeto de lei foi noticiada pela Carta Capital, no dia 12 de abril, na reportagem “Na educação domiciliar, os familiares devem prever plano pedagógico”. Na matéria, entre outras questões, a repórter Ana Luiza Basílio, editora da Carta Educação, aponta como o homeschooling vai ao encontro de uma das principais agendas do governo Bolsonaro, endossada pelo ministro da Educação, Abraham Weintraub: atender à demanda do movimento Escola Sem Partido.
Em outras palavras, uma das razões pelas quais os pais optariam por tirar suas crianças e adolescentes da escola seria pretensamente poupá-las da suposta “doutrinação ideológica” e do imaginário “marxismo cultural” — para usar o termo preferido do guru do MEC, Olavo de Carvalho — que pairariam fantasmagoricamente sobre as salas de aula.
Essa é uma análise pertinente, mas a ela é possível — e preciso — acrescentar outra, à qual a trajetória de Weintraub e sua ligação com o mercado financeiro também servem bem: os meandros das tentativas de favorecimento dos estabelecimentos privados de ensino, com fins lucrativos, e as intentadas e sucessivas medidas de mercantilização e financeirização da educação.
Para alguns pode quase passar despercebido no meio do texto do PL, mas seu Artigo 11 estabelece ser “facultado às instituições públicas e privadas, escolhidas pelos pais ou pelos responsáveis legais, oferecer ao estudante em educação domiciliar avaliações formativas ao longo do ano letivo.” Tais avaliações é que vão preparar o estudante educado em casa para as avaliações anuais do MEC, bem como para as provas de recuperação, caso o resultado seja insatisfatório.
Não é à toa, porém, que o projeto preveja essa espécie de “provão”, bem como a participação das instituições privadas nesse processo. Um das maiores envolvidos no processo de privatização da educação básica pública no Brasil, o grupo inglês Pearson, produtor de livros e materiais didáticos e atuante em redes de conhecimento e interfaces, domina o sistema de avaliação do ensino básico.
Trata-se de um conglomerado poderoso, dono da Economist, da Financial Times, e que detém o controle sobre a avaliação educacional no mundo. Atualmente, no Brasil, como o próprio site do grupo informa, a plataforma Name (Núcleo de Apoio a Municípios e Estados), iniciada em 1999, estende-se por 140 municípios brasileiros, a fim de, nos argumentos da companhia, contribuir “para que o Brasil atinja suas metas na educação com o compromisso de levar aos estudantes das escolas parceiras os mais modernos recursos pedagógicos, tecnológicos e administrativos, buscando sempre oferecer educação pública de qualidade e resultados de aprendizado com eficácia”.
Na prática, o que faz é se apropriar de verbas públicas, que deveriam ser investidas nas escolas públicas e na melhoria de sua qualidade, num dos mais perversos mecanismos de privatização da educação. Com o homeschooling, empresas de capital aberto como essa passam a ter mais uma porta de entrada aberta, recebendo verbas para a realização das provas e tendo a seu dispor um novo mercado de “ajuda” no preparo para o exame anual e/ou para a recuperação.
O percurso de encarar a educação como um dever do Estado e da família foi uma grande vitória da Constituição de 1988, mais uma vez atacada agora com a desresponsabilização do primeiro. A escola tem importância fundamental na convivência social e democrática e na proteção da criança e do adolescente. Despojar o estudante disso, com vistas a atender escusos interesses privatistas, é destituí-lo do próprio direito à educação.
*Madalena Guasco Peixoto é coordenadora da Secretaria-Geral da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino — Contee e diretora da Faculdade de Educação da PUC-SP