Brasil: 135 anos da “Abolição” inacabada ou incompleta
Data foi secundada pelo 20 de novembro, quando se comemora o Dia da Consciência Negra. Mas é importante não esquecer a data seminal, pois dessa deriva a que comemora a negritude brasileira, que exalta o orgulho negro nacional
Neste último sábado (13), o Brasil completou 135 da assinatura da chamada Lei Áurea, que aboliu a escravidão no Brasil (1888). O fim do escravismo brasileiro, o mais longevo e cruel do extremo ocidente, durou 388 anos. O País possui, em relação aos negros, imensa e impagável dívida social.
O Brasil foi o mais escravista do hemisfério ocidental. E também foi o último País do extremo ocidente a abolir a escravidão.
Mas a abolição está inacabada ou incompleta, porque os negros foram tirados das senzalas num dia e no outro estavam nas ruas “livres”, mas sem eira, nem beira. Com a abolição vieram ou foram aplicadas outras 2 leis: a da vadiagem e da propriedade. Aos negros foi negada a possibilidade de possuir terras, individual ou coletivamente (Lei de Terras).
O conceito de vadiagem foi empregado pela primeira vez em legislação brasileira no Código Criminal de 1830, indicando o indivíduo que não possuísse ocupação “honesta” e “útil” ou renda de que pudesse subsistir e criminalizava aspectos da mendicância. Advinha quem era penalizado com esta lei.
Daí, a origem de grande parte das favelas brasileiras. Para não serem enquadrados como vadios e sem possibilidade de ter propriedade, os negros subiram os morros e foram para as periferias das cidades para se protegerem das leis opressivas e punitivas dessa transição entre o fim da escravidão e o início do trabalho assalariado no Brasil.
O 13 de maio, nos últimos tempos, por razões óbvias, foi secundado pelo 20 de novembro, quando se comemora o Dia da Consciência Negra. Mas é importante não esquecer a data seminal, pois dessa deriva a que se comemora a negritude brasileira, que exalta o orgulho negro nacional.
Antecedências
Além das pressões internacionais, pelo menos outras 6 leis antecederam a chamada Lei Áurea, de modo a enfraquecer a escravidão no Brasil e/ou estabelecer proteções aos senhores de escravos:
Lei Feijó (1831)1, Lei Eusébio de Queirós (1850)2, Lei Nabuco de Araújo (1854)3, Lei de Terras (1850)4, Lei do Ventre Livre (1871)5 e Lei dos Sexagenários (1885)6.
Presença escrava negra
No continente americano, o Brasil foi o país que importou mais escravos africanos. Entre os séculos 16 e meados do 19, vieram para cá cerca de 4,5 milhões de homens, mulheres e crianças, o equivalente a mais de 1/3 de todo comércio negreiro no mundo.
Essa contabilidade não é exatamente para ser comemorada.
A Lei Áurea, assinada em 13 de maio de 1888, considerou livres aproximadamente 700 mil escravos. Atualmente, negros são em torno, segundo o último censo do IBGE, 54% da população do País e as desigualdades continuam.
Razões econômicas
Celebrada pela historiografia oficial, a princesa Isabel (1846-1921) não assinou a chamada Lei Áurea por benevolência ou consciência social. Havia intenso movimento abolicionista. A lei que aboliu a escravidão foi assinada sob intensa pressão social, política e econômica.
Prevaleceu, pode-se dizer assim, os interesses do emergente capitalismo brasileiro, que para se desenvolver precisava de outro tipo de mão de obra, a assalariada. A escrava já era obsoleta.
O capitalismo tem como marco referencial a Revolução Francesa (1789-1799), quando os “sans-cullotes” tomaram de “assalto” o poder imperial. A revolução durou pouco tempo, mas propiciou relevantes mudanças na França e no mundo.
Outro referencial para o nascente capitalismo nacional foi a Revolução Industrial na Inglaterra. Período de grande desenvolvimento tecnológico que teve início na Inglaterra, a partir da segunda metade do século 18 e que se espalhou pelo mundo, causando grandes transformações. Garantiu o surgimento da indústria e consolidou o processo de formação do capitalismo.
Negros na economia e na sociedade hoje
Pesquisa do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), de novembro de 2022, mostra que persiste a desigualdade entre pessoas negras e não negras no mercado de trabalho. O levantamento destaca ainda a desigualdade de gênero nas relações de empregabilidade.
De acordo com a pesquisa, no segundo trimestre de 2022, as mulheres negras vivenciavam taxa de desocupação de 13,9%. Para os homens negros, a taxa era de 8,7%; para as não negras, 8,9%; e para os não negros, a taxa foi a menor, 6,1%.
A desigualdade se repete na formalização dos contratos de trabalho. Segundo o levantamento, no segundo trimestre de 2022, mais de 30% do total dos ocupados se inseriram como assalariados com carteira. No entanto, entre o total de negras ocupadas, 31,5% tinham carteira assinada. Entre os homens negros ocupados, a proporção de trabalhadores formais era de 37,1%. O percentual é de 36,8% para mulheres não negras e de 39,6% para homens não negros.
Entre todos os segmentos populacionais, a proporção de negros em subocupação no segundo trimestre de 2022 foi maior também: 10% entre as negras ocupadas e 6,5%, entre os negros ocupados. Na mesma situação estavam 6,7% das mulheres não negras e 4,0% dos homens não negros.
São consideradas subocupadas as pessoas que gostariam de ter jornada maior e têm disponibilidade para trabalhar mais, se houvesse oportunidade.
Salários
A pesquisa mostra que há diferença também nos salários. Os não negros recebem, em média, mais do que os negros. No segundo trimestre de 2022, enquanto o homem não negro recebeu, em média, R$ 3.708 e a mulher não negra, R$ 2.774, a trabalhadora negra ganhou, em média, R$ 1.715, e o negro, R$ 2.142.
Os números indicam que a mulher negra recebeu, no segundo trimestre, 46,3% do rendimento recebido pelo homem não negro. Para o homem negro, a proporção foi de 58,8%.
“A diferença entre os rendimentos de negros e não negros é constante nos dados do mercado de trabalho e precisa ser modificada a partir de políticas públicas e sensibilização da sociedade. Não importa somente elevar a escolaridade da população negra, mas sensibilizar a sociedade em relação à discriminação existente no mercado de trabalho, que penaliza parcela expressiva de brasileiros”, destaca o texto da pesquisa.
Conheça os dados da pesquisa do Dieese – A persistente desigualdade entre negros e não negros no mercado de trabalho – Boletim Especial, 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, 18/11/22.
Marcos Verlaine
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1 Determinava que, a partir da data da sanção, toda pessoa escravizada que chegasse ao Brasil estava automaticamente livre, exceto em 2 situações: quando o escravizado trabalhava em embarcações de países onde a escravidão ainda era permitida e quando o escravizado fugisse de território ou embarcação estrangeira buscando a proteção da Lei Feijó no Brasil.
2 Tinha por objetivo extinguir o tráfico de escravos para o Brasil e fazer com que os escravizados trazidos para cá entre os anos de 1831 e 1845 continuassem sendo explorados legalmente.
3 Complementar a Eusébio de Queirós, a lei visava aumentar a repressão ao contrabando de escravos dentro do Brasil.
4 Visava destinar a propriedade das terras apenas para os grandes senhores de terra, que lucravam com a escravidão, em detrimento dos negros e dos imigrantes que chegavam ao Brasil. Além disso, a Lei 601 possibilitou os latifúndios existentes até os dias de hoje, passados de pai para filho.
5 Medida estabeleceu que os filhos de mulheres escravizadas estariam livres a partir da promulgação, mas não de forma tão simples. A liberdade só poderia ser concedida à criança quando ela completasse 8 anos de idade, e em até 30 dias após oitavo aniversário, o dono da mãe poderia escolher receber indenização do governo por libertar a criança ou escravizá-la até que completasse 21 anos.
6 Entrou em vigor apenas 3 anos antes da abolição. E estabeleceu a libertação dos escravos com mais de 60 anos.