Liberdade não se assina, se conquista: Luiz Gama e a verdadeira abolição

A abolição da escravidão, oficialmente registrada em 13 de maio de 1888, é tratada nos livros didáticos como um gesto generoso da monarquia brasileira, encarnado na figura da Princesa Isabel. Essa narrativa, no entanto, não resiste ao exame crítico da história — e precisa ser revista, especialmente dentro dos espaços educativos.
Mais do que uma assinatura em papel, a abolição foi o resultado de uma longa e corajosa luta coletiva, liderada pelos próprios negros e negras escravizados, apoiados por aliados conscientes. Entre esses nomes, um se destaca com brilho próprio: Luiz Gama, um dos maiores heróis da história brasileira, cuja importância histórica e legado político ainda não recebem o devido reconhecimento.
Para a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee), a data representa memória, denúncia e valorização dos verdadeiros protagonistas da abolição: o povo negro e seus líderes, como Luiz Gama.
Luiz Gama: símbolo da liberdade conquistada, não concedida
Nascido em Salvador, em 1830, Luiz Gama foi vendido ilegalmente como escravizado aos 10 anos de idade. Autodidata, tornou-se um brilhante advogado, jornalista e poeta. Com base em argumentos jurídicos e profunda compreensão das leis da época, Gama libertou, sozinho, mais de 500 pessoas escravizadas — um feito histórico que contrasta diretamente com a imagem romantizada da “libertação” pela realeza.
Seu ativismo não se limitava aos tribunais. Gama foi uma das vozes mais potentes do movimento abolicionista, denunciando o sistema escravocrata como incompatível com os princípios da justiça e da dignidade humana. Foi também um defensor intransigente da democracia, da república e da educação como instrumentos de emancipação popular.
Na opinião da Contee, o reconhecimento a Luiz Gama não é apenas um ato de reparação histórica — é uma reafirmação do papel transformador da educação e da luta coletiva por justiça social. “Luiz Gama representa o educador que liberta, o intelectual combativo que não se dobra ao poder e o trabalhador do saber que transforma estruturas”, afirma a Confederação.
Do mito da benevolência à resistência negra
A narrativa tradicional do 13 de Maio perpetua o mito da abolição como presente da monarquia e apaga o papel das lutas negras. Fugas, revoltas, quilombos, greves e a ação organizada de intelectuais como Gama foram decisivos para o colapso do sistema escravocrata. O foco na Princesa Isabel, uma figura branca da elite imperial, serve para silenciar esses protagonistas e desviar o olhar da real natureza da liberdade conquistada.
Por isso, o governo federal, em um gesto simbólico e político, revogou a “Ordem do Mérito Princesa Isabel” e criou o Prêmio Luiz Gama de Direitos Humanos, reposicionando o reconhecimento oficial da luta antiescravagista.
Educação como trincheira da memória e da transformação
O 13 de Maio precisa ser ressignificado na escola, nas universidades e nos espaços de formação. A Contee defende que a data seja incorporada ao calendário escolar não como feriado comemorativo, mas como dia de memória, denúncia e mobilização contra o racismo estrutural.
É premente garantir a aplicação da Lei 10.639/03, que estabelece o ensino da história e cultura afro-brasileira, e investir na formação antirracista de educadores(as). É nas salas de aula que a figura de Luiz Gama deve ser ensinada com a dignidade que lhe cabe — não apenas como personagem do passado, mas como referência ética e política para o presente.
Os indicadores sociais atuais não deixam dúvidas: a abolição de 1888 não promoveu igualdade. Segundo dados do IBGE, a população negra ainda é maioria entre os desempregados, nos trabalhos precarizados, nas periferias e entre as vítimas de violência. A falsa liberdade de 1888 perpetuou a exclusão que o sistema escravocrata institucionalizou.
A luta pela verdadeira abolição continua
É preciso afirmar, com todas as letras: a abolição formal da escravidão não significou liberdade plena, nem cidadania real para o povo negro. O Brasil libertou corpos, mas manteve estruturas. O racismo, a desigualdade, o encarceramento em massa, a marginalização e o genocídio da juventude negra são expressões contemporâneas de um sistema que segue operando sob novas formas.
A escravidão moderna assume outras faces — o trabalho informal, a violência policial, o acesso desigual à saúde, à moradia, à justiça e à educação. A abolição de 1888 foi apenas o início de uma caminhada, e não o seu ponto final. A verdadeira abolição será aquela que transformar as bases sociais, econômicas e políticas deste país, erradicando o racismo estrutural e promovendo justiça reparatória.
Por isso, o 13 de Maio não deve ser tratado como comemoração, mas como um marco de resistência contínua. A luta de Luiz Gama permanece viva nas vozes de educadores(as), estudantes, trabalhadores(as), movimentos negros e quilombolas que recusam o apagamento histórico e rejeitam a desigualdade como herança imutável. Lembrar Luiz Gama não é apenas um ato de memória — é um compromisso com a liberdade real, conquistada com coragem, organização e consciência crítica.
Por Romênia Mariani