A luta por direitos humanos e transformação social: A visão de Frei Betto
“Os gastos investidos na indústria bélica, nas guerras, são muito maiores do que os recursos destinados a combater a fome, a miséria, a desigualdade”, disse o frade dominicano
Nesta terça (10), em que se celebrou os 76 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), aconteceu edição especial do Programa Contee Conta com a presença do grande ativista e defensor dos direitos humanos, o Frei Betto, que também é um dos principais expoentes da teologia da libertação no Brasil e já escreveu 74 livros. Com o livro Batismo de Sangue, o frade dominicano ganhou o prêmio Jabuti em 1982.
A DUDH, proclamada em 1948, foi um dos primeiros documentos a reconhecer direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais como universais. Sua influência na construção de constituições e sistemas jurídicos de diversos países é inegável, e ela continua sendo uma referência para a promoção dos direitos humanos no mundo. No Brasil, a DUDH foi incorporada à Constituição de 1988 e continua sendo um pilar fundamental das políticas públicas.
Frei Betto, ao longo do bate-papo, fez um apanhado do cenário sociopolítico à luz desse importante documento, que apesar de ter mais de 7 décadas, tem sua aplicabilidade ainda muito tímida. O Frei começou dizendo que “falar em direitos humanos na América Latina ainda é luxo, porque boa parte da população do nosso continente não tem assegurado os seus direitos básicos: alimentação, moradia e educação”.
Afirmou que a Declaração dos Direitos Humanos ainda está longe de ser seguida, adotada e abraçada no mundo. “Os gastos investidos na indústria bélica, nas guerras, são muito maiores do que os recursos destinados a combater a fome, a miséria, a desigualdade”, sinalizou o frade.
Racismo, Escravidão e Desigualdade no Brasil
No contexto brasileiro, Frei Betto afirmou que o país ainda está distante de ser um exemplo na defesa dos direitos humanos, apontando as profundas raízes históricas que alimentam as desigualdades sociais, como o racismo, a xenofobia, a misoginia e a homofobia. O frade dominicano destacou a herança da escravidão, que, mesmo após a abolição formal, continua a se refletir nas estruturas sociais e econômicas do Brasil.
“Somos o último país a declarar a abolição da escravatura, embora ainda exista trabalho escravo. Com frequência, o Ministério do Trabalho flagra trabalho escravo em fazendas do agronegócio, até em vinícolas do Rio Grande do Sul.”
Essas práticas, que foram comuns ao longo de 350 anos de escravidão, continuam a afetar as populações negras, indígenas e periféricas do Brasil. Frei Betto defendeu que, para que o país avance na promoção dos direitos humanos, é preciso uma reforma profunda nas estruturas sociais e políticas. Ele alertou que a sociedade precisa se organizar e pressionar o Estado para garantir que leis que punam as violações de direitos humanos sejam efetivas e aplicadas.
Ditadura brasileira
Frei Betto para reforçar o histórico de descaso com os direitos humanos no Brasil, lembrou do período da ditadura, em que houve torturas, desaparecimentos, mortes, tudo em nome do Estado e não houve apuração dos crimes cometidos, bem como de acontecimentos mais recentes.
Ao contrário do que fizeram o Chile, a Argentina e o Uruguai, que levaram aos tribunais os militares que patrocinaram e cometeram assassinatos durante o período ditatorial, inclusive na Argentina, alguns generais foram condenados à prisão perpétua.
“Aqui ainda a impunidade é forte. O Brasil foi leniente, passou uma esponja por cima, criou um recurso esdrúxulo, que é a anistia recíproca. Não se pode anistiar quem sequer foi investigado, culpado, julgado, denunciado. Mas houve isso e o resultado é que ficou esse forte resquício ditatorial encrustado em nossas forças armadas, que veio a dar no fenômeno Bolsonaro, no golpismo de 8 de janeiro de 2023 e agora nessa trama da tentativa de assassinato do presidente Lula, do vice-presidente Alckmin e do juiz Alexandre de Moraes”, salientou.
Crítica ao Capital
O frade criticou o capital declarando que o sistema capitalista não age por princípios, ele age por interesses. E viola flagrantemente os direitos humanos a todo momento. “Eu fico irritado quando vejo, inclusive, grandes empresas fazerem propaganda de que defendem o verde, defendem o equilíbrio ambiental, e de repente é flagrante também a maneira como elas violam esses direitos fundamentais, como o caso de Mariana e Brumadinho, cujas vítimas até hoje estão esperando as justas reparações, e não apenas paliativos. Eu fico indignado quando tribunais absorve essas empresas dos crimes ambientais que cometem, sacrificando inúmeras vidas humanas”.
Na visão de Frei Betto, enquanto o planeta estiver hegemonizado pelo capitalismo, nós teremos o capital acima dos direitos humanos. Em defesa do capital, os direitos humanos serão sempre violados. E para inverter essa equação, de maneira que tenhamos uma sociedade em que os direitos humanos estejam acima do capital, isso só será possível se conseguirmos criar uma sociedade pós-capitalista, como, aliás, tem reivindicado com muita ênfase o Papa Francisco.
“Nós temos que criar uma sociedade pós-capitalista. Esse deve ser o nosso empenho. reforçar as nossas organizações populares, os nossos sindicatos, a nossa mídia, enfim, todas as ferramentas de luta, principalmente as ferramentas digitais, na defesa dos direitos humanos, na crítica ao sistema capitalista, para que as pessoas tenham educação política, porque todos sofremos uma grande deseducação política por conta dessa hegemonia capitalista, dessa naturalização da desigualdade”, explicou.
A Luta pelo Meio Ambiente: Direitos Humanos e a Natureza
Outro ponto central na opinião de Frei Betto é a relação entre os direitos humanos e a defesa do meio ambiente. Ele propõe uma reflexão sobre os direitos da natureza, sugerindo que a preservação do meio ambiente deve ser reconhecida como parte integrante dos direitos humanos, pois a degradação ambiental afeta diretamente a vida de milhares de pessoas.
“Não podemos falar em direitos humanos sem incluir os direitos da natureza. O que fazemos com o meio ambiente reflete diretamente na qualidade de vida das pessoas, especialmente das mais pobres. A destruição da natureza é uma forma de violação dos direitos fundamentais”, afirma Frei Betto.
Ele defende a criação de uma Declaração Universal dos Direitos da Natureza, para que a proteção ambiental seja reconhecida como um direito fundamental. O frade vê a sustentabilidade não apenas como uma questão ambiental, mas como uma questão ética, pois o cuidado com a natureza está intrinsicamente ligado à justiça social e ao respeito pelos direitos humanos.
Educação Política e Mobilização Popular
Na sequência, Frei Betto destacou a importância da educação política como ferramenta para transformar a sociedade. Para ele, a verdadeira mudança social só será possível quando as pessoas forem capacitadas a compreender os mecanismos de opressão e as injustiças sociais que dominam o mundo. A educação deve ser um instrumento de conscientização, para que as novas gerações possam lutar ativamente pelos seus direitos e pela construção de uma sociedade mais justa.
“O grande problema do nosso país é que não temos uma educação que forme cidadãos críticos, que saibam como e por que lutam.”
Ele ressaltou também a importância da mobilização popular constante para garantir que os direitos humanos sejam respeitados e que a transformação social se concretize. Para ele, a luta pelos direitos humanos exige ação coletiva, organização e um compromisso com a justiça social.
“Temos que, cada vez mais, em nossos movimentos, sindicatos, igrejas, partidos, pressionar para que a sociedade tenha maior consciência dos direitos humanos, que as escolas adotem isso como uma disciplina obrigatória, se nós não formarmos as pessoas nessa consciência, os direitos humanos continuarão sendo aviltados, continuarão sendo desrespeitados e cada vez mais nós vamos ter uma barbárie e não uma humanidade como é o nosso sonho”, salientou.
Esperança e coletividade
Frei Betto encerrou sua fala com uma mensagem de esperança e engajamento. “Guardemos o pessimismo para dias melhores”, enfatizou. Para o frade, a defesa dos direitos humanos é uma responsabilidade coletiva que deve ser exercida em todos os espaços da sociedade, com coragem, determinação e entusiasmo. A mudança só será possível quando a coletividade se mobilizar. “A mudança começa com cada um de nós, mas é feita na coletividade. Se não formos capazes de lutar juntos, seremos incapazes de conquistar a dignidade e os direitos humanos para todos.”
É preciso mais do que uma defesa teórica dos direitos humanos; é necessário um compromisso real com a transformação social, que não se limite a promessas vazias, mas que busque erradicar as causas profundas da desigualdade.
Assista na íntegra:
Por Romênia Mariani