Contee solicita ao STF limites à terceirização e realização de audiência pública

Segundo uma velha metáfora, quando amanhece, vão-se os fantasmas, mas, também, as ilusões.

Infelizmente, no Brasil, não raras vezes, quando amanhece, vão-se apenas as ilusões, ficando todos os fantasmas, aos quais se juntam outros, mais tenebrosos.

Isto acaba de acontecer com o monstro da terceirização; ao fantasmagórico Projeto de Lei (PL) N. 4.330/2004, que estabelece a política de terra arrasada em termos de direitos fundamentais sociais, vem-se juntar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que reconheceu repercussão geral no recurso especial (RE)  N. 713.2011, que visa à declaração de inconstitucionalidade da Súmula N. 331, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), exatamente, porque proíbe a terceirização nas atividades fins.

O despacho do ministro Luiz Fux, acolhendo o RE, é desalentador, pois que deixa claro que a sua posição é a de admitir a terceirização nas atividades-fins, fazendo-o ao argumento de que não há lei que a proíba, e, por isso, a Súmula N. 331, do TST, viola o Art. 5º, inciso II, da Constituição Federal (CF), que determina: “ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer, senão em virtude de lei”.

Caso esta tese venha a prevalecer o PL N. 4.330/2004 perderá o seu objeto, porquanto tudo será liberado no tocante à terceirização e, por conseguinte, os direitos fundamentais sociais não serão mais que boas lembranças do passado; a não ser que o STF caminhe em outra direção, qual seja a de coibir a precarização destes direitos.

A Contee, atenta à dimensão desta matéria, que pode significar o triste fim dos mencionados direitos, encaminhou ao relator do citado RE, ministro Luiz Fux, proposta de realização de audiência pública, para que matéria posa ser debatida, de forma ampla, com a análise de todas as consequências que dela advirão, caso a contestada Súmula do TST seja declarada em confronto com a CF.

Além disto, a Contee articula-se com o Ministério Público de Minas Gerais, autor da ação civil pública que combate a terceirização das atividades-fins, que deu origem ao realçado RE, o seu ingresso no processo, como amicus curiae, para defender a sua tese.

As primeiras discussões sobre o destacado ingresso deram-se no último dia 6, no Congresso Sindical promovido pela OAB.

Como a matéria em debate é de real e pleno interesse de todos os trabalhadores, a Contee concita às demais entidades a, igualmente, ingressarem como amicus curiae em tal processo; além, é claro, de reforçar a sua proposta de realização de audiência pública.

Confira a íntegra do ofício enviado ao ministro Luiz Fux:

 Brasília, 27 de maio de 2014.

Ofício n.° 117/2014/CONTEE

Ao Excelentíssimo Senhor

LUIZ FUX

Ministro do STF

Praça dos Três Poderes Anexo II Bloco A Sala 301

Assunto: Carta ao Excelentíssimo Senhor Ministro do Supremo Tribunal Federal, Relator do ARE 713/2011.

Senhor Ministro,

Com os nossos respeitosos cumprimentos, como Coordenadora Geral da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee), dirigimo-nos a V. Exª, para, em nome dos mais de um milhão de profissionais da educação escolar, empregados em escolas particulares, em âmbito nacional, representados pelas entidades sindicais  filiadas à nossa Entidade, para pedir-lhe licença para apresentar-lhe algumas ponderações, que reputamos essenciais e inadiáveis, acerca da terceirização, que é objeto da lide sobre a qual versam os epigrafados autos; fazendo-o com o único e bom propósito de contribuir para o imprescindível debate sobre este tema; ei-las:

1   A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, indiscutivelmente, o maior marco da história, em seu “Artigo XXIII”, assevera:

“1.Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.         2. Toda pessoa, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho.         3. Toda pessoa que trabalhe tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social.            4. Toda pessoa tem direito a organizar sindicatos e neles ingressar para proteção de seus interesses”.

 

2        Acorde com os princípios e garantias da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, desde a sua aprovação em 1948; e com os que são assegurados pelos Tratados Internacionais que a ela se sucederam, como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos- Pacto de Sam José da Costa Rica, de 1969; a Constituição da República Federativa do Brasil (CR)- sabiamente chamada de Constituição cidadã, pelo saudoso Presidente de Assembleia Nacional Constituinte, Deputado Federal Ulisses Guimaraes-, preconiza que a dignidade da pessoa humana (Art. 1º, inciso III), os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (Art. 1º, inciso IV, e 170, caput), são fundamentos sobre os quais se assenta e República; e, no 193, que a Ordem Social tem por base  o primado  do trabalho.

3          Pois bem, Senhor Ministro! Passados mais de setenta e cinco anos da promulgação do inestimável documento, consubstanciado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, muitos de seus objetivos ainda não se realizaram, como se as nações que o assinaram tivessem sido acometidas de duas doenças gravíssimas e progressivas: surdez voluntária e amnésia progressiva.

3.1       Esta assertiva pode ser confirmada por muitos modos. Para tanto, basta que se traga à lume o Relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), divulgado no dia 23 de abril último, sobre as doenças e os acidentes de trabalho, no mundo.

3.2      Segundo este estarrecedor Relatório, a cada 15 (quinze) segundos, em muitos cantos do mundo, morre um trabalhador de acidente ou de doença do trabalho, o que é responsável pela estrondosa soma de mais de 5.700 (cinco mil e setecentas) mortes por dia, e de 2.340.000 (dois milhões e trezentos e quarenta mil), por ano.

3.3         Somam-se a estas catástrofes, outras de igual dimensão, quais sejam: 160 (cento e sessenta milhões) de pessoas sofrem de doenças não letais relacionadas com o trabalho; 317 (trezentos e dezessete milhões) de acidentes laborais não mortais, que ocorrem a cada ano.

3.4      No Brasil, consoante os dados da Previdência Social, no ano de 2012, foram registradas mais de 705.000 (setecentos e cinco mil) acidentes, com mais de 2.740 (dois mil, setecentos e quarenta) mortes e quase 15.000 (quinze mil) incapacitações permanentes; sendo que oito, em cada dez acidentes são de trabalhadores terceirizados.

3.5       Com base nestes dados, da OIT, pode-se afirmar que em 29,9 anos, os acidentes e as doenças do trabalho, letais, de forma silenciosa e sem a frenética produção bélica, que mobilizou os países envolvidos na segunda guerra mundial, ceifam a mesma quantidade de vidas que ela ceifou.

3.5.1    E o que é pior: isto passa ao largo de todas as autoridades, que agem com total desprezo, e negação plena dos compromissos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, como se as vidas humanas fossem desprovidas de qualquer valor.

3.6       A atual realidade social, em todos os quadrantes do Planeta Terra, representa completa inversão da sábia e imortal lição, legada à humanidade pelo filósofo grego Protágoras, no século V, antes da era cristã, segundo a qual, “O ser humano é a medida de todas as coisas”.

3.7       No marco atual do capitalismo, o dinheiro é a medida de todas as coisas, e o ser humano não possui nenhum valor.

3.8   Estes teratológicos números decorrem da incontrolável sanha, daqui e de alhures, de progressiva supressão de direitos, que tem a terceirização uma de suas molas mestras.

3.9        Tal flagelo consiste, exatamente, no tema em debate no Processo da epigrafe; flagelo que se multiplica no Brasil em proporções geométricas, e com a mesma finalidade que é a sua marca em outros países.

3.10    Frise-se que o egrégio Tribunal Superior do Trabalho (TST), com o propósito de, ao menos, por cobro à política de terra arrasada, decorrente da terceirização, baixou a Súmula N. 331, que não pode, em hipótese alguma, ser acusada de conter algo indevido, ou de proteção excessiva, como a acusa a recorrente, no citado Processo; longe disto, a rigor, o único aspecto positivo desta Súmula é o da coibição de terceirização na atividade fim; e nada mais.

4    Para se ter ideia mais assente do que a terceirização significa para os trabalhadores brasileiros, basta que se tome a Nota Técnica N. 112/2012, do acreditado Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Sócio Econômicos (Dieese)- que em 2015 completará sessenta anos-; nela, encontra-se anotado:

“Diante da importância do tema para as relações de trabalho no Brasil, o Tribunal Superior do Trabalho – TST organizou uma audiência pública envolvendo representantes de trabalhadores, empresários, universidades, organizações sociais e do próprio TST. Milhares de trabalhadores que atuam em atividades produtivas terceirizadas são afetados pela forma como a terceirização se expressa no Brasil. De maneira geral, são trabalhadores submetidos a formas precárias de contratação, quando comparados com as condições de trabalho dos que atuam em empresas contratantes de trabalhadores terceirizados, a exemplo dos setores de comércio e serviços onde os trabalhadores terceirizados representam 80% do quadro de contratados. A ação das organizações que representam os trabalhadores tem sido na busca da regulação para esse tipo de atividade.

(…) A recente ação do TST aponta para a urgência desse acordo, e os trabalhadores, que são afetados pela maneira espúria como a terceirização se efetivou no país, aguardam ansiosamente os desdobramentos dessa decisão.

Dessa forma, o tema permanece como um desafio para o movimento sindical.

Na exposição feita pelo DIEESE na audiência promovida pelo TST, ressaltou-se que o Brasil só poderá ser considerado desenvolvido quando acabar com a desigualdade, inclusive a provocada pela terceirização, que criou uma espécie de trabalhador de segunda categoria, com menos direitos, menos saúde e segurança”.

4.1       O Desembargador do TRT da 2ª Região, São Paulo, Sérgio Pinto Martins, defensor da terceirização, ressalta, em seu livro A Terceirização e o Direito do Trabalho, página 34:

“Como desvantagem para o trabalhador, pode-se indicar a perda do emprego, em que tinha remuneração certa por mês, passando a tê-la incerta, além da perda dos benefícios sociais decorrentes do contrato de trabalho e das normas coletivas da categoria. O trabalhador deixa de ter uma tutela trabalhista de modo a protegê-lo. O ambiente de trabalho em que passa a trabalhar o obreiro na terceirizada pode ser degradado, mormente quando as subcontratadas não têm a mesma estrutura das empresas tomadoras do serviço.”

5          A terceirização desbragada ganha asas e fulgor, a tal ponto de o Projeto de Lei (PL) N. 4.330/2004, de autoria do Deputado Federal Sandro Mabel, em seu estágio atual, trazer a real perspectiva de por fim a todos os direitos fundamentais sociais, insertos no Art. 7º, da CR, em conformidade com as autorizadas vozes de 19 (dezenove) Ministros do TST, de todos os 24 (vinte e quatro) Presidentes dos Tribunais Regionais do Trabalho, de mais 5.000 (cinco mil), Juízes Trabalhistas, representados pela Anamatra, do Ministério Público do Trabalho e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que enviaram manifestações expressas e contundentes, de repulsa a tal PL, ao Presidente da Câmara dos Deputados.

6     A nosso juízo, Senhor Ministro, se esta matéria não for analisada pelo Excelso Supremo Tribunal Federal (STF), com a devida ponderação e à luz dos fundamentos, princípios, garantias e objetivos da CR, o Brasil caminhará a passos largos, para chegar ao teratológico estágio de País, politicamente democrático, e socialmente fascista, parafraseando o Sociólogo Português Boaventura de Souza Santos, que faz este prognóstico para Portugal; e por motivos idênticos.

6.1        Com a devida licença, devemos dizer-lhe que o Excelso STF, no julgamento da ADC N. 16, abriu largas portas à completa precarização dos direitos fundamentais sociais, ao julgar constitucional o Art. 71, da Lei N. 8.666/93, que exime o Poder Público de qualquer responsabilidade, no processo de terceirização; logo ele, o que mais o aplica.

7     Cabe destacar, Senhor Ministro, que por mais surreal que possa parecer, os trabalhadores, os maiores prejudicados com a terceirização, em curso há mais de duas décadas, jamais foram chamados para discuti-la, pelo Congresso Nacional; em algumas oportunidades, as suas entidades representativas foram chamadas para referendá-la, nunca para propor limites decentes aos pilares.

7.1        Ironicamente, o único debate sério que, até aqui, teve lugar, sobre a terceirização, foi o Seminário Nacional, realizado pelo TST, em 2011. Importa dizer: o Poder Legislativo, legisla para o povo, sobre a terceirização, sem o ouvir; somente o Poder Judiciário, a quem cabe aplicar o Direito, e não sobre ele legislar, é que lhe deu voz.

8     Como V. Exª, desde a sua assunção ao cargo de Ministro do STF, vem-se mostrando sensível aos clamores sociais, já tendo realizado várias audiências públicas, com a finalidade de nelas debater, de forma aprofundada, temas de relevância social; rogamos-lhe que adote este sagrado procedimento quanto à terceirização; bem assim, que, ao proferir o Voto sobre ela, faça-o de modo a assegurar, por meio do devido processo legal substantivo de que trata o Art. 5º, inciso LIV, da CR, de modo a dar efetividade aos valores sociais do trabalho, à função social da propriedade (Art. 170, inciso III, da CR), ao primado do trabalho e ao bem-estar e à justiça sociais (Art. 193, da CR), não permitindo que os frios interesses econômicos, mais uma vez, prevaleçam sobre eles.

8.1        Apesar de não ser o caso, posto que a interpretação conforme a CR, com certeza, levará o STF a impor limites e parâmetros razoáveis à terceirização; pedimos-lhe licença, agora, para invocar os imortais ensinamentos do consagrado Jurista Uruguaio, Eduardo Joan Couture, no quarto mandamento dos advogados, de todos conhecidos, e assim exarados:      4) LUTA – Teu dever é lutar pelo Direito, mas no dia em que encontrares em conflito o direito e a justiça, luta pela justiça. 

8.2        No caso concreto, de amplo espectro social, caso se note este confronto, o que, repita-se, não vislumbramos; rogamos-lhe e aos demais Ministros do Excelso STF, que fiquem com a Justiça; pois só assim, poderemos construir a tão almejada cidadania plena.

8.3        Com base nos fatos e nos dados estatísticos incontestáveis, posto que oriundos de fontes fidedignas, somos compelidos a pressagiar que se prevalecer, no Processo em relevo, de repercussão geral, teremos, no campo dos direitos fundamentais sociais, o oitavo círculo do inferno, da obra do Poeta Italiano, Dante Alighiere, constante de sua monumental obra “A Divina Comédia”; e, em contrapartida, o paraíso para o capital, que terá o universo como limite, se tanto.

8.4        O imortal poeta baiano, Castro Alves, em seu majestoso poema O Livro e a América, diz que “Num poema amortalhada/Nunca morre uma nação”. Todavia, se o poeta aqui ainda estivesse, com certeza, diria: Com a terceirização sem limites/Não sobrevive uma nação; pois se este desastroso fenômeno social não mata fisicamente os trabalhadores, humilha-os, ao ponto de matá-lo moralmente, pela subtração de sua dignidade e de seus direitos; o que, indiscutivelmente, é a pior forma de morte.

Respeitosamente,

Madalena Guasco Peixoto
Coordenadora Geral

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