Nenhum passo para trás, mas esquerdas precisam ampliar o debate
Foi o pai de Djamila Ribeiro que a batizou com o nome africano, cujo significado é “beleza”. Filha de um estivador comunista, sua base educacional, em Santos, litoral paulista, incluiu xadrez e uma boa dose de formação política. Para a mestre em Filosofia Política, feminista e atual secretária municipal adjunta de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, é momento de resistir ao retrocesso e consequente desmantelamento de políticas públicas. “Mas é imprescindível que a esquerda brasileira entenda de uma vez por todas que não dá para se fazer um debate sério sem pensar a questão racial como principal”, acrescenta. “Queremos ser as pessoas que pensam essas políticas, como protagonistas.”
Formada na segunda turma de Filosofia da Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp), com iniciação científica e mestrado, tornando-se referência em estudos sobre a pensadora e ativista francesa Simone de Beauvoir, Djamila vê alguns avanços nas reivindicações históricas do movimento negro brasileiro. Pouco ainda, porém. Também há uma lacuna no meio acadêmico, aponta: “Pautam a questão de classe desvinculada da questão de raça”.
Representatividade no ensino, importa?
A representatividade é extremamente importante para construção da nossa subjetividade. A partir do momento em que você vive numa sociedade racista, na qual os nossos saberes são hierarquizados e não legitimados, é como se a gente não existisse ou produzisse conhecimento, e isso é uma das mortes simbólicas, dentre as várias mortes que o Estado acomete contra a população negra desde a morte física à morte simbólica, na qual faz parecer que nós não temos saberes e a nossa história não é ensinada nas escolas.
Em geral, o caminho acadêmico para os alunos negros é hostil e solitário. Foi assim com você?
Eu acho que é um caminho hostil e solitário quando você vai estudar algo que vai contra a epistemologia dominante, quando somos minorias nesses espaços de formação do conhecimento. Sermos poucos deflagra o quanto a sociedade é racista e naturaliza essa ausência. A ausência de negros nas universidades não é questionada sequer pelas pessoas brancas. Elas não se questionam o porquê de quem está dando a aula serem pessoas brancas e quem está limpando, negras. A naturalização desses lugares acaba sendo, também, uma das violências do racismo, aumentando a hostilidade e a solidão do aluno negro, por ser ele uma minoria que tenta pautar uma produção de saber representativa.
Os alunos negros têm uma pauta em comum ou é possível transitar pelo universo acadêmico sem pautar as questões referentes a negritude e identidade?
Claro que não são todas as pessoas negras que estão nas universidades que pautam as nossas produções de saberes. Mas para nós que pautamos é difícil encontrar bibliografia, tem de se fazer o trabalho dobrado, cursar as disciplinas, estudar e lutar para que esse saber seja legitimado, encontrar um orientador que esteja disposto e oriente mesmo não conhecendo o tema. É um ambiente hostil e solitário, sobretudo, para as mulheres negras que buscam estudar a produção de saberes de autoras negras.
Como foi sua trajetória escolar?
A minha trajetória caminha junto com essa outra educação e formação que o meu pai dava para gente. Meu pai era estivador, em Santos, por isso estudei num colégio para filhos e netos de estivadores. O que me fez ter uma boa educação no ensino fundamental. Fora isso, meu pai era do Partido Comunista, eu tive acesso a outras atividades que completavam os meus estudos. Frequentava a União Cultural Brasil-União Soviética, aprendi a jogar xadrez, tive formação política, meu pai me levava para manifestações e desde muito cedo conversava com a gente sobre o que é ser negro.
Você teve professores negros durante a sua formação?
Não tive nenhum professor negro no ensino médio e no fundamental. Nem no curso de Filosofia na Unifesp. Eu fui ter um professor negro quando fiz algumas disciplinas em Ciências Sociais e História.
A partir de 2002, o debate das ações afirmativas, cotas, demarcação de terra quilombola passa a pautar a sociedade e o governo. O que avançou de lá para cá?
É inegável que nos últimos anos houve avanços. Eu mesma sou fruto de um campus criado em 2007 e que implementou as cotas. Em 2001, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) foi pioneira em implementar as cotas, em 2004 a Unb, e em 2012 a lei de cota foi aplicada nas universidades federais e nos processos seletivos do serviço público. Houve avanços para garantir o acesso da população negra a determinados espaços, mas muito pouco perto daquilo que é necessário. Mas é inegável que houve avanços importantes daquilo que foram e são reivindicações históricas do movimento negro.
Por que a Universidade de São Paulo, a maior da América Latina, não tem cotas?
A USP não aderir às cotas significa reforçar o quão elitista é, o quanto ela resiste em fazer mudanças essenciais e necessárias. Se esse Estado nos violenta e nos aparta desses espaços, é obrigação desse Estado criar mecanismos para que estejamos nesses espaços. Essa resistência da USP mostra o quanto ela é racista e o quanto se acredita que a educação de qualidade deve ser algo para poucos e para pessoas privilegiadas, ou seja, para pessoas brancas.
O movimento negro estudantil tem voz no meio acadêmico?
Se formos pensar nos movimentos estudantis dos centros acadêmicos nas universidades, ainda não existe um debate aprofundado e sério sobre a temática racial. Pautam a questão de classe desvinculada da questão de raça, sem se aprofundar na temática racial. Existem coletivos de estudantes negros universitários que fazem este recorte étnico-racial. Na USP, a Ocupação Preta tem feito um trabalho de intervenções importantes e mostrado o quanto a instituição é excludente. No movimento estudantil, eu valorizo o movimento negro estudantil, que tem feito discussões importantes, colocando a questão racial como nexo prioritário. Sem a questão racial não tem como fazer uma discussão e se ter avanço no combate às desigualdades.
Nos últimos anos, alguns movimentos sociais passaram a ter a voz ampliada na esfera pública, como o movimento feminista negro. Questões desse movimento tiveram algum avanço no combate às desigualdades?
Historicamente, muitas mulheres vêm pautando estas questões. Essa geração é herdeira dessas mulheres que vieram plantando e abrindo os caminhos. É muito importante sabermos de nossas histórias, de onde viemos. Como diz Jurema Werneck (médica, engenheira, comunicadora, escritora e ativista): “Nossos passos vêm de longe”. Esses caminhos abertos por essas mulheres foram e são importantes para que nós (mulheres negras) ganhássemos mais espaço e com o advento das redes sociais a gente consegue amplificar esses discursos. Meninas cada vez mais novas começam a pautar essas questões em seus espaços, ter acesso a essa história, a essas autoras e conseguem se posicionar de forma mais estratégica e participativa.
É possível pensar as ações afirmativas e uma reforma na estrutura de ensino brasileiro?
É importantíssimo pensar numa educação pública de base de qualidade. Pensar ações afirmativas e pensar a melhoria do ensino de base não são ações excludentes, ao contrário. Como demorará muito tempo para termos uma educação de base de qualidade, nós não podemos condenar outras gerações de pessoas negras à exclusão e à falta de acesso ao ensino superior. É necessário lutar para manter e ampliar não só o acesso e a permanência do estudante negro na universidade, como concomitantemente continuar lutando pela melhoria do ensino de base. As cotas não devem ser permanentes, mas devem existir enquanto houver desigualdades.
As cotas colocam em xeque a meritocracia. A quem serve a meritocracia num país como o Brasil?
A meritocracia é um grande mito, no qual as pessoas não querem entender que existe um grupo, uma maioria, que enriqueceu o outro grupo, a minoria. Existe um grupo branco que tem privilégios e enriqueceu às custas da opressão e exploração do grupo negro. O fato de uma pessoa branca que sempre estudou em escolas boas, comeu bem e tem acesso a idiomas passar num vestibular como o da USP não é porque ela é especial, mas porque ela teve condições para isso. Ela não é genial. Insistir num discurso meritocrático é escamotear o racismo e o privilégio do grupo branco.
Você uma vez falou que “estávamos aprendendo a surfar”. E agora, qual é a perspectiva?
Nós tivemos alguns avanços, algumas poucas conquistas que foram importantes. Contudo, agora estamos diante de um cenário de retrocessos e cortes de políticas públicas, com a PEC 241 (a Proposta de Emenda à Constituição que agora, no Senado, tem o número 55). No momento em que estávamos num crescente de conseguir algumas ações que dizem respeito a uma reparação histórica para população negra, a gente vive o retrocesso dessas ações. É como se dissessem “Chega!”, quando o momento deveria ser de consolidação e amplificação desses direitos.
Diante desse retrocesso, quais são os próximos passos?
O momento é de resistir, não aceitar o desmantelamento de políticas que foram importantes à população negra. Temos de seguir avançando, não dá para compactuar com esse retrocesso. Mas é imprescindível que a esquerda brasileira entenda de uma vez por todas que não dá para se fazer um debate sério sem pensar a questão racial como principal. Nós não queremos ser apenas as beneficiárias dessas políticas, mas queremos ser as pessoas que pensam e propõem essas políticas, como sujeitos, como protagonistas, já que historicamente fomos apartados desses espaços.