Afinal, quem vota em Jair Bolsonaro?
Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Um espectro ronda e assusta a disputa pela Presidência da República no Brasil de 2018. É a candidatura de Jair Bolsonaro, do Partido Social Liberal (PSL). Embora o capitão não seja a novidade política que pretende representar – está em seu sétimo mandato como deputado federal, tendo sido o mais votado no Rio de Janeiro na última disputa, em 2014, alcançando 464 mil votos, além de se destacar fortemente nas redes sociais -, chama a atenção o fato de o militar candidato alcançar 20% das intenções de voto, em média, de acordo com as pesquisas mais recentes, apesar de seu discurso intolerante e da agenda de retrocessos que defende. Mais preocupante: esse apoio político e eleitoral parece acontecer não apenas, mas também por conta de suas falas contra os direitos humanos, que atacam as mulheres, os negros, os homossexuais e fazem apologia da tortura e da distribuição em massa de armas para combater a criminalidade, para citar alguns aspectos da agenda truculenta que ele defende. É justamente por apresentar essas propostas que Bolsonaro é admirado e reverenciado por seus seguidores e eleitores, que defendem o líder, a quem chamam de ‘mito’, com tranquilidade e entusiasmo.
Atenta – e também preocupada – com essa candidatura e fenômeno, suas raízes e desdobramentos, a socióloga Esther Solano, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), dedicou-se, no último ano, a partir das falas desse público fiel, a tentar decifrar quem é Jair Bolsonaro e as razões que levam parcela tão significativa da população brasileira a votar nele. Publicado recentemente, o artigo “Crise da democracia e extremismos de direita” (disponível em http://library.fes.de/pdf-files/bueros/brasilien/14508.pdf) tem como objetivos principais “entender o crescimento das novas direitas brasileiras, especialmente da extrema direita mais antidemocrática, simbolizada no pensamento do deputado Jair Bolsonaro. Apresenta ainda os resultados de entrevistas em profundidade feitas com simpatizantes do pré-candidato, nas quais foram mapeados os principais elementos de identificação dos eleitores com o discurso do Bolsonaro e faz uma análise empírica e teórica das condições do surgimento desse fenômeno no Brasil”, como destaca seu texto de apresentação.
Em entrevista exclusiva à revista Giz, a pesquisadora analisa e comenta os principais aspectos e resultados do trabalho. Ela diz que “esses eleitores acham que Bolsonaro é honesto e sincero, fala o que pensa, fala o que todos pensam, mas não têm coragem de dizer. Até as barbaridades que ele diz são vistas não como crimes e ofensas, mas como a fala de quem é espontâneo, que não pensa muito para falar”. Para ela, “Bolsonaro é uma doença política e precisa ser tratada e combatida”.
Professora, para começar a decifrar o enigma… quem é Jair Bolsonaro?
É a consequência do sistema político que nos cerca. É a voz da desesperança, de quem entregou os pontos, é a voz do “foda-se”, como diz uma resposta de um dos meus entrevistados. É como se as pessoas estivessem muito cansadas dos erros que a direita e a esquerda cometeram nos últimos anos, cansadas de não verem seus votos se convertendo em melhorias reais e duradouras para suas vidas. Os eleitores veem problemas na economia que, em vez de melhorar, piora. Veem problemas sérios nos partidos políticos e no sistema político. As pessoas têm muito medo de andar na rua, de sofrer assaltos, de serem mortas, de não voltarem para casa. Atribuem isso à falta de uma política de segurança pública. É um medo justificado. As pessoas compraram o discurso da Lava-Jato, da limpeza da corrupção e veem muita roubalheira entre os políticos de esquerda e da direita. Olhando para tudo isso e para as opções entre os candidatos, enxergam em Jair Bolsonaro algo de diferente, algo de poder de mudança e de limpeza que esses eleitores tanto querem.
A senhora falou erros cometidos pela esquerda, inclusive. Que erros são esses?
É um conjunto de erros e que deve ser encarado como um conjunto mesmo. Mas acho que podemos começar pela segurança pública. A esquerda foge desse assunto, mas são 60 mil mortos por ano no Brasil. O que o PT fez para melhorar esses números? Na percepção desse eleitor, nada. Da mesma forma, os casos de corrupção. Parte da população acreditou que o PT era um partido diferente, que não roubava e nem deixava roubar. Mas, ao chegar no poder, de acordo com essa leitura que identificamos, fez igual, traiu o eleitor. A operação Lava-Jato e seus desdobramentos, claro, alimentaram muito essa percepção de que todos os políticos são iguais e trabalham em causa própria. A imediata resposta a essa percepção é que as pessoas comuns são marginalizadas pelo Estado. Não é uma observação racional, mas uma percepção muito forte de ser escanteado e não atendido pelo poder público.
Mesmo com a melhoria de renda que os governos Lula e Dilma promoveram?
A renda subiu e caiu. E, num fenômeno que precisa de mais estudo, quem teve a renda aumentada por programas sociais nega que a melhoria tenha vindo dali e, pior, passa a condenar programas de distribuição de renda. É como se a classe C que ascendeu passasse a assumir o discurso das classes A e B. Negam que foi o PT ou os governos de esquerda quem proporcionou esses avanços. Entendem que ou foi mérito próprio, ou foi deus. O discurso da meritocracia e das benesses do mercado, do extremo individualismo, chamou atenção na pesquisa. Chegou forte nas pessoas e começou a ser reproduzido à exaustão.
Seu estudo pautou-se principalmente pela perspectiva de ouvir e sistematizar esses longos depoimentos?
Selecionamos 25 eleitores de Bolsonaro, de idades e classes sociais variadas e equilibradas. Tinham homens e mulheres também. As pessoas não se identificavam, de forma que podiam falar à vontade e não se sentiam julgadas. As entrevistas foram longas e deixamos os entrevistados falar bastante. O perfil era bem diversificado e heterogêneo. Então, sistematizamos as respostas e encontramos os traços comuns desse eleitor para, a partir dele, entender Jair Bolsonaro. É importante reforçar que era uma escuta sem julgamentos, ou seja, ninguém é menosprezado por ser eleitor do Bolsonaro. Todos têm um motivo e tem seus saberes e razões. Isso precisa ser conhecido, ao contrário do que faz parcela da esquerda, que ridiculariza e menospreza a inteligência do eleitor de Bolsonaro.
E por que escolhem Bolsonaro, afinal?
Porque ele se apresenta como o candidato antissistema. Todos os outros estão na política há muito tempo e não resolveram. Bolsonaro, embora seja deputado há muito tempo, traz algo de novo, porque se opõe ao que está aí. Na leitura deles, não se vende, não faz aliança. Acham que ele é honesto e sincero, fala o que pensa, fala o que todos pensam, mas não têm coragem de dizer. Isso é diferente dos demais. Até as barbaridades que ele diz são vistas não como crimes e ofensas, mas como a fala de quem é espontâneo, que não pensa muito para falar. Exatamente como qualquer pessoa comum. Aliás, o que todos dizem é que dá para entender o que o Bolsonaro diz. Não só o conteúdo, mas também a forma.
Esse eleitor então também se identifica nesse discurso.
Exatamente, se vê ali, e elogia a fala espontânea, que se contrapõe ao discurso bem amarrado que os políticos clássicos fazem. Cada palavra é pensada previamente, de forma que não há espontaneidade, nem sinceridade, só falsidade.
Esse eleitor reconhece as barbaridades vociferadas pelo deputado, entende que é grave fazer apologia da tortura e dizer que os portugueses não escravizaram os negros?
Reconhecem sim e, ou acham que é a fala de alguém muito espontâneo, que fala o que pensa, ou concordam em alguma medida e acham bom que alguém expresse aquelas ideias. O eleitor reconhece, sim, o discurso da xenofobia, do machismo. Mas não atribui a essas falas o chamado discurso de ódio que deve ser combatido em nome da democracia e dos direitos humanos. Veja só, o brasileiro é muito acostumado com esses discursos, ele vive imerso na violência policial, no machismo, na xenofobia. Então, conhece por dentro o que Bolsonaro fala. Não como intelectual que estuda o assunto, mas como vítima dessas condições. Ouvir alguém falar disso, de forma que se entende, dá pontos a Bolsonaro. Ele conhece minha realidade. Mais que isso, ele fala o que muitos outros pensam e falam. Tem algo de folclórico, de falastrão e bravateiro, mas é uma fala muito conhecida e frequente na realidade dos eleitores.
A ponto de naturalizar esse discurso?
Sim, a ponto de naturalizar. A ponto de conseguir repetir, porque entende e concorda em alguma medida. A ponto de se livrar da necessidade do politicamente correto e poder reconhecer alguém que podia ser da minha turma. E tem mais um ponto importante. Bolsonaro tem algo do pai psicanalítico, aquele a quem se deve seguir, que é brabo, falastrão, fala alto, emana autoridade e resolve as coisas. É quem traz a ordem e a segurança de volta para casa. Não estamos falando apenas de segurança policial, não. Estamos falando de valores que deixam as pessoas seguras: a família, o trabalho, o mercado, a ordem social estabelecida, as diferenças econômicas e sociais.
O que fazer diante desse fenômeno, professora? Porque ele pode só parecer um falastrão espontâneo, mas é perigoso, nega os valores democráticos, nega a igualdade entre as pessoas, defende a meritocracia, defende o fim das políticas afirmativas. É um discurso que flerta com o fascismo.
Enfrentar Bolsonaro é enfrentar os problemas estruturais do país. Ele é fruto de anos de erros e de inépcia para enfrentar duramente nossos problemas estruturais. Ele é fruto de um sistema político que não representa nem atende o cidadão. Bolsonaro não é e nem pode ser visto como uma questão pontual. O candidato traz um potencial e uma bagagem política grande e forte e o único caminho imediato que impediria sua vitória seria o próprio sistema eleitoral brasileiro, que é pouco democrático e premia os políticos mais tradicionais. Ou seja, ele não tem alianças, não foi abençoado pelo mercado, não é herdeiro político de ninguém e tem pouco tempo no programa eleitoral. O que criticamos no sistema eleitoral brasileiro é, curiosamente, o que pode deter Jair Bolsonaro.
Na prática, na campanha que agora está oficialmente começando, como se contrapor a Bolsonaro e confrontar esse discurso de ódio? É possível disputar esses eleitores com ele, a partir de outras agendas e propostas?
Penso que a única alternativa para de fato estabelecer esse combate é uma reestruturação do sistema, diminuindo a distância entre o eleitor e o eleitorado. As pessoas precisam se sentir mais representadas. E nós temos que fortalecer o sentimento de que todo cidadão é também um sujeito político, que precisa participar dessa esfera pública, promovendo esse reencantamento com a política. Sim, se a gente não tiver propostas de esquerda sobre segurança pública, esse populismo de Bolsonaro vai vencer também. Eu diria que a única forma de vencê-lo é no médio e no longo prazo. Ele é o nome que desponta agora como fruto de um sistema político cheio de problemas. Se isso não for enfrentado, outros bolsonaros vão surgir. Mas, de novo, ele não é um problema de curto prazo. É de médio e longo prazo, reforço. Bolsonaro é uma doença política que precisa ser tratada e combatida. A esquerda precisa parar de se furtar a algumas questões, a educação política precisa existir.
É possível ser tolerante com a intolerância que ele representa?
A gente não pode ser tolerante com a intolerância e as ideias dele, mas a gente tem que procurar entender e escutar as pessoas que simpatizam com ele. De fato, nem todo mundo que manifesta essa simpatia é um monstro. Como disse, e reforço, ele representa um voto de frustração, de cansaço, de desabafo e anti-política. Ele é um sintoma de um mal-estar bem mais complexo com o sistema político.
Por que razões específicas e conjunturais ele se destaca e ganha força nesse momento, se considerarmos que o pensamento conservador sempre foi elemento constituinte da sociedade brasileira?
Acho que esse discurso de ódio a gente sempre teve, mas agora ele é amplificado pela anti-política e pelo uso das redes sociais, que produzem esse campo do anônimo, muito narcísico também, do ego, do eu que se esconde atrás da tela. Ainda como resultado das redes sociais, você acaba conversando com sua bolha e com seu gueto. Não há diálogo, não há debate, não há contraditório. Esse aumento do alcance do discurso de ódio é mais um efeito típico da nossa contemporaneidade, essa coisa de as pessoas terem cada vez menos capacidade de diálogo e, por outro lado, cada vez mais capilaridade e possibilidade de expressar essas falas. Para muita gente, nem é discurso de ódio, é liberdade de expressão.
Quem abriu espaço e levou adiante esse discurso, professora?
Principalmente a imprensa e a repercussão dela nas redes sociais. Esse discurso do basta, não aguento mais, que a televisão repetiu infinitamente na época das passeatas contra a corrupção reverberou muito fortemente em todas as camadas da população.
Qual o papel e a atuação das igrejas evangélicas na consolidação desse conservadorismo?
Na verdade há uma pluralidade de igrejas evangélicas e é sempre muito difícil falar em nome de todas. Mas, claro, obviamente a maioria tem um pensamento conservador. Uma coisa interessante: como os candidatos progressistas em geral têm um bloqueio e uma dificuldade grande de diálogo com as igrejas evangélicas, normalmente esse campo fica à mercê e à disposição dos conservadores mesmo. É preciso considerar que muitas vezes os representantes evangélicos são muito mais fundamentalistas do que os próprios fiéis evangélicos, como a gente observa na relação que a bancada na Câmara estabelece com suas bases. Além disso, as novas igrejas, neopentecostais, como a Universal, promovem e incentivam muito o pensamento meritocrático, individualista, valores que têm muito a ver com a lógica capitalista. Por isso é que acho muito importante as esquerdas, o campo progressista começar a dialogar com as igrejas evangélicas.
O mercado não se preocupa com Bolsonaro?
Nem com Bolsonaro, nem com bolsonaros. Acha que facilmente pode ser cooptado e atender à agenda neoliberal que está em andamento. O mercado gosta de um pouco mais de discrição, mas aceitaria Bolsonaro. E até prevê o aparecimento de outros bolsonaros, sem se preocupar muito. O que pode mesmo mudar esse caminho é a participação popular ampla e aparente. Se a população sentir que a política serve às suas necessidades e aspirações, aí Bolsonaro deixa de fazer sentido.
Qual a tarefa dos professores e professoras nesse debate?
Acho que é preciso entender professor no sentido amplo da palavra. A saída para esse protofascismo é a Educação, para que cada um possa se construir como sujeito político, que as escolas possam valorizar a qualidade dos saberes e a consciência crítica, que esse processo de formação se organize no cotidiano, com acesso à Cultura, aos bens simbólicos. Para mim, tudo isso começa na luta contra a desigualdade, o racismo, o machismo, a homofobia, para que todos tenhamos bens materiais básicos e direitos fundamentais. O Adorno (Theodor Adorno, filósofo alemão que conheceu de perto os horrores do nazismo) falava muito isso, a Educação pode servir para lutar contra o fascismo ou pode servir para reforçá-lo. Que tipo de Educação estamos garantindo, a que reforça ou a que liberta?